PARTIDA INTEIRA
Minha alma cega
enxerga o teu corpo
rasgando
os sóis nus da madrugada
Minha alma louca
persegue os teus olhos
incendiando
as luas tortas da noite
Minha alma vã
colhe o teu cheiro
mergulhando
nos ventos doídos da tarde
Minha alma vai
sem pressa
ao encontro
da perdição:
um corpo só corpo
sem alma
a minha
DENTRO DA NOITE, PENSO EM TI
Volta e meia
sigo rumo à ilha do amor
coisas antigas que ficaram
nau perdida no porto abandonado
barco sem vela
que persiste no desenho
formado pelas águas dos rios.
Volta e meia
o fluxo de imagens paira sobre as águas
e sigo devorando
a cauda dos sonhos
retornando ao chão descontínuo da ilusória
estrada do bem querer:
uma outra história.
Volta e meia
o amor perturba o sono descontente das estrelas
e o luar embaraçado
por tantos murmúrios
arma a provisória tenda da paixão:
o meu olhar de neblina
costurado na memória
tece a infância medieval
do teu corpo.
ROTA
um
naco de amor segue, à vera, há que não negar, ir
há os que seguem o amor por luas, e não
são felizes
há os que seguem o amor por corações, e
sofrem
há os que seguem o amor por carnes, e
cegam
há os seguem o amor por medo, e
enlouquecem
há os que seguem o amor por sina, e se
perdem
há os que seguem o amor por desejos, e
se aprisionam
há os que seguem o amor por razões, e
sucumbem
há os que seguem o amor por ódios, e se
desesperam
há os que seguem o amor por demência, e
são infernizados
há os que seguem o amor por marés, e
são quase inteiros
há os que seguem por seguir, e pulsam,
esses sim
há os que negam o amor por obediência,
e pouco amadurecem
há os que negam o amor por justiça, e
sempre tropeçam
há os que negam o amor por castidade, e
encalham
há os que negam o amor por frustração,
e enrugam
há os que negam o amor por cisma, e não
esmorecem
há os que negam o amor por ninharias, e
engordam
há os que negam o amor por birra, e
estremecem
há os que negam o amor por incoerência,
e extrapolam
há os que negam o amor por boniteza, e
se abismam
há os que negam o amor por pressa, e
quase acertam
há os que negam por negar, e minguam,
esses não
ARDOR
Só, arrancas a flor
na tarde cinza,
sobrevive
a melancolia, lenço esquecido
cresce
a febre do pranto, sopro
envergonhado
cala
em mim.
Só, enches a pele
na rotina da voz
atira
a sombra do alto, relógio
atiça
a distância furtiva do gesto
desgovernado
preso
em ti.
Sós, os corações
embebedam-se
cegos pelos beijos
não trocados
olhos rodeiam
a boca da palavra
em torno da mesa
mutação bissexta
a mão fechada
mal remenda o tempo.
Sós, dormem os nomes
tardios das promessas.
Sílabas apalpam o vazio
uma hora irrompe
a haste rútila da matéria
quase evoca
a pele–flor
já nada mais será
Só.
POEMA DA NOITE
Pousa a mão desinteressada no espetáculo da vida
e canta a canção necessária ao homem,
nada para o poeta é tudo que o instante dita:
anunciação de estrelas
folhagem do discurso
excursão do vento
madrugada de náufrago
sentido do caminho
nada para o poeta é tudo que a hora indetermina:
o mundo da criança
a música do sozinho
o retrato da ressurreição
a precariedade da lágrima
o lamento da lembrança.
Inclina o olhar insólito na orfandade do sonho
e murmura o pensamento insensato do mistério,
cada coisa para o poeta é divina em sua profanidade:
punhal cego que afunda desertos
ferida límpida que molda vultos
cristal embaçado que colhe abraços
pedra amolada que gera flores
pranto tímido que anuncia sorrisos;
toda coisa para o poeta não raro é uma procura:
loucura ardente que navega esplendores
atitude diferente que habita diálogos
certeza arisca que vibra em sigilos
amargura contida que flutua nas noites
espelho demente que expressa delícias.
Na lâmina afiada da ventura
a raça dos poetas prepara o céu, o mar e a terra,
sem querer, viaja no embalo do encontro:
imagem da canção quando o nada
na frágil cantiga do destino
deixa transparecer a medida provisória de tudo.
FÔLEGO
AMARGO
a
única certeza que restou
desgarrada
segue
posta aos cinco ventos
das
quatro noites
como
um pássaro repetido na perpetuidade
das
fábulas
a
única dúvida que sobrou
descarnada
volve
atada às três nuvens
das
seis matinas
como
um filho confinado no abandono
dos
lamentos
e
quando se herda a certeza
de
tudo quanto a dúvida sedimenta
uma
dor tão equivocadamente renovada
faz-se
depressa
cega
de intolerâncias
–
as cartas garatujadas pelo terror
involuntariamente,
também
apequenam-se
(ainda
mais)
tão
comprido é o desespero da lágrima
frente
ao recomeço da vida
que
o nome agiganta-se
numeroso,
bem rente ao paraíso circundante
do
futuro
quis
assim a vida
poucas
auroras em volta de mim
páginas
fabricadas com o tempero
da
incerteza
eu,
filho rendido aos beijos
dos
adiamentos
num
reino de pássaros
onde
vozes embaladas pela algazarra
retornam
a si
enxurrada
de anoiteceres
antes
que
a
procissão de malefícios finde
de
tanto peso
vivo
rijo, caravela
entre
volutas
(tenra
lã de sorrisos)
esperas
que acumulo
–
constelação de etcéteras
enfim,
eu mesmo
soluço
MIRANTE INCLINADO
dormir
no claro abismo da madrugada
volta
céu tão pouco azul
visto do quarto
de uma janela talvez
algumas tempestades
pelejam
com hedionda
fúria
para esvaziar
por inteiro o silêncio
acordar
no meio impossível da espera
guarda
sentido bem mais diverso
parado na sala
de um canto qualquer
tantas vertigens
retornam
sem sua sufocante
saudade
para alisar
pela metade
a ilusão
do que em mim
é lembrança
FRANKLIN CASCAES (Brasil, 1908-1983).
Folclorista, ceramista, antropólogo, gravurista e escritor. Dedicou sua
vida ao estudo da cultura açoriana na Ilha de Santa Catarina e região,
incluindo aspectos folclóricos, culturais, suas lendas e superstições. Usou uma
linguagem fonética para retratar a fala do povo no cotidiano. Seu trabalho
somente passou a ser divulgado em 1974, quando tinha 66 anos. A Universidade
Federal de Santa Catarina mantém um arquivo com a obra de Cascaes,
aproximadamente 4.000 peças em cerâmica, madeira, cestaria, gesso, gravuras em
nanquim e desenhos a lápis, além de um razoável conjunto de escritos que
envolvem lendas, contos, crônicas e cartas, todos resultados do trabalho de 30
anos do escritor junto a população ilhoa coletando depoimentos, histórias e
estórias místicas em torno das bruxas, herança cultural açoriana. Por sugestão
de Elys Regina Zils, Franklin Cascaes é o artista convidado da presente edição
de Agulha Revista de Cultura.
Agulha Revista de Cultura
Número 261 | junho de 2025
Artista convidado: Franklin Cascaes (Brasil, 1908-1983)
Editores:
Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com
Elys Regina Zils | elysre@gmail.com
ARC Edições © 2025
∞ contatos
https://www.instagram.com/agulharevistadecultura/
http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com
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