terça-feira, 24 de janeiro de 2023

THOMAZ ALBOORNOZ NEVES | Georges Schéhadé, poesia e fábula

 


Georges Schéhadé (Alexandria, 1905-Paris, 1989) nasceu em um aristocrático jardim suspenso com vistas ao Porto de Alexandria pouco antes que reveses financeiros levassem a família de volta a Beirute.

Ainda muito jovem, em 1923, serve ao departamento de educação pública do Alto Comissariado do Líbano onde é notado pelo colunista literário da NRF, Gabriel Bounoure, então inspetor gálico do ensino secundário na Síria e no Líbano. É Bounoure quem indica Schéhadé ce jeune poète plein de talents a Jean Paulhan, que mais tarde o publica na Revue.

Já então vivia ausente, em silêncio, como se estivesse sempre em outro tempo ou lugar. Cultiva a discrição. Prefere considerar-se um poeta de “duas margens”, porém, por seu idioma de pluma, é lido antes como um autor francês que soube associar com particular originalidade e elegância a atmosfera atemporal arábica com a poesia moderna.

 

Il y a des jardins qui n’ont plus de pays

Et qui sont seuls avec l’eau

Des colombes les traversent bleues et sans nid

 

Mais la lune est un cristal de bonheur

Et l’enfant se souvient d’un grand désordre clair

 

Existem jardins que não têm mais país

E estão sós com a água

Atravessados por pombas azuis e sem ninho

 

Mas a lua é um cristal de felicidade

E o menino recorda um imenso caos claro

 

***

 

Les premiers brebis bêlent au marécage

Nous avons sommeillé sous un arbre

La lune montait comme un animal d’orage

Les feuilles du vent brûlaient

Et pour mieux être nous-mêmes avons rêvé

Qu’à chaque tournant de route un homme dormait

Le front irrité de miracles

L’épaule sans ombres du ciel

Et comme nous une bêche près du dormeur

Et ses cris dans la campagne

 

As primeiras ovelhas balem no pantanal

Nós dormíamos embaixo de uma árvore

A lua nascia como uma fera do temporal

A folhagem do vento abrasava

E para ser melhor quem somos sonhávamos

Que a cada curva do caminho alguém dormia

A fronte irritada por milagres

As costas sem sombra do céu

E como nós uma junto a quem dormia

E este grito no descampado

 

***

 

Les arbres qui ne voyagent que par leur bruit

Quand le silence est beau de mille oiseaux ensemble

Sont les compagnons vermeils de la vie

Ô poussière savoureuse des hommes

 

Les saisons passent mais peuvent les revoir

Suivre le soleil à la limite des distances

Puis − comme les anges qui touchent la pierre

Abandonnés aux terres du soir

 

Et ceux-là qui rêvent sous leurs feuillages

Quand l’oiseau est mûr et laisse ses rayons

Comprendront à cause des grands nuages

Plusieurs fois la mort et plusieurs fois la mer

 

As árvores que só viajam com seu murmúrio

Quando o silêncio tem a beleza de mil pássaros juntos

São os companheiros vermelhos da vida

Ó pó saboroso dos homens

 

As estações passam mas é possível revê-las

Seguir o sol até o limite das distâncias

E depois – como os anjos que tocam a pedra

Abandonados nas terras do poente

 

E aqueles que sonham em suas folhagens

Quando amadurece o pássaro em seus raios

Compreenderão pelas grandes nuvens

Muitas vezes a morte muitas vezes o mar

 

***

 

De l’automne jauni qui tremble dans le bois dételé

Il demeure une étrange mélancolie

Comme ces chaînes qui ne sont ni pour le corps ni pour l’âme

 

Ô saison les puits n’ont pas encore déserté votre grâce

Ce soir nous avançons dans vos feuilles qui passent Près d’une cascade de triste folie

 

Et voici dans un nuage de grande transparence

L’étoile comme une étincelle de faim

 

Do outono amarelo que tremula no bosque dispersado

Perdura uma estranha melancolia

Como essas correntes que não são para o corpo nem para a alma

 

Estação, os poços não perderam ainda tua graça

Esta noite avançamos entre folhas que passam

Perto de uma cascata de triste loucura

 

E eis que na nuvem de vasta transparência

A estrela como um clarão de fome

 

***

 

Sur une montagne

les troupeaux parlent avec le froid

Comme Dieu le fit

Où le soleil est à son origine

Il y a des granges pleines de douceur

Pour l’homme qui marche dans sa paix

Je rêve à ce pays où l’angoisse

Est un peu d’air

Où les sommeils tombent dans le puits

Je rêve et je suis ici

Contre un mur de violettes et cette femme

Dont le genou écarté est une peine

 

Sobre a montanha

Onde os rebanhos falam com o frio

Como Deus fez

Onde o sol está na sua origem

Há celeiros cheios de doçura

Para o homem que anda em sua paz

Eu sonho com esse lugar onde a angústia

É um pouco de ar

Onde os sonhos caem nos poços

Eu sonho e estou aqui

Entre esta mulher e um muro de violetas

O seu joelho aberto que comove

 

***

 

O mon amour il n’est rien que nous aimons

Qui ne fuie comme l’ombre

Comme ces terres lointaines l’on perd son nom

Il n’est rien qui nous retienne

Comme cette pente de cyprès où sommeillent

Des enfants de fer bleus et morts

 

Meu amor não há nada do que amamos

Que não fuja como a sombra

Como essas terras distantes onde os nomes se perdem

Não há nada que nos retenha

Como esta encosta de ciprestes onde dormitam

Meninos de ferro azuis e mortos

 

***

 

Si je dois rencontrer les Aïeux

A l’extrémité d’une terre d’élégie

Là où se perd la parole des puits

Et le vieil élevage des lunes

 

La nuit fera une seule gerbe de nos ombres

Je rejoindrai l’aiguille et les songes

Et la main de leurs habits

– Allongés dans leurs têtes légères

 

Sous un arbre imaginé par la vie

Si je dois rencontrer les Aïeux

A l’extrémité d’une terre d’élégie

Menant un enfant de grand sommeil

Au bord des fleuves sans terres

 

Se devo encontrar os Antepassados

No fim de uma terra de elegia

onde se perde a palavra dos poços

E a antiga ascensão das luas

 

A noite fará um só facho com nossas sombras

Reunirei a agulha e os sonhos

E a mão com os seus mantos

Estendidos das suas leves cabeças

 

Sob a árvore imaginada pela vida

Se devo encontrar os Antepassados

No fim de uma terra de elegia

Levando o menino do sono imenso

Pela margem de rios sem terras

 


Bounoure o levou a Paulhan e a Saint-John Perse. Em 1930, é publicado pelos simbolistas da revista Commerce, dirigida por Valéry. Em 33, durante sua primeira viagem à Europa conhece Max Jacob e Jules Supervielle. Logo, é Éluard quem o apresenta a Breton que o recebe nos seguintes termos:

 

Se alguém me perguntasse qual é o segredo de Georges Schéhadé, eu responderia, na velha linguagem da falcoaria, que ninguém sabe atrair a presa tão implacavelmente como ele.

 

A partir de 1938, sua poesia é editada em plaquettes por Guy Lévis Mano. Após a Segunda Guerra Mundial, Schéhadé divide-se entre Beirut, onde é o braço direito de Bounoure na recém-criada École Supérieure des Lettres, e Paris, onde convive com os surrealistas. Octavio Paz, seu primeiro tradutor ao espanhol, assim descreve o convívio com o grupo:

 

No Café de la Place Blanche e em outros lugares. Os pilares desses encontros foram André e Benjamin. Muitos jovens compareciam e, de vez em quando, alguns veteranos de campanhas passadas: Max Ernst, Miró, Hérold e, mais raramente, Julien Gracq. Com ele e com outros dois escritores recém-chegados aos encontros, André Pieyre de Mandiargues e Schéhadé, me senti mais à vontade. Gracq não é apenas um grande escritor, mas também um homem discreto e cortês, que sabe conversar e ficar calado quando necessário. Meus melhores amigos eram Mandiargues, brilhante e assustador como um conto de Arnim, e Schéhadé, sempre com um ramo de adágios recém-cortados de uma árvore no Paraíso.

 

Mas nada ou muito pouco de Schéhadé pode ser considerado surrealista, no rigor do termo. Sua associação com Éluard e Char, foi estabelecida antes pela capacidade de criar um universo poético próprio, de transparência e lenda, que por afinidade conceitual. Schéhadé escreve tomado pela delicadeza da infância e por um olhar cândido, mas maduro. O tom é discreto, a dicção proverbial e o tempo bíblico.

Na sua poesia não há tensão formal alguma. Ao contrário, o verso livre se naturaliza na estrofe e, se a desmancha, é por obedecer ao ritmo do que diz.

 

Mon merveilleux amour comme la pierre insensée

Cette pâleur que vous jugez légère

Tellement vous vous égarez de moi pour revenir

À l’heure où le soleil et nous d’eux faisons une rose

Personne n’a dû la retrouver

Ni le braconnier ni la svelte amazone qui habite les nuages

Ni ce chant qui anime les habitations perdues

Et vous étiez cette femme et vos yeux mouillaient

D’aurore la plaine dont j’étais la lune.

 

Meu amor maravilhoso como a pedra insensata

Esta palidez que julgas leve

De tal modo que te afastas de mim para retornar

Na hora em que nós dois e o sol formamos uma rosa

Ninguém jamais te encontrou

Nem o caçador, nem a esbelta amazona que habita as nuvens

Nem este canto que anima os quartos perdidos

E tu eras essa mulher e teus olhos molhavam

De aurora a planície onde eu era a lua

 

Poesia oral. Como no teatro, cria um cenário. Sem discurso, sem récitas, com ambiência apenas. Poesia do sonho, não no sentido daliniano, ou das praças duras de De Chirico, nem das formas líquidas de Miró, mas de uma remota e esmaecida atmosfera suspensa.

 

Si tu es belle comme les Mages de mon pays

Ô mon amour tu n’iras pas pleurer

Les soldats tués et leur ombre qui fuit la mort

– Pour nous la mort est une fleur de la pensée

 

Il faut rêver aux oiseaux qui voyagent

Entre le jour et la nuit comme une trace

Lorsque le soleil s’éloigne dans les arbres

Et fait de leurs feuillages une autre prairie

 

Ô mon amour

Nous avons les yeux bleus des prisonniers

Mais notre corps est adoré par les songes

Allongés nous sommes deux ciels dans l’eau

Et la parole est notre seule absence

 

Se tu és bela como os Mágicos do meu país

Meu amor não chores pelos soldados mortos

E suas sombras que fogem da morte

Para s a morte é uma flor do pensamento

 

Sonhemos com os pássaros que migram

Entre o dia e a noite como um rastro

Quando o sol se afasta entre as árvores

E das suas folhagens faz outra planície

 

Meu amor

Temos os olhos azuis dos prisioneiros

Mas os sonhos adoram nossos corpos

Deitados somos dois céus na água

E a palavra é a nossa única ausência

 


Os
poços, as pombas, as rosas, as ovelhas são afro-mediterrâneas, mas poderiam ser de qualquer lugar e em qualquer época. O silêncio, tão presente no ar dos seus poemas, é um lugar de repouso para as suas palavras. Diz o poeta:

 

Le silence est la villégiature des mots.

 

Um silêncio grave, ao mesmo tempo existencial e universal, devedor da musicalidade do verso e da limpidez rítmica com que faz uso da língua.

 

Nous reviendrons corps de cendres ou rosiers

Avec l’œil cet animal charmant

O colombe

Près des puits de bronze où de lointains

Soleils sont couchés

 

Puis nous reprendrons notre courbe et nos pas

Sous les fontaines sans eau de la lune

O colombe

Là où les grandes solitudes mangent la pierre

Les nuits et les jours perdent leurs ombres par milliers

Le temps est innocent des choses

O colombe

Tout passe comme si j’étais l’oiseau immobile

 

Voltaremos corpos de cinza ou rosais

Com o olho esse animal encantador

Pássaro

Perto dos poços de bronze onde sóis

Distantes estão deitados

 

Então retomaremos nossa curva e nossos passos

Pelas fontes sem água de lua

Pássaro

Lá onde a imensa solidão devora a pedra

 

Noites e dias perdem sombras aos milhares

O tempo é inocente das coisas

Pássaro

Tudo passa como se eu fosse o voo imóvel

 


O poeta é também autor de uma obra cênica que divide com Samuel Beckett, Eugène Ionesco e Artur Adamov as concepções do teatro francês no pós-guerra. Em 1951, Georges Vitaly produziu com escasso sucesso sua primeira peça, Monsieur Bob’le, no Théâtre de la Huchette. No ano seguinte, Gallimard reuniu as quatro plaquettes impressas por GLM sob o título Les Poésies. Schéhadé escreveria três outras obras teatrais que entraram no repertório da Comédie-Française, sendo Histoire de Vasco, a mais exitosa.

Em 1978, a guerra no Líbano o traz definitivamente a Paris. Nesse meio-exílio volta a escrever poesia. Em 85, a Gallimard publica Le Nageur d’un Seul Amour (O Nadador de um Amor) sua última reunião. Não obstante, o longo percurso entre sua estreia em 1938 e os últimos poemas cinquenta anos depois, seu estilo não muda. Como se nestes primeiros versos:

 

Les arbres qui ne voyagent que par leur bruit

Quand le silence est beau de mille oiseaux ensemble

Sont les compagnons vermeils de la vie

Ô poussière savoureuse des hommes

 

Les saisons passent mais peuvent les revoir

Suivre le soleil à la limite des distances

Puis − comme les anges qui touchent la pierre

Abandonnés aux terres du soir

 

Et ceux-là qui rêvent sous leurs feuillages

Quand l’oiseau est mûr et laisse ses rayons

Comprendront à cause des grands nuages

Plusieurs fois la mort et plusieurs fois la mer

 

As árvores que só viajam com seu murmúrio

Quando o silêncio tem a beleza de mil pássaros juntos

São os companheiros vermelhos da vida

Ó pó sabor de homens

 

As estações passam mas é possível revê-las

Seguir o sol até o limite das distâncias

E depois – como os anjos que tocam a pedra

Abandonados nas terras do poente

 

E aqueles que sonham em suas folhagens

Quando amadurece o pássaro em seus raios

Compreenderão pelas grandes nuvens

Muitas vezes a morte muitas vezes o mar

 

e nos últimos:

 

Sur une montagne où se déshabille le vent

Quand les troubadours de la lune

Un soir d’été

Auront joué nos cœurs aux dés

Dans ce pays d’infortune

Toi plus belle que jamais

Tu passeras dans la brume

 

Na montanha onde se despe o vento

Quando os trovadores da lua

Uma noite de verão

Terão jogado nossos corações nos dados

Neste país de infortúnio

Tu, mais bela que jamais

Passarás pela bruma

 

Poesia de cenas sem fatos da vida, onde tudo é cenário. Para contextualizar a ausência do autor em uma obra tão refinada, consultar Georges Schéhadé, poète des deux rives, livro pontuado pelo epistolário do poeta, rica iconografia e atenção nos detalhes pessoais escrito por Danièle Baglione e Albert Dichy.

 

 

 


THOMAZ ALBORNOZ NEVES (Brasil, 1963). É advogado, cineasta, tradutor, ensaísta e poeta. Ao longo de quase quarenta anos, tornou-se um dos mais ativos tradutores de poesia contemporânea para o português. Viveu na Itália, França e Espanha durante seus anos de formação. Fixou-se então no Rio de Janeiro, no norte do Uruguai e finalmente em Livramento. Publicou vários livros, entre eles Renée (1987), Poemas (1990), Golfe (2012), À espera de um igual (2020), Oriente (2021) e 24 verbetes (2022).

 


LENNIN VÁSQUEZ (Peru, 1978). Artista convidado desta edição de Agulha Revista de Cultura. Estudou na Escola Superior Autônoma de Belas Artes do Peru entre 1996 e 2002, onde obteve medalha de ouro em desenho. Suas exposições pessoais incluem Metaphysical Landscapes (2023), Collected Work (2019) Spain, I Have All Nights in My Veins (2018); Delírios Crepusculares (2017); Quadrante dos Sonhos – jardins e labirintos (2015); Vento SURreal (2010); Aos Olhos do Apu (2009); Ritual Beings (2007), entre outras. Desde 1997 expôs coletivamente em dezenas de oportunidades no Peru, Bolívia, Chile, Argentina, Colômbia e Espanha. Em 2010 realizou mural no encontro internacional Art x Parte em Berazategui, Buenos Aires, Argentina. Seu trabalho está no Museu Belas Artes, Santiago do Chile; Aliança Francesa Lima, Peru; Município de Suba, Bogotá, Colômbia; e Coleção Faber Castell, Lima, Peru. Coleção Mapfre Lima Peru. Lennin possui um traço refinado repleto de referências mitopoéticas, que expressam não apenas sua afinidade com o Surrealismo, como também um universo acentuado por suas origens indígenas.

 



Agulha Revista de Cultura

Número 222 | janeiro de 2023

Artista convidado: Lennin Vásquez (Peru, 1978)

editor | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editora | ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2023

 


∞ contatos

Rua Poeta Sidney Neto 143 Fortaleza CE 60811-480 BRASIL

https://www.instagram.com/agulharevistadecultura/

http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/

FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com

 


 

Nenhum comentário:

Postar um comentário