CA | Zuca, monto
rapidamente o altarzinho que deve presidir esta nossa conversa. Lá estão de
santinhos: Alice, Père Ubu, Isidore Ducasse, o Barão de Itararé, Max Ernst, O
Thesouro da Juventude… Todos de sua devoção. Faça uma oração para eles.
ZS | Alice tem o
charme de malícia-vitoriana-feminina em
estado de graça encacheada na inocência infantil aureolada pelo insubmergível Sol do Império
Britânico, convencidos, então, a Rainha e seus súditos, com a mesma inocência de
Alice, de sua missão civilizadora e
catequizadora mundial, clima benfazejo que arrebatava Lewis Carrol no
erotismo platônico supino em que gozou e escreveu sua Obra Prima. Este mesmo
clima involve o saudoso Thesouro da Juventude, e, no Brasil, se refletiu na
concepção Luso-Tropical de Gilberto Freyre e no Sítio do Picapau Amarelo de
Monteiro Lobato. Também Alfred Jarry, espertíssimo menino contemporâneo de
Alice, com seus coleguinhas de Lyceo, escrevendo juntos a peça do Père Ubu,
representada no teatrinho de cartolina do Alfredinho, estavam envoltos no mesmo
imaginário colonial europeu (o Império francês de então, queria competir com o
britânico). Apenas os meninos, com
liberdade mental de infantis peralvilhos, tratavam todos os ideais
filosóficos e artísticos da época com alegre molecagem e irreverência. Mas
esses mesmos meninos, passada a puberdade e atingida a plena mocidade, perderam
a graça infantil. Enquanto os antigos colegas relegaram Ubu pra categoria de
meras baboseiras infantis, Jarry guardou
zelosamente o humor espontâneo de pirralho e o transportou pra idade adulta com
a peça do Père Ubu praticamente inalterada mas transformada, tão só no
conceito, pela sua percepção como Arte. Exclusivamente graças ao gênio de
Jarry, assim, Ubu foi o primeiro “Ready-Made”, antecedendo por duas décadas, a
famosa Monalisa de bigodes, do Marcel Duchamp. Não creio que o Barão de Itararé
tenha lido Jarry, mas, por insondável mystério, recriou espontaneamente a
Pataphysica no Brasil: o mesmo humor crítico, voltado não ao ataque frontal do
Pressuposto, mas sim à absorção deste
mesmo Pressuposto, em humor-de-segundo-grau.
CA | O Lyceo
Phythanga, o Theatro Morpheo, o Circo Pery, a Graffica Gralha… são poderosas
instituições sardânicas, pontas de lança de um altaneiro pensamento libertário
que espetam tudo que aporrinha e que agacha os homens; e que instalam no
espírito daqueles que têm a felicidade de frequentá-las o estado da sonhada
revolução permanente. Fale-nos um pouco delas.
ZS | O Lyceo, o
Circo, a Graffica.. são instituições pataphysicas que, pelo mesmo processo de
humor-de-segundo-grau, se incorporam no Pressuposto Geral, numa possessão às
avessas das usuais : em vez de um médium ser possuído por um Santo ou pelo
espírito de um falecido, aqui é o Pataphysico que se incorpora no Pressuposto,
que passa, possuído, a falar com a voz do Artista, num gozo platônico
comparável ao de Lewis Carrol com Alice.
CA | E também da
cola e do Gigante Belfedor, intrigantes tema e personagem nascidos de suas
vivências escolares.
ZS | (a) Gigante
Belfedor é o Burro Poderoso que esbordoa os fregueses da taberna, não paga a
conta e come caramujos, mexilhões e bacalhau por sete marujos.Trata-se do Père
Ubu do Povão, É ao mesmo tempo temido e admirado pelos fregueses que são atraídos
por sua arrogância e porradas, o que garante, ao final, a extraordinária
frequência e o sucesso crescente da taberna.
(b) Cola
tem, como genial precursor, Marx Ernst nas suas colagens de 'Une Semaine de
Bonté' (1926), série de gravuras que preparou usando exclusivamente tesoura e
cola, pra recortar, misturando nacos, antigas gravuras dos 1900s. A colagem dos
Cubistas, liderados por Picasso e Braque, é anterior mas apenas no recurso de utilização em quadro de composição
cubista, não indo ao real conceito da Cola que é a reciclagem e transformação
duma obra anterior pra criar qualquer coisa de inteiramente diferente.
CA | Zuca, você
seria capaz de descrever para os moços de hoje o ar que respirava ou melhor
suspirava nos seus anos de moço da década de cinquenta do século findo; o seu
élan vital, em que se mesclavam desejos de arte, vida, amor e aventura, pondo,
conforme diz num de seus versos, senão a nu, que seja de pijama seu coração?
ZS | Minha vida
de hoje é uma cola e reciclagem inexorável e total de minha infância e
juventude. Cacos e destroços, e o osso do coração… Dos cacos montar uma nova
infância e uma nova mocidade, agora mentais, pra alegrar e inspirar o bom
velhote. Como tenho por natureza e formação a cabeça dividida, pude filtrar e
integrar várias metamorfoses pessoais e sociais. De uma infância francesa a uma
juventude americana seguindo a mudança do imaginário europeu de antes da Grande
Guerra ao imaginário americano que se impôs no pós-guerra. Conheci Paris no
final dos 50s, ainda o Vieux Paris, com caixas de correio-pneumático, o Louvre e Notre-Dame pretos com a pátina dos
séculos, e os encardidos prédios de seis andares… a Velha Europa que inspirou
Lúcio Costa na criação do gabarito de seis andares pra Brasília… Em 1964, com
os Beatles e os Rolling Stones começa a Grande Revolução, que com a Pop Art
norte-americana no setor das plásticas, arrasou de vez com o Velho Mundo. Era o
começo do Terceiro Milênio que ora pouco ou nada tem a ver com o mundo de nossa
mocidade. Só sobraram cacos e destroços.
CA | Indo um
pouco mais longe e mais atrás e invocando a anedota - injuriosa segundo alguns, deliciosa segundo
outros - de que no Brasil há três coisas em que não se pode confiar: coragem de
gaúcho, dinheiro de paulista e caráter de mineiro; e invocando sobretudo seu
insuperável conhecimento da história pátria, só que com enfoque num período
que, salvo engano, ainda não foi suficientemente escrutinado em suas magistrais
análises e exposições: seus maiores, tanto do lado paterno, quanto, se não
estou equivocado, do materno, são do Rio Grande do Sul; maragatos ou pica-paus?
Gente como nós, não importa que rio-grandenses ou não, de certo modo, viajou na
garupa do Getúlio. Aconteceu com você? Se aconteceu, quais suas impressões de
viagem e a imagem que seus olhos de fedelho guardaram do caudilho e daqueles
tempos que trazem de mistura os de seus ascendentes? Você acredita que então (e
porque não, agora) o gaúcho mandou (manda) e o mineiro interpretou (e segue
interpretando)? E o paulista, como fica? E o Brasil?
ZS | Com Getúlio,
os gaúchos chegaram de vencedores e amarraram as rédeas dos pangarés no
obelisco da entrada da Avenida Rio Branco. Foi-se ao brejo a bacharelesca
República Velha paulista-mineira do café com leite e começou a Nova, inspirada
por ideais socializantes. E o Modernismo Moleque de 22 transformou-se no
Modernismo Caretão dos 30s. Mas com as tensões crescentes na Europa, os
fascistas integralistas de um lado e os comunistas bolchevicões do outro , se
revoltaram contra o antigo aliado e chefe gaucho Getulio, que aproveitou as
deixas e criou o Estado Novo que não era exatamente cara nem coroa, e foi
levando a Ditadura numa aliança de conveniência com os Estados-Unidos. Só
depois que a Guerra acabou, os Militares puderam enfim derrubar Getúlio. Mas
passaram o Governo pro Poder Civil, coisa que acabaram esquecendo de fazer após
derrubarem o Governo (gaucho) Jango em 64, com o apoio moral do mineirão
Magalhães Pinto. Se a pergunta fosse feita nos 70s, eu diria (à socapa) que nem
Gaúchos nem Mineiros, mas sim quem manda mesmo são os Militares. E os Paulistas
?… Com a subida do Lula, ficaram
(politicamente) a ver navios… Mas haja o que houver… os Paulistas serão sempre
os Donos do Baú.
CA | Voltando a
nosso galho: que tal dissertar um pouco, do alto da cátedra de teoria literária
do Lyceo Pythanga, sobre suas últimas invenções formais, os remix, os
macarronix, os grafitti, os nacos de melodramas?
ZS | Lyceo
Pitanga e Circo Pery não sossegam. Sempre aprontam novidades sem me perguntar e
eu sou levado de roldão num torvelinho, de surpresas em surpresas… sem saber
exatamente nem de onde nem porque remix e macarronix surgiram… a escrita automática surrealista em mim se
transformou numa rebelião incontrolável de meus gnomos e fantasmas contra mim,
que estou de aduaneiro entre o Mito e o Mundo. Minha cabeça dividida entre o
totêmico e o racional. Se tomar partido de um, o outro me mata.
Vou assim
levando a minha arte sem fazer perguntas nem cobrar explicações. Lo que será,
será … A título de definição urdida a posteriori, diria que o remix é um
processo de cola e reciclagem de textos alheios, numa alquimia de fusão de meu
pensar com o do personagem colado de
modo a arrancar meu pensamento dos seus próprios moldes, criando, pra mim
próprio, uma nova percepção. O macarronix é minha libertação dos gonzos do
vernáculo de modo a forçar este
vernáculo a conviver com outros idiomas para re-vi-go-rá-lo com a transfusão de
sangue. Não o vernáculo em si, em que convivo mas é de todos brasileiros ; mas sim
este mesmo vernáculo na minha cabeça. Os nacos de melodrama são um estratagema
para dar palco a meus gnomos, sílfides e orixás, e de com eles conviver.
Graffiti, via postal, pra sobrevivência artística.
CA | Zuca,
Surrealismo ou Dada? Surrealismo e Dada?
ZS | Dada tem um
lado de poesia espacial que se manifesta no Concretismo; e outro lado de
revolta moleque selvagem que se manifesta no Surrealismo. Mas os Surrealistas
queriam uma linha, e um engajamento político social. E Dada era uma revolta
contra tudo, inclusive contra Dada. Isso permitiu a Dada que sobrevivesse ao
fim das ideologias, pelo menos das mais explícitas. O triunfante Capitalismo
pra ir levando na maciota, finge que não é ideologia filosófica, seria um mero
processo prático de ordenar a Economia Global. Mas se mete maneiro em qualquer
espaço ideológico, desde que seja rentável.
Assim, Neo-Dada é uma bem montada máquina de explorar Arte, melhor
dizendo Finanz-Markt-Dada.
CA | Confio
em que algumas das passagens desta entrevista hão de trazer para dentro, à
guisa de ilustrações, aquilo que até aqui ficou de fora - seu maravilhoso
traço, pintor carismático que sois de letras e tinhoso escrevinhador de
figuras! Sobretudo egrégio manipulador de tesouras e cola-tudos operosos e
diabólicos que subvertem o mundo. Délavigne passou por aqui e como sei do pacto
que vocês firmaram sob a égide de Sardanapalo e Delacroix pedi a ele que
desferisse a última pergunta.
KAZIMIR DELAVIGNE | Caro Zucca,
gostaria de me referir a seu conselho ao
jovem artista, de sempre começar pela escolha do título. Pergunto se o
título-estopim não reconduziria a uma
imagem primeva, primitiva paixão do poeta, que se busca rememorar na soleira da
caverna de Platão? Ou será "apenas" pretexto aleatório que,
paradoxalmente, se converte em componente fundamental para o processo plástico
ou poético, como via de acesso às verdades universais reveladas pela arte?
ZS | Meu caro
Kazimir Delavigne, magistral teórico da Posteridade Retrospectiva, que nos faz
criar, vivos, obras pros defuntos… Estabelecemos assim, sem mesas de Kardek,
uma rica troca de ideias com os mortos em diálogos que entretemos, liberados do
tempo cronológico, em livros e museus… A
escolha do título deve ser o primeiro conselho aos jovens artistas, especialmente
aos plásticos. Vá você a uma exposição, ou consulte um catálogo ilustrado e se
topará com uma lastimável obviedade : “Mulher sentada”. título dum quadro de
mulher sentada; “Paisagem”, título de um quadro de paisagem ; “Napoleão a
cavalo”, titulo de um quadro de Napoleão a cavalo. Efeito d' escolha
bestificante. Pra combatê-la, é assim aconselhável começar pelo título que deve ser imprevisto e
original, pra provocar o pintor. E é, assim também, um astucioso processo de
abrir uma via de acesso aos mystérios universais bafejados pela Arte.
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