quarta-feira, 18 de junho de 2025

R. LEONTINO FILHO (1961)

 


R. LEONTINO FILHO (1961). Poeta e Ensaísta. Publicou os livros de poemas Cidade Íntima (1987/ 1991/ 1999); Semeadura (1988) e Sagrações ao Meio (1993) e A Geometria do Fragmento (Ensaios, 2008). Autor do ensaio de crítica literária, inédito em livroa, intitulado: Sob o Signo de Lumiar – Uma Leitura da Trilogia de Sérgio Campos (Natal: UFRN/Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, 1997). Doutor em Estudos Literários pela UNESP (Campus de Araraquara/SP) com a tese: Lavoura arcaica – o narrador solto no meio do mundo (2005).

 

 

PARTIDA INTEIRA

 

Minha alma cega

enxerga o teu corpo

rasgando

os sóis nus da madrugada

 

Minha alma louca

persegue os teus olhos

incendiando

as luas tortas da noite

 

Minha alma vã

colhe o teu cheiro

mergulhando

nos ventos doídos da tarde

 

Minha alma vai

sem pressa

ao encontro

da perdição:

um corpo só corpo

sem alma

a minha

 

 

DENTRO DA NOITE, PENSO EM TI

 

Volta e meia

sigo rumo à ilha do amor

coisas antigas que ficaram

nau perdida no porto abandonado

barco sem vela

que persiste no desenho

formado pelas águas dos rios.

 

Volta e meia

o fluxo de imagens paira sobre as águas

e sigo devorando

a cauda dos sonhos

retornando ao chão descontínuo da ilusória

estrada do bem querer:

uma outra história.

 

Volta e meia

o amor perturba o sono descontente das estrelas

e o luar embaraçado

por tantos murmúrios

arma a provisória tenda da paixão:

o meu olhar de neblina

costurado na memória

tece a infância medieval

do teu corpo.

 

 

ROTA

 

um naco de amor segue, à vera, há que não negar, ir

 

há os que seguem o amor por luas, e não são felizes

há os que seguem o amor por corações, e sofrem

há os que seguem o amor por carnes, e cegam

há os seguem o amor por medo, e enlouquecem

há os que seguem o amor por sina, e se perdem

há os que seguem o amor por desejos, e se aprisionam

há os que seguem o amor por razões, e sucumbem

há os que seguem o amor por ódios, e se desesperam

há os que seguem o amor por demência, e são infernizados

há os que seguem o amor por marés, e são quase inteiros

 

há os que seguem por seguir, e pulsam, esses sim

 

há os que negam o amor por obediência, e pouco amadurecem

há os que negam o amor por justiça, e sempre tropeçam

há os que negam o amor por castidade, e encalham

há os que negam o amor por frustração, e enrugam

há os que negam o amor por cisma, e não esmorecem

há os que negam o amor por ninharias, e engordam

há os que negam o amor por birra, e estremecem

há os que negam o amor por incoerência, e extrapolam

há os que negam o amor por boniteza, e se abismam

há os que negam o amor por pressa, e quase acertam

 

há os que negam por negar, e minguam, esses não

 

 

ARDOR

 

Só, arrancas a flor

na tarde cinza,

 

sobrevive

a melancolia, lenço esquecido

 

cresce

 

a febre do pranto, sopro

envergonhado

cala

em mim.

 

Só, enches a pele

na rotina da voz

 

atira

a sombra do alto, relógio

 

atiça

 

a distância furtiva do gesto

desgovernado

preso

em ti.

 

Sós, os corações

embebedam-se

cegos pelos beijos

não trocados

olhos rodeiam

a boca da palavra

em torno da mesa

 

mutação bissexta

a mão fechada

mal remenda o tempo.

 

Sós, dormem os nomes

tardios das promessas.

Sílabas apalpam o vazio

uma hora irrompe

a haste rútila da matéria

quase evoca

a pele–flor

já nada mais será

 

Só.

 

 

POEMA DA NOITE

 

Pousa a mão desinteressada no espetáculo da vida

e canta a canção necessária ao homem,

 

nada para o poeta é tudo que o instante dita:

 

anunciação de estrelas

folhagem do discurso

excursão do vento

madrugada de náufrago

sentido do caminho

 

nada para o poeta é tudo que a hora indetermina:

 

o mundo da criança

a música do sozinho

o retrato da ressurreição

a precariedade da lágrima

o lamento da lembrança.

 

Inclina o olhar insólito na orfandade do sonho

e murmura o pensamento insensato do mistério,

 

cada coisa para o poeta é divina em sua profanidade:

 

punhal cego que afunda desertos

ferida límpida que molda vultos

cristal embaçado que colhe abraços

pedra amolada que gera flores

pranto tímido que anuncia sorrisos;

 

toda coisa para o poeta não raro é uma procura:

 

loucura ardente que navega esplendores

atitude diferente que habita diálogos

certeza arisca que vibra em sigilos

amargura contida que flutua nas noites

espelho demente que expressa delícias.

 

 

 

Na lâmina afiada da ventura

a raça dos poetas prepara o céu, o mar e a terra,

sem querer, viaja no embalo do encontro:

 

 

 

imagem da canção quando o nada

na frágil cantiga do destino

deixa transparecer a medida provisória de tudo.

 

 

 

FÔLEGO AMARGO

 

a única certeza que restou

desgarrada

segue posta aos cinco ventos

das quatro noites

como um pássaro repetido na perpetuidade

das fábulas

 

a única dúvida que sobrou

descarnada

volve atada às três nuvens

das seis matinas

como um filho confinado no abandono

dos lamentos

 

e quando se herda a certeza

de tudo quanto a dúvida sedimenta

uma dor tão equivocadamente renovada

faz-se depressa

cega de intolerâncias

– as cartas garatujadas pelo terror

involuntariamente, também

apequenam-se

(ainda mais)

 

tão comprido é o desespero da lágrima

frente ao recomeço da vida

que o nome agiganta-se

numeroso, bem rente ao paraíso circundante

do futuro

 

quis assim a vida

poucas auroras em volta de mim

páginas fabricadas com o tempero

da incerteza

 

eu, filho rendido aos beijos

dos adiamentos

num reino de pássaros

onde vozes embaladas pela algazarra

retornam a si

 

enxurrada de anoiteceres

antes que

a procissão de malefícios finde

 

de tanto peso

vivo rijo, caravela

entre volutas

(tenra lã de sorrisos)

esperas que acumulo

– constelação de etcéteras

enfim, eu mesmo

soluço

 

 

MIRANTE INCLINADO

 

dormir

no claro abismo da madrugada

 

 

volta

céu tão pouco azul

visto do quarto

de uma janela talvez

 

algumas tempestades

pelejam

com hedionda

fúria

para esvaziar

por inteiro o silêncio

 

 

acordar

no meio impossível da espera

 

 

guarda

sentido bem mais diverso

parado na sala

de um canto qualquer

 

 

tantas vertigens

retornam

sem sua sufocante

saudade

para alisar

pela metade

a ilusão

do que em mim

é lembrança 




FRANKLIN CASCAES (Brasil, 1908-1983). Folclorista, ceramista, antropólogo, gravurista e escritor. Dedicou sua vida ao estudo da cultura açoriana na Ilha de Santa Catarina e região, incluindo aspectos folclóricos, culturais, suas lendas e superstições. Usou uma linguagem fonética para retratar a fala do povo no cotidiano. Seu trabalho somente passou a ser divulgado em 1974, quando tinha 66 anos. A Universidade Federal de Santa Catarina mantém um arquivo com a obra de Cascaes, aproximadamente 4.000 peças em cerâmica, madeira, cestaria, gesso, gravuras em nanquim e desenhos a lápis, além de um razoável conjunto de escritos que envolvem lendas, contos, crônicas e cartas, todos resultados do trabalho de 30 anos do escritor junto a população ilhoa coletando depoimentos, histórias e estórias místicas em torno das bruxas, herança cultural açoriana. Por sugestão de Elys Regina Zils, Franklin Cascaes é o artista convidado da presente edição de Agulha Revista de Cultura.

 


Agulha Revista de Cultura

Número 261 | junho de 2025

Artista convidado: Franklin Cascaes (Brasil, 1908-1983)

Editores:

Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com

Elys Regina Zils | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2025


∞ contatos

https://www.instagram.com/agulharevistadecultura/

http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/

FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com

 



 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário