Ginsberg tende a ser lembrado como autor dos poemas longos que o celebrizaram, Uivo, Kaddish (cuja leitura em voz alta demanda mais de uma
hora), The Change, Angkor Wat, Kraj Mahales, Whales Vistation... Para alguns, Uivo, cujo ritmo veloz pode ser associado
à prosódia bop de Kerouac, seria vigoroso, mas prolixo. É um
erro de avaliação, pois, sendo extenso, também é sintético. Suas frases longas são
séries de versos curtos, encadeados; algumas, com a estrutura semelhante ao hai-kai,
três enunciados onde cada um modifica o anterior. Conforme a edição comentada deUivo (Howl,
Harper & Row, 1986: editada por Barry Miles), com o fac-símile de
rascunhos e suas primeiras versões, originariamente esses versos estavam em linhas
separadas, e foram reunidos nas frases longas apenas na última versão.
Em toda a sua poesia, Ginsberg valeu-se da condensação, promovendo uma espécie
de encontro entre Walt Withman, de um lado, e Ezra Pound e William Carlos Williams
de outro. Poemas mais breves e sintéticos confirmam isso. Em um recorte da minha
coletânea de Ginsberg, Uivo, Kaddish
e outros poemas, L&PM. Escolhi três deles, aqui acompanhados pelo texto
original. Têm em comum, não apenas a brevidade, mas o tema, literatura e escritores.
Sobre a obra de Burroughs, On Burroughs work, faz parte de Reality sandwiches, Sanduíches de Realidade, seu quarto livro, de 1963. Mas
é anterior a Uivo, de 1956. Foi
escrito em San Jose, Califórnia, em 1954, enquanto Ginsberg, hospedado em casa de
Neal Cassady, ia recebendo pelo correio, de Tanger, textos que William Burroughs
denominava de routines. Remontados,
viriam a compor Naked Lunch,
terminado em Paris quatro anos depois. O sanduíche da última estrofe leva a concluir
que a tradução adequada de Naked Lunch seria Lanche
Nu, e não Almoço Nu, título
da edição brasileira. É um poema que contém uma poética, idéias sobre criação literária.
Afirma o vínculo de Ginsberg ao objetivismo de Williams. Traduz sua crítica, feita
tantas vezes, ao excesso de abstração do formalismo e a associações demasiado subjetivas (como me escreveu em uma de suas cartas), assim
concordando com Pound, Charles Olson e o próprio Williams, autor do enunciado no ideas but in things,nada de idéias
fora das coisas.
O then and now do final da primeira estrofe como vez por outra foi, evidentemente, por causa da prosódia. Uma
das dúvidas que apresentei a Ginsberg, enquanto o traduzia, referia-se à frase with rare descriptions: a expressão rare corresponde a raro, diferente, especial, mas
também pode significar cru, malpassado, como em rare done meat, bife malpassado. Ginsberg
respondeu que, para ele, os dois sentidos cabiam, e a escolha ficava por conta da
minha sensibilidade (your delicay
of feelings, escreveu). Então, fiz a dupla tradução, obtendo como resultado com raros relatos crus. Acabei utilizando
o mesmo procedimento, dupla tradução de palavras com duplo sentido, em outros trechos,
especialmente em estrofes de Uivo.
Garatuja, Scribble,
também de Reality Sandwiches, foi
escrito em Berkeley, em 1956. É sobre Kenneth Rexroth (1905-1983), poeta e anarquista,
figura central do movimento de renovação literária na Costa Oeste americana que
viria a resultar na San Francisco Renaissance e na Beat. Foi o apresentador da histórica
leitura de poesia da Galeria Six, a 13 de outubro de 1955, quando Ginsberg leu Uivo pela primeira vez em público, em companhia de
Michael MacClure, Philip Lamantia, Gary Snyder e Philip Whalen. Para minha surpresa,
Ginsberg observou que achava este poema menor, minor. Talvez isso refletisse sua relação
ambivalente com Rexroth, que reconheceu a genialidade de Uivo, mas detestou as routines, os trechos de Naked Lunch que chegou a ver. O bigode tagarela do poema, gassy mustache, onde gassy pode ser falante tagarela, segundo o que Ginsberg
me informou, estaria associado a sua visão de Rexroth, vinte anos mais velho que
ele, parado debaixo de um antigo lampião de rua de gás.
Para Lindsay, To Lindsay, foi musicado e gravado em CD
pelo artista gaúcho Vitor Ramil. Publicado inicialmente emKaddish, de 1961,
foi escrito em Paris em 1958, durante a famosa estada de Ginsberg, Peter Orlovsky
e Gregory Corso no Beat Hotel. É um dos inumeráveis poemas sobre suicidas e escritores
prematuramente mortos. Sob esse aspecto, relaciona-se a outros da mesma época, como No túmulo de Apollinaire e Morte
à orelha de van Gogh! Vachel Lindsay
(1879-1931), autor de Congo Bongo,
viajava pelo país declamando seus poemas e suicidou-se com veneno. O verso a mão de sombra encosta uma pistola em sua
cabeça, the shadow hand lifts up
a pistol to your head, é licença poética. Na edição definitiva de seus poemas
(Collected Poems, 1947-1980, Harper & Row, 1984), Ginsberg corrigiu-o
para the shadow hand lifts a Lisol bottle
to your head, a mão de sombra ergue
uma garrafa de Lisol até sua cabeça. Deve ter feito isso de última hora, pois
não constava da lista de atualizações e mudanças de textos que me havia enviado.
Fiquei com a primeira versão, factualmente incorreta, mas literariamente melhor.
SOBRE A OBRA DE BURROUGHS
O método deve ser a mais pura carne
e nada de molho simbólico,
verdadeiras visões & verdadeiras prisões
assim como vistas vez por outra.
e nada de molho simbólico,
verdadeiras visões & verdadeiras prisões
assim como vistas vez por outra.
Prisões e visões mostradas
com raros relatos crus
correspondendo exatamente àqueles
de Alcatraz e Rose.
com raros relatos crus
correspondendo exatamente àqueles
de Alcatraz e Rose.
Um lanche nu nos é natural,
comemos sanduíches de realidade.
Porém alegorias não passam de alface.
Não escondam a loucura.
comemos sanduíches de realidade.
Porém alegorias não passam de alface.
Não escondam a loucura.
GARATUJA
Rexroth, seu rosto refletindo a cansada
bem-aventurança humana
Cabelo branco, sobrolho vincado
bigode tagarela
flores jorrando
da cabeça triste,
ouvindo Edith Piaf e suas canções de rua
enquanto ela passeia com o universo
e toda a sua vida que passou
e as cidades que desapareceram
só ficou o Deus do amor
sorrindo
bem-aventurança humana
Cabelo branco, sobrolho vincado
bigode tagarela
flores jorrando
da cabeça triste,
ouvindo Edith Piaf e suas canções de rua
enquanto ela passeia com o universo
e toda a sua vida que passou
e as cidades que desapareceram
só ficou o Deus do amor
sorrindo
Vachel, as estrelas se apagaram
a escuridão caiu na estrada do Colorado
um automóvel rasteja lento na planície
pelo rádio ressoa o clangor do jazz na penumbra
o inconsolável caixeiro viajante acende mais um cigarro
Há 27 anos em outra cidade
eu vejo sua sombra na parede
você de suspensórios sentado na cama
a mão de sombra encosta uma pistola em sua cabeça
seu vulto cai no assoalho
a escuridão caiu na estrada do Colorado
um automóvel rasteja lento na planície
pelo rádio ressoa o clangor do jazz na penumbra
o inconsolável caixeiro viajante acende mais um cigarro
Há 27 anos em outra cidade
eu vejo sua sombra na parede
você de suspensórios sentado na cama
a mão de sombra encosta uma pistola em sua cabeça
seu vulto cai no assoalho
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Aline Daka é artista visual, ilustradora
e quadrinista. Formada em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da UFRGS com passagem
pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, em Portugal. É ilustradora
da (n.t.) Revista Literária em Tradução,
curadora do Suplemento de Arte e atualmente
publica em parceria com Vicente Pietroforte a HQ Eunice mora no penúltimo andar na página web da Pararraios Comics.
Organização a cargo de Floriano
Martins © 2016 ARC Edições
Artista convidado | Aline
Daka
Imagens © Acervo Resto do
Mundo
Esta edição integra o projeto de séries especiais
da Agulha Revista de Cultura, assim
estruturado:
S1 | PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC
FASE I (1999-2009)
S2 | VIAGENS DO SURREALISMO
S3 | O RIO DA MEMÓRIA
A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial
de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia.
No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o
título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins.
Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de
Floriano Martins e Márcio Simões.
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