Trata-se de consequente
e hábil utilização contemporânea do humor como crítica atilada e séria, o que o
vincula a uma tradição da melhor sátira ocidental, onde encontramos as vozes
malditas que olharam os “de cima” por um prisma que carrega a verdade dos “de
baixo”, mostrando o despropósito que há no mundo protocolar, conforme o
aceitamos e o levamos “a sério”. Essa crítica, em Sardan, atinge em cheio
aquela velha pompa e circunstância aristocrático-religiosa que cerca o campo literário
(em termos modernos, ao menos desde o século 18), sempre cheio de sabichões metidos
a besta, normalmente insensíveis para o que realmente importa na arte de
escrever, ou seja, o encontro realista, olho no olho, com nossa frágil humanidade.
Pode-se pensar que é
fácil rir e fazer rir. Todavia, muito difícil é dar consistência estética e nervo
crítico ao riso tornado forma literária, como faz este antigo maldito em seu Ximerix.
Pensando na continuidade formativa da literatura brasileira, não devemos nos
esquecer de que, também nessa matéria, Machado é o nosso grande mestre e Dalton
Trevisan e Chico Alvim, seus continuadores contemporâneos.Seguindo essa
esteira, Ximerix apresenta seu peculiar molde escarninho à
maneira de uma animada ópera bufa. Aí está o centro da agitação que dá inigualável
qualidade literária ao livro, cujos poemas provocam o leitor com uma
indocilidade simpática e convidam-no a entrar numa espécie de cabaré mítico
(seja a Ópera Garnier, ou uma “birosca proleta”), onde rola uma jogatina literária
chistosa.
O alcance estético de Ximerix
deve-se a uma dialética básica entre unidade e multiplicidade. No campo da
multiplicidade, veremos elementos do épico como resíduo anacrônico num mundo
sem heróis, da lírica no que se refere ao encantamento desenganado e
autoirônico das sonoridades e versificações e, por fim, elementos residuais de
um drama bufão, que já não se pode escrever no todo, mas que é a grande força tópica
para a fluidez crítica de Ximerix.
Nessa dança entre
gêneros (que inclui ainda piada, cordel, cartum, charge) a forma poética delira
(graças ao absinto?), lembrando eflúvios do melhor surrealismo. O efeito geral de
nonsense que encontramos nos versos, contudo, tem muito siso e propósito, caso
o leitor deseje apreciar tudo isso como um bem montado “mosaico maldito”, cujas
divergências reforçam o todo complexo de recursos estilísticos colhidos à
tradição literária e mobilizados sem ingenuidade fetichista.
POPULAR E ERUDITO | Diríamos, a partir daí,
que tudo isso se dá, em termos estruturais, graças a uma contradição basal
entre os estilos alto e baixo, entre o popular e o erudito, entre o velho como
velharia e o novo como intransigência e, sobretudo, nos termos da sociedade
ocidental, entre os “de baixo” com seus recursos estéticos de riso crítico, e os
“de cima”, com sua pompa, circunstância e afetação reificadas, sendo estes os dados
que Ximerix amaldiçoa derrisoriamente. Assim, a velha casaca dos
letrados de antanho, empoeirada e carcomida (onde o “baratão” do primeiro poema
do livro não se cansa de pousar), conforme nos é apresentada, ajuda a enxergar
criticamente, em travo bem-humorado, a impropriedade aristocrática também dos
letrados de hoje. A unidade desses elementos múltiplos será garantida,
entretanto, pela consistência dos procedimentos da “remixagem” e do “lance de
dados”, (re) inventados por Zuca, para amarrar um poema ao outro numa sequência
de vertiginosa ironia tornada forma densa. Mas também garante a unidade
de Ximerix a voz dos poemas.
Essa voz pode-se
caracterizar como um remix à brasileira do velho Polichinello, ou de um
Macunaíma cosmopolita e letrado, sendo, de toda forma, a de um acrobata verbal
burlesco. Este personagem que fala em Ximerix ri de tudo, mas,
sobretudo, arma seu riso em sentido vertical, sempre de baixo para cima, porque
sua voz está fincada com vontade na atual barafunda contemporânea. Desse
modo, Ximerix move-se com velocidade e leveza impressionantes
dentro do universo literário, com sua pompa e circunstância, passadas e atualíssimas.
Na sua dicção de riso e de trato estrutural crítico com a língua literária e
com os gêneros poéticos, Zuca carregaria algo daqueles que deste mundo das
letras não participam?
Carregaria algo daqueles
que, de fora, não se furtam a avaliar tudo como um imenso e brilhante
despropósito, embalado pela afetação esboroada dos que se levam a sério demais?
Neste ponto estaria,
então, um depoimento de Ximerix sobre o estranho planeta contemporâneo,
cada vez mais modernizado, mas quase sempre “de pernas pro ar”, meio como quem
vai desajeitadamente dos astros ao brejo no breve interlúdio de alguns versos:
“… cometa!…/ que voa louco/e louco voa/e cai e cai/se apaga/gorgoleja/ e
afunda/ no brejo/ sumiu”. Por isso: seja bem-vinda hoje a maldita voz de Zuca
Sardan.
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