domingo, 25 de outubro de 2015

ALEXANDRE PILATI | Bem-vinda, voz maldita


Não há outro acontecimento mais importante para a poesia brasileira em 2013 do que o lançamento pela CosacNaify de Ximerix, do veterano Zuca Sardan, hoje saudado comoo decano dos poetas malditos. Desde 1957, o velho Zuca, ou Carlos Saldanha, dá ao público uma originalíssima maneira de fazer poesia. Seus versos fundem matrizes das vanguardas a uma disposição popular e modernista para destronar os solenismos literários com força de fabulador bufão incomparável.
Trata-se de consequente e hábil utilização contemporânea do humor como crítica atilada e séria, o que o vincula a uma tradição da melhor sátira ocidental, onde encontramos as vozes malditas que olharam os “de cima” por um prisma que carrega a verdade dos “de baixo”, mostrando o despropósito que há no mundo protocolar, conforme o aceitamos e o levamos “a sério”. Essa crítica, em Sardan, atinge em cheio aquela velha pompa e circunstância aristocrático-religiosa que cerca o campo literário (em termos modernos, ao menos desde o século 18), sempre cheio de sabichões metidos a besta, normalmente insensíveis para o que realmente importa na arte de escrever, ou seja, o encontro realista, olho no olho, com nossa frágil humanidade.
Pode-se pensar que é fácil rir e fazer rir. Todavia, muito difícil é dar consistência estética e nervo crítico ao riso tornado forma literária, como faz este antigo maldito em seu Ximerix. Pensando na continuidade formativa da literatura brasileira, não devemos nos esquecer de que, também nessa matéria, Machado é o nosso grande mestre e Dalton Trevisan e Chico Alvim, seus continuadores contemporâneos.Seguindo essa esteira, Ximerix apresenta seu peculiar molde escarninho à maneira de uma animada ópera bufa. Aí está o centro da agitação que dá inigualável qualidade literária ao livro, cujos poemas provocam o leitor com uma indocilidade simpática e convidam-no a entrar numa espécie de cabaré mítico (seja a Ópera Garnier, ou uma “birosca proleta”), onde rola uma jogatina literária chistosa.
O alcance estético de Ximerix deve-se a uma dialética básica entre unidade e multiplicidade. No campo da multiplicidade, veremos elementos do épico como resíduo anacrônico num mundo sem heróis, da lírica no que se refere ao encantamento desenganado e autoirônico das sonoridades e versificações e, por fim, elementos residuais de um drama bufão, que já não se pode escrever no todo, mas que é a grande força tópica para a fluidez crítica de Ximerix.
Nessa dança entre gêneros (que inclui ainda piada, cordel, cartum, charge) a forma poética delira (graças ao absinto?), lembrando eflúvios do melhor surrealismo. O efeito geral de nonsense que encontramos nos versos, contudo, tem muito siso e propósito, caso o leitor deseje apreciar tudo isso como um bem montado “mosaico maldito”, cujas divergências reforçam o todo complexo de recursos estilísticos colhidos à tradição literária e mobilizados sem ingenuidade fetichista.




POPULAR E ERUDITO | Diríamos, a partir daí, que tudo isso se dá, em termos estruturais, graças a uma contradição basal entre os estilos alto e baixo, entre o popular e o erudito, entre o velho como velharia e o novo como intransigência e, sobretudo, nos termos da sociedade ocidental, entre os “de baixo” com seus recursos estéticos de riso crítico, e os “de cima”, com sua pompa, circunstância e afetação reificadas, sendo estes os dados que Ximerix amaldiçoa derrisoriamente. Assim, a velha casaca dos letrados de antanho, empoeirada e carcomida (onde o “baratão” do primeiro poema do livro não se cansa de pousar), conforme nos é apresentada, ajuda a enxergar criticamente, em travo bem-humorado, a impropriedade aristocrática também dos letrados de hoje. A unidade desses elementos múltiplos será garantida, entretanto, pela consistência dos procedimentos da “remixagem” e do “lance de dados”, (re) inventados por Zuca, para amarrar um poema ao outro numa sequência de vertiginosa ironia tornada forma densa. Mas também garante a unidade de Ximerix a voz dos poemas.
Essa voz pode-se caracterizar como um remix à brasileira do velho Polichinello, ou de um Macunaíma cosmopolita e letrado, sendo, de toda forma, a de um acrobata verbal burlesco. Este personagem que fala em Ximerix ri de tudo, mas, sobretudo, arma seu riso em sentido vertical, sempre de baixo para cima, porque sua voz está fincada com vontade na atual barafunda contemporânea. Desse modo, Ximerix move-se com velocidade e leveza impressionantes dentro do universo literário, com sua pompa e circunstância, passadas e atualíssimas. Na sua dicção de riso e de trato estrutural crítico com a língua literária e com os gêneros poéticos, Zuca carregaria algo daqueles que deste mundo das letras não participam?
Carregaria algo daqueles que, de fora, não se furtam a avaliar tudo como um imenso e brilhante despropósito, embalado pela afetação esboroada dos que se levam a sério demais?
Neste ponto estaria, então, um depoimento de Ximerix sobre o estranho planeta contemporâneo, cada vez mais modernizado, mas quase sempre “de pernas pro ar”, meio como quem vai desajeitadamente dos astros ao brejo no breve interlúdio de alguns versos: “… cometa!…/ que voa louco/e louco voa/e cai e cai/se apaga/gorgoleja/ e afunda/ no brejo/ sumiu”. Por isso: seja bem-vinda hoje a maldita voz de Zuca Sardan.





[Correio Braziliense. Brasília, sábado, 12 de outubro de 2013.]







Nenhum comentário:

Postar um comentário