1. NOS TEMPOS DA UNIVERSIDADE | Na segunda metade dos anos 1960 vinha eu do
Piauí para Fortaleza movido por dois grandes sonhos: a universidade e a carreira
musical (essa alimentada pelas notícias da chegada da televisão na capital alencarina).
É que na minha terra natal, Piripiri, eu já encantava as garotas com minhas composições
interpretadas nas serenatas pelas madrugadas, e achava pouco. Queria muito mais!
E também me divertia nos programas de rádio de Teresina, onde estudava. Cheguei
em Fortaleza no início de 1967. Nesse ano prestei vestibular para cursar Direito
na UFC e meu irmão Emanuel Carvalho, prestou para Medicina. E logo no início de
1968 o Emanuel chega pra mim com a notícia de que na sua turma tem um cara igual
a mim, segundo ele, que “fica todo tempo criando versos e tocando violão”. E ele
levou até onde eu morava numa republica estudantil o tal colega de turma. Assim
conheci o Belchior em março de 1968. Claro foi como cair a sopa no mel. Fiquei imediatamente
ligado a ele e ele a mim. Frequentei sua casa e ele visitava muitas vezes o meu
canto, um apê de apenas um cômodo na Av.
Duque de Caxias.
Nossas
discussões no universo artístico eram influenciadas pelos temas políticos próprios
dos movimentos estudantis daqueles tempos difíceis. Eu gostava de conversar sobre
aquele dualismo que preocupava Mário de Andrade: por um lado a arte brasileira,
pelo outro a arte internacional. Discussões éticas sobre o “primitivismo” ou o “exorcismo
divertido”, e ainda o “esquisito apimentado”. Ou ainda a recusa a esse universalismo.
Vivia a pensar se iríamos trabalhar com códigos populares ou com códigos eruditos?
Perguntava sempre isso aos colegas da aventura musical. Era uma chatice ficar ouvindo
coisas como: ”isso não é ritmo brasileiro”; “agora, sim… isso, sim é de nossa terra
e nossa gente…!” Eu, na qualidade de compositor brasileiro não me vi obrigado a
utilizar essas fórmulas estabelecidas. Essa discussão me incomodava…! E foi conversando
com alguns compositores contemporâneos que fui sentindo mais conforto com a liberdade
de criar sem tanta obediência a ritmos e fórmulas. É claro que ouvíamos Luiz Gonzaga,
mas também se ouvia Tom Jobim, João Gilberto e Egberto Gismonti. Assim creio que
nossa música, e, a de minha geração foi se soltando e sentindo liberdade para criar…!
No
ano seguinte 1969, depois de participação em vários festivais de música local, e
tendo nos saído bem nesses eventos, fomos eu e Belchior, convidados para dirigir
a parte musical de um programa na TV Ceará: PORQUE HOJE É SABADO, sob a regência
de Gonzaga Vasconcelos. E ali foi um dos embriões do que se tornou conhecido por
“Pessoal do Ceará”. Nos festivais eu e ele conhecemos a rapaziada que fazia música
em Fortaleza, mas não tínhamos intimidade com essa turma. Nossos encontros com essa
turma no começo eram encontros formais. Com o programa na TV houve um amadurecimento
dessas amizades e logo nos sentimos enturmados. Os encontros se estendiam ao ambiente
universitário, principalmente na Faculdade de Arquitetura e aos bares, como o Balão
Vermelho na Av. Duque de Caxias e também num bar ao lado da TV Ceará que tratávamos
por “Gerbô”. E logo nos reuníamos no Bar do Anísio na Av. Beira Mar, vizinho à casa
do Cláudio Pereira.
Lá
no Bar do Anísio encontramos todos aqueles amigos que conhecemos nos festivais,
na TV e nos outros bares da cidade. Éramos uma família agora. Irmãos inesquecíveis:
Petrúcio Maia, Cláudio Pereira, Augusto Pontes, Rodger Rogério, Tetty, Fausto Nilo,
Mércia Pinto, Chica (Francisca Nepomuceno), Ieda Estergilda, Antonio José Brandão,
Dedé, Ednardo, Cirino, Fagner, Ricardo Bezerra, Olga, Delberg, Sérgio Pinheiro,
Amelinha, Belchior e eu, Jorge Mello. Uma delícia estar com esses amigos…!
No
ano seguinte passamos eu e Belchior, a dirigir a parte musical de outro programa
na TV Ceará: GENTE QUE A GENTE GOSTA (também sob o comando de Gonzaga Vasconcelos).
E ainda na universidade eu e Belchior em parceria criamos uma trilha musical para
o texto de teatro de Eduardo Campos “O MORRO DO OURO”, peça que foi montada sob
a Direção de Haroldo Serra e com a Direção Musical minha. O espetáculo foi inscrito
no Festival de teatro de São José do Rio Preto. E esse fato foi muito importante
para meu desligamento do Nordeste e ajudou na minha decisão na busca da carreira
profissional de cantor/compositor no eixo Rio e São Paulo. Era o que eu esperava
para ir embora definitivamente e tentar a carreira no chamado “Sul Maravilha”. Ainda
sobre esse espetáculo, devo observar que foi montado também no Rio de Janeiro em
1972 e em São Paulo em 1976, sempre com grande sucesso de crítica e de público,
tendo nas três montagens, minha mulher Teca Melo no principal papel feminino e eu
no principal papel masculino, acumulando também a Direção Musical.
No
dizer de Gilmar de Carvalho (jornalista, professor da UFC e Doutor em Comunicação
e Semiótica pela PUC/SP): “Na terceira fase vieram a televisão e os festivais. Os
programas “Porque Hoje é Sábado” e “Gente que a Gente Gosta”, na TV Ceará, ambos
produzidos e apresentados por Gonzaga Vasconcelos, passaram a recrutar o pessoal
novo. Então pintou a possibilidade de mostrar um trabalho para um público maior,
de se encarregar da direção musical: era a fase da aprendizagem. Os festivais, por
sua vez, ao invés de separar, pelo caráter de competição, juntavam mais a turma.
Era a certeza de que havia um trabalho, um processo e de que todo mundo estava perseguindo
a mesma meta, apesar de serem diversos os caminhos. E houve o Festival Aqui, promovido
pela Rádio Assunção e pelos diretórios acadêmicos das escolas de Arquitetura e Serviço
Social e Orgacine, em cujos estúdios, em Fortaleza, foi gravado o LP artesanal,
depois prensado pela Companhia Industrial de Discos. Depois vieram os festivais
promovidos pelo DCE, TV Tupi, o Nordestino, também pela TV Tupi, e o de música de
carnaval, pela cervejaria Astra. Nomes como o de Rodger Rogério, Ricardo Bezerra,
Petrúcio Maia, Belchior, Ednardo, Fagner, Lauro Benevides, Jorge Mello, Cirino,
Luis Fiuza, Ribamar, Dedé, Braguinha, Sergio Pinheiro, e Maninho despontavam.
Então
o pessoal começou a se mandar. O êxodo seria a quarta fase. Era a consciência da
qualidade do trabalho e a constatação de que fora do Rio-SP, centros de geração
e difusão de ideias e atitudes, era inútil insistir. Faltaria ressonância ao trabalho
e nenhuma proposta e arte sobrevivem dissociadas do púbico que ela visa atingir.
Foi-se a primeira leva. Belchior trancou a matrícula do curso de Medicina e se mandou,
cantou na “barra pesada” e venceu com “Na hora do Almoço” um festival universitário
de âmbito nacional. Era o começo. Jorge Mello foi dos primeiros a emigrar. Ednardo
e Fagner foram depois.”
2. A PROFISSIONALIZAÇÃO NA MÚSICA | Há um dado de suma importância que não apareceu
ainda nos estudos da trajetória de todos nós. Tanto por aqueles que entendem ter
havido um movimento (“Pessoal do Ceará”), ou por aqueles que entendem que não houve
movimento nenhum e que tudo foi apenas um grupo de vários músicos atuando em carreiras
individuais. Devo explicar que logo que chegamos ao Rio de Janeiro, conhecemos o
casal Reinaldo Zandrand e Cássia Zangrand, que nos recebeu em sua casa como se fôssemos
filhos. Nos trataram como filhos, fornecendo alimentos e vestuário. Também foram
os fiadores do apartamento em que morei com Teca Melo, em Copacabana, tendo a companhia
em casa de Belchior, Fagner e Cirino, que moravam comigo. Esses amigos que conhecemos
no Rio de Janeiro nos apresentaram a todas as pessoas importantes do meio artístico,
os convidando para virem a sua casa só para nos ouvir cantar e nos conhecerem. E
isso acontecia todos os dias, de segunda a segunda. Creio e tenho certeza de que
sem essa força de Reinaldo e Cássia, as coisas teriam sido bem mais difíceis para
todos nós, artistas do nordeste buscando nossos espaços. Outro casal que foi muito
importante na divulgação de nossas presenças no eixo Rio - São Paulo, foi o Manuel
Carlos e Cidinha Campos, ele hoje autor de novelas da Rede Globo, ela é hoje Deputada
Estadual pelo Rio de Janeiro. Foram pessoas que também muitas vezes programaram
em sua casa encontros objetivando nos apresentar àqueles que consideravam importantes
para nossas carreiras. Cidinha Campos foi quem nos deu o maior incentivo quando
ainda estávamos em Fortaleza. Em São Paulo, tivemos outra madrinha inesquecível,
Antonieta Felmanas, que fez o mesmo que os anteriores. Colocou-nos no centro dos
acontecimentos culturais da capital paulista. Mantenho amizade com essas pessoas
até hoje. E no caso dos falecidos, a amizade continua com seus filhos e netos. São
importantes na minha vida. Inesquecíveis. Sem eles, as coisas teriam acontecido
com maiores dificuldades para todos nós. Não esqueço amigos que se mostraram interessadas
em nosso trabalho, programando em suas casas verdadeiros saraus que iam até o amanhecer
do dia, onde pudéssemos apresentar nossa música e nossa obra aos convidados. Nos
deram visibilidade. Nossa vida teria sido muito mais difícil e possivelmente teríamos
tido maiores dificuldades para criar laços de amizade com os grandes artistas, produtores,
executivos de gravadoras e ainda homens da publicidade. Tenho um diário que conta
essa aventura, onde registrei data e hora em que cada uma das pessoas que nos ajudaram,
produziram, ou patrocinaram estiveram conosco pela primeira vez. Não posso deixar
de falar da importância desses amigos que nos recebiam em suas casas com a única
finalidade de nos apresentar a importantes figuras da TV, do rádio e do “show business”,
tanto do Rio de Janeiro quanto de São Paulo.
Fica aqui o meu agradecimento. Estendo esse agradecimento também a Simon
Bau e Irede Cardoso que além de nos oferecer uma casa para morar em São Paulo, nos
recebiam em seu lar para ensaios e encontros artísticos.
Devo
também ressaltar que naqueles dias em que moramos no Rio de Janeiro, eu, Teca, Belchior,
Fagner e Cirino, pouco me interessei por vender a ideia de um grupo musical ou de
um movimento cultural organizado. Éramos, identificados, sim por “um pessoal do
Ceará”, nunca, como ficou conhecido após a chegada do Ednardo, Rodger e Tetty que
criaram o “Pessoal do Ceará” conhecido como um conjunto musical que alcançou grande
sucesso, depois abrindo para a ideia de um movimento cultural. Vejo as coisas como
vê o Fausto Nilo quando diz: “De certa forma os principais artistas e criadores
envolvido nos projetos “Soro” e “Massafeira”, são originários do mesmo chamado “Pessoal
do Ceará”, designação por mim constantemente rejeitada pelo seu significado regionalista
e por sua estreiteza como âmbito cultural artificial que nos confina a um recanto
de artistas não incluído nas escalas nacionais” (NILO, Massafeira – 30 anos. Fortaleza
Edições Musicais. 2010. p.138).
No
trabalho diário com a atividade musical, me tornei o maior parceiro de Belchior.
Trabalhamos juntos em composições que foram nascendo naturalmente pela presença
e aproximação e convivência no ambiente de trabalho e no ambiente familiar. Primeiro
ainda no Rio de Janeiro à partir de 1971 o poeta morou em minha casa por três anos.
Depois em São Paulo, nos tornamos sócios da PARAISO DISCOS e da EDITORA MUSICAL
CONSTELAÇÕES, o que nos fez trabalhar sob o mesmo teto por duas décadas. Posso afirmar
que nessa convivência, fui o leitor privilegiado, aquele que primeiro pôs os olhos
no que o poeta escreveu. Ele também foi o primeiro leitor de tudo que escrevi. E
nesse ambiente de trabalho, de criação, de estudos, de leitura, tínhamos altos papos,
conversações infindáveis dentro das noites, sobre música, filosofia, artes plásticas,
teologia e literatura. Fazíamos infinitas leituras comentadas das mais variadas
obras da literatura universal. Foram momentos inesquecíveis e de grande aproveitamento
para minha formação e para a qualidade de minha música, poesia e demais escritos.
Principalmente de meus poemas. No meu livro BENEDICTUS – UMA AVENTURA DE MAGIA,
escrevo na contracapa: “Agradeço ao parceiro de tantas canções que compomos juntos,
Belchior, que foi o primeiro a por os olhos nesses escritos, …” As outras obras
minhas como ensaios, monografias, ficção, têm pitacos, comentários e revisões da
língua e da estética feitas pelo parceiro/amigo, poeta Bel.
Quando
o sucesso chegou ao meu amigo e parceiro, com o reconhecimento do trabalho autoral
conversamos profundamente sobre a situação dos Direitos Autorais no Brasil. Esse
assunto me interessava. Belchior sabia disso. Analisávamos o que acontecia naquele
momento em que os grandes nomes da MPB contestavam a forma de administrar e arrecadar
tais direitos. Éramos ligados a entidades, a associações de classe, mas, combatemos
aquelas entidades e a forma de como praticavam suas atividades. Fomos presentes
nessa luta por melhores leis autorais e melhores formas de sua arrecadação. Essa
batalha motivou a necessidade de o compositor ter maior controle de sua produção.
Como enfrentar os usuários das obras musicais: gravadoras, editoras musicais, intérpretes,
produtores de eventos, empresas de radiodifusão, TVs e outros usuários. Havia uma
insatisfação quanto aos contratos de edição com cessão de direitos. Esse tipo de
contrato era defendido pelo sistema com argumentos econômicos e não políticos. Era
uma discussão antiga, vinha desde os tempos da Bossa-Nova. Nesse ambiente de acirrada
discussão, momento em que a SICAM (Associação de Compositores e Autores Musicais),
publicou um edital no Jornal da Tarde de 6/2/1975, em que nos chama de “subversivos”
e até expulsou de seu quadro alguns compositores, nós os novos autores nos sentíamos
sem pai, nem mãe, nem terreno para pouso. Eram momentos difíceis…! Os que entravam
com alguma proposta para discussão eram tratados como “arrogantes”. Foi nesse ambiente
quente de ideias e de mudanças, que um dia Belchior me chama a sua casa e lá ele
sabe por mim que eu abri uma produtora de eventos. Ele queria saber mais sobre essa
coisa de administrar seu próprio negócio. Me fazia perguntas diretas e cheias de
curiosidade. “Jorjão tu sabe cuidar disso, dessas coisas aí, empresa, contador…
impostos, essas coisas?” Eu afirmava que sim. Que me vi forçado a ter minha empresa,
por não ter empresário. Por necessitar trabalhar, fazer shows, eventos em entidades
que exigem nota fiscal de serviços. Foi por isso que abri a TERRAMAREAR ATIVIDADES
ARTÍSTICAS naquela ocasião. Empresa em que uma das atividades era a venda de shows
e a outra era a de gravação sonora de “jingles” (trilhas de publicidade) e gravação
de discos.
Havia
uma nova tendência dentro da música brasileira, no dizer da matéria publicada no
Jornal Opinião no dia 07 de 1975, intitulada: PROFISSÃO: ARTISTA; CATEGORIA: AUTÔNOMO,
da jornalista e crítica de música Ana Maria Bahiana. (Esse texto foi publicado no
seu livro: “Nada Será Como Antes – MPB nos anos 70”). Ali naquela matéria no jornal
a autora dizia que os artistas partiram para a autogestão de suas carreiras. Eu
fui do time de frente dessa iniciativa que naqueles tempos serviu de exemplo e incentivo
para muitos outros. Vejamos como me posicionei naquela matéria do Opinião. Diz ela:
“-- O que é que eu tinha?”, pergunta o compositor, maestro e professor Jorge Mello.
‘Eu tinha meu disco. Só meu disco. Saí com o disco debaixo do braço por aí, saí
tocando. Fui de Além Paraíba (Minas Gerais) até Altamira no Pará. No meio do caminho
meu grupo desistiu, a barra era muito pesada. Aí chamei minha mulher e nós dois
seguimos nos apresentando, eu na guitarra e ela com um pandeiro. E, tocamos em porta
de cinema, porta de armazém, praça pública, igreja.”
Mais
adiante no texto da mesma matéria continua a jornalista: “Evidentemente um esforço
coletivo significaria menos trabalho para todos. Mas ainda não é fácil reunir essa
geração angustiada, aflita para passar em qualquer brecha. Em São Paulo houve uma
bem sucedida tentativa de mutirão musical. A Feira de Música Popular, organizada
por Marcus Vinícius e Jorge Mello no Teatro Aplicado. Teve pontos positivos. ‘As
pessoas se inteiraram umas dos trabalhos das outras, houve uma mostra das tendências
mais diversas. E um espírito de equipe incrível: a gente não conseguia arrumar som,
pedimos ao público, no primeiro dia que nos ajudasse. Durante a semana começou a
pintar microfones, caixa, mesa, e, na segunda-feira seguinte, a gente já tinha uma
aparelhagem’ – diz Jorge Mello. Mas foi temporária, dispersada com a ocupação do
teatro por uma temporada teatral. Continua predominando o esforço individual de
uma turma numerosa que inclui os cearenses Rodger, Teti, Fagner, Belchior, Ednardo
e Amelinha, o pernambucano Marcus Vinícius, o piauiense Jorge Mello, o carioca Jorge
Telles, os paulistas Walter Franco, Waldemir Marques e Thiago Araripe, e até alguns
grupos de rock, como o Apokalipsis, o Joelho de Porco e o Made in Brasil.”
Senti
naquele momento que precisava urgentemente me organizar. Tinha que ampliar as chances
de trabalhar com música. Abandonei o magistério, montei uma banda com os próprios
alunos de música escolhido a dedo entre as três faculdades onde ensinava e caí na
estrada com os shows. Ao mesmo tempo também invadi as produtoras e os estúdios na
busca de trabalhar com publicidade. Ampliei os contatos indo às gravadoras não só
oferecendo minhas composições e minha voz, como artista do “cast”, mas, também oferecendo
meus conhecimentos de arranjador para atuar nas produções de álbuns dos artistas
já contratados. Deu certo. Virei um rato de estúdio. Passava dias e dias ora gravando
ou produzindo trilhas, ora como músico acompanhante. Ora como produtor ou criador
de trilhas de publicidade. Ora como produtor dos álbuns de grandes nomes da música
popular. Ganhei muita experiência.
Essa
experiência com certeza atraiu a atenção de Belchior. Que sendo o artista de sucesso
popular que se tornou, não poderia cuidar de uma gravadora, uma produtora e uma
editora musical sozinho, precisava de alguém com essa experiência. Então me convidou
para ser seu sócio e eu me associei a ele na criação de nossa gravadora PARAISO
DISCOS. Devo informar que não fechei a minha própria empresa e que continuei a prestar
os serviços de produção e criação de trilhas de publicidade, de cinema e de teatro
na JMT PRODUÇÕES. E assumi a Direção de Produção de tudo que a PARAÍSO lançou ao
mercado. Uma empresa não atrapalhava os objetivos da outra.
Na área de shows, tive que aprender muito também.
Como falei eram tempos de mudanças. “Os empresários, subprodutos da indústria fonográfica,
se viram em idêntica situação. Como explica, agudamente, o compositor Marcus Vinícius:
‘A crise da indústria estrangulou o mercado, encareceu o custo da montagem de um
espetáculo. Aí os artistas foram passando às escolas, às faculdades. E para fazer
show em faculdade, não precisa empresário. Empresário, como em geral a gente imagina,
aquele cara que descobre o artista, constrói o artista e batalha por ele, não existe
no Brasil, há muito tempo. Isso é miragem de uma outra realidade, de Hollywood.
Empresário é um cara que trabalha no telefone, marcando datas. Isso, se você quiser,
você pode fazer também.’”
Foi
o que fiz ao abrir a minha própria produtora e gravadora. Senti que poderia fazer
alguma coisa na área de produção de eventos e de trilhas e ainda de discos, porque
não via como entregar isso a outra pessoa, porque não atraí o interesse de nenhum
sujeito que quisesse fazer isso por mim. Caí de boca no mercado e fui fazer meus
shows. Produzir trilhas de publicidade e trilhas para teatro e cinema. E produzi
e lancei meus próprios álbuns pelo meu próprio selo.
O
Belchior ao perceber essas minhas iniciativas, imediatamente perguntou se eu saberia
abrir e cuidar de uma empresa que fosse gravadora e também editora musical. Respondi
que saberia, sim. E poucos dias depois ele me chamou para um novo encontro e resolvemos
ter nossa gravadora e nossa editora musical. Assim nos tornamos sócios. Nasceram
as empresas PARAÍSO DISCOS (gravadora) e a CONSTELAÇÕES (editora musical). Na primeira
produzi nos melhores estúdios de São Paulo mais de duas centenas de álbuns. Gravei
os mais variados artistas, dentre eles o Belchior e meus próprios álbuns. Uma façanha
que o ambiente artístico musical da época não entendia. Era um pioneirismo, no Brasil,
ver os próprios artistas terem uma gravadora. E por causa dessa sociedade, dessa
ligação empresarial, eu e Belchior passamos muito tempo juntos e em razão disso
as parcerias foram aparecendo naturalmente. Nunca programamos nem agendamos fazer
músicas. Como se poderia pensar. Tipo, assim, esquecer as funções por um tempo e
trabalhar na criação de composições em parceria. Não! Não acontecia assim. Nossas
parcerias iam surgindo por puro acaso.
Eu
vivia com o violão ao lado da mesa de trabalho no escritório, porque era o produtor
e arranjador, e, o instrumento me facilitava nesse serviço de trabalhar a sonoridade
e os arranjos das obras que iria gravar no estúdio. Gravava quase todos os dias!
E quando no escritório, pegava o violão, muitas vezes para criar um arranjo para
uma produção de um artista qualquer, ao pontear alguns acordes o Belchior gritava
de sua sala ao lado: “Jorjão, toca isso aí de novo…” Eu repetia a frase no violão uma duas três vezes
e ele aparecia curioso e dizia. “Faz mais uma vez…!” Passados alguns instantes ele
aparecia com uns versos e pedia que eu visse. Eu via, cantarolava para ele ali do
lado e assim as canções foram nascendo.
Ele costumava comer o alimento que cozinhava na
cozinha do escritório. Muitas vezes ao fazer o alimento ou enquanto comia ele gritava
de lá. “Repete esse lance aí Jorjão!” Eu repetia e no final da tarde ele me entregava
um texto pronto. E assim criamos mais de duas dezenas de canções que foram gravadas
por ele e por mim e por vários outros cantores e ainda temos uma dezena de canções
inéditas…! Posso afirmar que sou o seu maior parceiro em número de obras, ou o parceiro
mais constante do poeta Belchior.
3. AS PARCERIAS | Vamos falar de algumas das canções que fizemos
juntos e depois tratarei de outras obras criadas só por ele e que merecem considerações.
Para tanto devo informar que não me preocuparei com a cronologia de suas criações,
nem de seus registros em suportes como LP em vinil ou em Cds e outros, onde se encontram
essas obras fixadas.
Certo
dia eu trabalhava na criação de uma canção falando de meu filho Rúrion quando tinha
cinco anos (isso em 1983), e de repente o Bel entrou no escritório, foi para sua
sala e lá permaneceu desenhando por algum tempo. Eu matutava uns acordes daqui,
outros dali… quando ele gritou de lá, como sempre fazia quando se tocava ou se sensibilizava
com minhas criações ao violão: “Jorjão repete isso mais rápido, como se estivesse
mostrando a Bil Harley, ou pro Chuck Berry…!” Eu imediatamente atendi. Como não
tinha texto escrito ainda, tentava por uma letra improvisada na melodia, para facilitar
o canto que criara de forma a ser perceptível ao parceiro. Meu texto na realidade
estava só começando… era formado de pequenos rabiscos, nada ainda amadurecido. Afinal
era pra meu filho… não passava de pedaços de texto. Tinha poucas palavras e por
não ser suficiente para solfejar conforme pedira o parceiro, fiquei como faz um
repentista, improvisando, na forma de “meio quadrão”, com versos em redondilha maior
(versos de sete sílabas). E no meio dessas estrofes eu ficava enrolando a melodia
dizendo apenas: “Rock, rock, rock, rock”. E, assim segui cantarolando a melodia,
voltando a repetir os improvisos naquela bela forma, mas, cantava numa melodia que
mais lembrava um rock ou blues, não os modos do repente. Passados alguns minutos
o Bel saiu de sua toca e me surpreende com uma estrofe pronta, com um belo texto
que ele criou, utilizando algumas palavras da obra original que eu escrevera pra
meu filho. Adorei! Repeti aquilo por horas. E não falamos mais nisso. Ele voltou
a seus afazeres e eu cuidei de outras providências. No dia seguinte ao chegar no
escritório pela manhã, ele me recebeu com o texto pronto. E juntos ficamos horas
cantando e conversando sobre o texto e a melodia. O título: “CANÇÃO DE GESTA DE
UM TROVADOR ELETRÔNICO”.
Essa
canção foi gravada pelo bardo cearense no álbum que a PARAÍSO DISCOS produziu com
ele, cujo título é: “CENAS DO PRÓXIMO CAPÍTULO”. Foi o primeiro disco de nossa empresa
que verdadeiramente vendeu. Um sucesso muito grande e nos deu fôlego para outros
empreendimentos. Era esse o terceiro álbum de nossa gravadora. Nesse álbum ele interpretou
quatro obras minhas escritas em parceria com ele. Além da obra citada gravou também:
“ROCK ROMANCE DE UM BOBÔ GOLIARDO”, “PLOFT” e “O NEGÓCIO É O SEGUINTE”.
Adorei
“CANÇÃO DE GESTA DE UM TROVADOR ELETERÔNICO”. Belchior que até então se caracterizava
por ser um compositor de melodias monocórdicas, em alguns casos, apresentadas como
meros pretextos para a sustentabilidade do texto, agora tinha um rock pesado, tradicional
como tantos outros dos anos 1950 e do início dos anos 1960. Lembrando mesmo as criações
e interpretações do Chuck Berry e do Elvis. Ele que sempre se mostrava um inventor
de belos textos, criou para minha obra uma dessas joias. Como bem disse o jornalista
Jotabê Medeiros: “Musicalmente, Belchior assumia que a influência da cultura ibérica,
moura e provençal definia seu estilo, mas não o encapsulava em nenhuma formula.
Assumia inflexões dos cantos gregorianos que aprendera no colégio de frades e das
tendências poéticas épicas e picarescas da tradição”.
O
parceiro entendia essa característica de sua obra. Sabia que tem letras mais significativas
que suas melodias. Ele sabe que suas criações sem parceria, privilegiam mais o texto
do que o resultado musical de sua criação. Ele reconhece isso quando diz: “É claro
que as minhas melodias são melodias fáceis, redundantes e a minha letra é mais importante
do que a música, assim como as letras do Chico são mais importantes do que a música
e a melodia do Pixinguinha é mais importante do que a letra” (Belchior em entrevista
ao Pasquim em 1982)
O
que é importante que se diga é que essas melodias criadas pelo parceiro eram absolutamente
eficientes para a sua função. E com isso a média da qualidade de criação alcançava
níveis elevados. Ótimas canções realizadas sem a ajuda de parceiros. Ótima obra,
fácil de ser reproduzida nos bares por outros músicos e guardada na memória. E nas
letras vemos fenômenos fantásticos, inclusive a inclusão de um vocabulário novo
que foi incorporado ao ambiente da música popular.
Essa
posição de ser um cantor popular, de sentir que suas melodias simples podem chegar
mais facilmente às massas, ao sucesso radiofônico, ao povo, era uma das coisas com
as quais o poeta Belchior trabalhava. Ele tinha muita consciência dessa característica
de seu trabalho e o projetava exatamente para isso. Desejava se comunicar com as
massas e assim levar o seu recado direto em textos com narrativa sem grandes metáforas
e que atingem como flechas o alvo desejado. Vejamos essa sua colocação na entrevista
que deu logo no início da carreira: “ Eu não quero envernizar o folclore, eu não
quero fazer o que o povo faz muito melhor do que eu e principalmente porque eu defino
música popular como aquela que está do lado do povo. Não somente aquela que vem
das camadas mais baixas da população ou das camadas marginais. Eu defino a música
popular de uma forma ideológica, é aquela que está do lado do povo. É aquela que
fala das desesperanças, das utopias, das vicissitudes, dos ideais, dos trabalhos,
dos sonhos, das conquistas do povo, então essa é uma música popular. Então eu trabalho
em cima disso. Povo é uma coisa muito grande, (Belchior em entrevista a Wofenson),
publicado por Josy Teixeira em sua tese de doutorado na USP.
Suas
observações me foram muito úteis na minha formação. E procurei utilizar na minha
produção. Não podia perder a oportunidade de absorver as suas tiradas geniais. “Isso
não pode ser atribuído ao acaso, porque de um lado o número dos loucos é relativamente
bem pequeno, por outro lado porém porque um indivíduo genial é um fenômeno raro,
para além de qualquer avaliação normal, e que aparece na natureza somente como a
maior das exceções;” (SHOPENHAUER).
Uma
das características dos compositores de minha geração, vindos do Ceará, é que sempre
se buscou “formas e temas perdidos no passado brasileiro e cearense”, mas, fundindo
com novas experiências que pudessem concorrer dentro do mercado musical. Eu procurava
ouvir a todos e tirar o melhor de cada um no amadurecimento de minha música e na
abertura de minha mente. No dizer de Antonio José Brandão no texto escrito para
o livro “MASSAFEIRA – 30 anos”, temos: “Na sua luta, os artistas pretendiam isolar
e evitar a folclorização supostamente imposta pelo Movimento Armorial e pela fidelidade
ao forró tradicional, exigida por muitos. Quase todos os teóricos não compreendiam
que o forró tradicional foi novo e revolucionário em seu tempo. Tendiam a eternizá-lo
pela forma como tendo surgido não do suor das filas às portas das gravadoras, emissoras,
revistas e jornais, mas sim dos suspiros românticos da flor do mandacaru. Não percebiam
que estavam sendo reacionários. Ou, o que é ainda pior, estavam patrulhando.” (BRANDÃO.
MASSAFEIRA - 30 ANOS. Fortaleza Edições Musicais 2010. p91).
A
nossa parceria “CANÇÃO DE GESTA DE UM TROVADOR ELETRÔNICO” (Jorge Mello e Belchior),
tem cunho biográfico. Pois apresenta a história de todos nós que deixamos nosso
canto lá no interior (no nosso caso o interior nordestino, eu de Piripiri no Piauí
e meu parceiro, de Sobral no Ceará), para cair na estrada e terminar na cidade grande.
O texto explica muito bem essas três etapas. Pois tem três estrofes onde a primeira
te coloca lá na origem, mas, recebendo as influências do rádio, do cinema e do disco
por meio do alto falante que toda tarde e parte da noite nos informava dos acontecimentos
das “terras civilizadas” por meio da amplificadora estrategicamente colocada no
alto da torre da igreja ou no alto da cumeeira da sala de projeções. A segunda estrofe
descreve a “estrada tirana” e suas armadilhas e o sabor de suas aventuras. Por fim
na terceira estrofe temos a cidade grande e seus desafios, nos colocando em localidades
como o Rio de Janeiro e São Paulo. Vejam o texto:
CANÇÃO
DE GESTA DE UM TROVADOR ELETRÔNICO
(Jorge
Mello e Belchior)
O som do alto falante
Rolava e me dava um toque.
E Chuck Berry berrando
em sua guitarra, era um choque.
Cometas Halley passando,
astros no pó de Woodstock,
cabeças, pedras rolantes,
JIM, Jimi, John, Janis Joplin
E a moçada do subúrbio,
Cinemas, topetes, motos…
Rock, rock, rock, rock’n’roll!
Rock, rock, rock, rock’n’roll!
Caí na estrada tirana:
(A juventude é um dom!)
garotas, sonhos, mil transas,
como dar bandeira é bom!
Olhando a cidade grande,
cheia de fúria e de som;
querendo ser uma estrela
de sexo, lazer e neon…
Cidade grande é uma droga
mas o rock dá o tom.
Rock, rock, rock, rock’n’roll!
Rock, rock, rock, rock’n’roll!
São mil milhões de habitantes
deste parque industrial:
negros, mulheres, menores
- filhos da crise geral –
iguais pela mesma bomba
que vai cair no quintal.
Ídolo e Deus dos esgotos
a musa urbana me fez.
Meu sucesso é saber disso
e bater tudo pra vocês.
Rock, rock, rock, rock’n’roll!
Rock, rock, rock, rock’n’roll!ssa
Para
minha felicidade, essa canção passou a ser uma daquelas músicas que se fixou no
repertório dos shows do amigo/parceiro. E em virtude disso teve outras gravações,
principalmente na produção de discos gravados ao vivo, como é o caso do álbum “UM
SHOW – 10 ANOS DE SUCESSO”, de 1987. Outra notoriedade da obra é que ela foi a escolhida
para a abertura dos shows que o Belchior apresentava por todo o mundo, durante muitos
anos. E que teve um clip produzido de altíssimo nível apresentado pelos programas
de TV. Era o Belchior roqueiro se manifestando. Também a obra citada, foi gravada
por mim e por vários outros intérpretes. Um sucesso!
A
nossa produção não era engessada nos moldes e formas tradicionais de composição,
como acontecia em Pernambuco com o frevo, engessado, congelado e embalsamado por
décadas e décadas, ao contrário do que fizeram os baianos que levaram o frevo para
si e o “desbundaram” como bem entenderam com suas guitarras e seus trios elétricos.
Compomos canções em várias vertentes. Na realidade sempre abri meu leque. Trabalho
melodias até em modos como o mixolídio, utilizando instrumentos eletrônicos da época,
como os “mugs”, “escaners” e outros, basta ver meus arranjos em canções como: “DENTRO
DE MEUS OLHOS”, “ A NATUREZA REZA”, e outras…! Como curiosidade informo que fiz
um álbum intitulado “UM TROVADOR ELETRÔNICO”, onde nos shows da temporada, não levei
músicos para o palco e sim, anunciava a banda formada por computadores e outros
instrumentos eletrônicos, cada um sobre uma cadeira (como se fossem os músicos ao
vivo, só que eram máquinas), com os nomes: Raimundo, Mundo, Mundão, Mundinho e Mundoca.
Apenas instrumentos eletrônicos, executando os arranjos e o acompanhamento do show
como se músicos em pessoa fossem. Era um momento do mais fino humor no meu show
naquela temporada em fins de 1980. Uma delícia. Viajei com o show por todo o país
e fui com esse espetáculo até Cancum no México.
Belchior
gravou canções em parceria comigo também criadas na forma do Raggay, Country e blues.
E todas essas formas me pareciam cômodas e confortáveis. Nunca senti a necessidade
de criá-las como formas brasileiras tradicionais como o baião, xotes ou maracatus.
Quando fiz aboios e gravei aboios, não falei de bois ou currais, mas, tratei de
falar da minha realidade na cidade grande, estava no Rio de Janeiro em 1972, como
fiz em “KITCHENET” (um aboio), cujo texto é:
A minha cozinha é vizinha da
porta da rua, ê, ê
E já nem sei se posso é chamar
de rua,
o corredor, o corredor do oitavo
andar do Edifício Central…
Mas, inda estou por aqui, pessoal:
Com esse mesmo olhar, normal,
fatal, igual…
de quem mora e vive, de quem
mora e vive nessa capital…!
4. REFERÊNCIAS ENCONTRADAS NA OBRA DE BELCHIOR
| “Não existe em mim simulação
alguma, mostrando-me eu por fora o que sou no coração.” É o que pretendo fazer.
Falar das obras que meu parceiro tão inteligentemente homenageava os autores da
literatura universal e nacional.
Na
obra de Belchior há inúmeras homenagens aos clássicos da literatura universal e
também da música popular brasileira. Em todos os seus álbuns, se pode testemunhar
referências aos autores clássicos ou a suas obras. Logo no primeiro álbum de 1973.
Bel inicia com a canção “Mote e Glosa”, onde mostra conhecer o termo “mote”, sentença,
expressa em um ou mais versos da glosa (poesia em que cada estrofe termina por um
dos versos de um mote). Mostra que tem intimidade com a poesia dos repentistas por
ser a glosa uma das formas clássicas dos desafios de repentes. Nesse mesmo álbum
encontramos a canção “A Palo Seco”, uma homenagem a João Cabral de Melo Neto na
escolha do título da canção. No seu poema o poeta pernambucano repete o termo por
várias vezes o definindo. Apresento uma das estrofes do belíssimo poema A PALO SECO
de João Cabral de Melo Neto, como exemplo:
O cante a palo seco
é um cante desarmado:
só a lâmina da voz
sem a arma do braço;
que o cante a palo seco
sem tempero ou ajuda
tem de abrir o silêncio
com sua chama nua.
Nas
formas escritas das canções do álbum MOTE E GLOSA da gravadora Chantecler estão
claras homenagens aos poetas concretistas, irmãos Campos e aos compositores Gil
e Caetano que tão bem utilizaram poemas concretos em suas composições. Basta a leitura
das letras de: MOTE E GLOSA; BEBELO; MÁQUINA; CEMITÉRIO, sem precisar dar como exemplo
a distribuição da letra de NA HORA DO ALMOÇO. Todas essas canções citadas, são apenas
da autoria de Belchior.
Saliento
que esse assunto foi tratado com maestria na tese de doutorado de Josy Teixeira,
leitura que muito me agradou ler, falei isso a ela. E indico aos interessados na
matéria sempre que posso. Vou fazer aqui um pequeno resumo do que pretendo explorar nesse ensaio:
No
segundo álbum ALUCINAÇÃO (Belchior), de 1976, o poeta alencarino dialoga com vários
clássicos e com os ídolos da nossa MPB. A canção que dá nome ao LP, comenta o modo
de vida e canções de Gilberto Gil, que naqueles tempos estava envolvido com macrobiótica
e sabedoria orientais, e gravou de sua autoria a canção “ORIENTE”, e depois gravou
sua música “EXTRA”, em que diz que espera “algo mais”. Belchior abre sua canção
afirmando: “Não estou interessado em nenhuma teoria, em nenhuma fantasia, nem no
algo mais…” adiante arremata: “nem nessas coisas do oriente, romances astrais. A
minha alucinação é suportar o dia a dia e meu delírio é experiências com coisas
reais.”
Em
uma entrevista que Gilberto Gil deu a Ana Maria Bahiana publicada no jornal O Globo
de 1977, sobre a acusação de que se tornara um alienado em suas produções mais recentes
e pós tropicalismo ele diz: “Isso já vem nesses últimos anos desde que voltei da
Inglaterra, com insinuações mais ou menos evidentes e frequentes de que eu estaria
alienado, de que teria abdicado de uma posição de combate e não sei o que. Na época
do Refazenda, já teve isso, e mesmo antes,
na época do Expresso 2222, a macrobiótica
era fuga e tudo. Quer dizer, isso já vem esse tempo todo e vem já como um reflexo
do tropicalismo que foi assim o momento da grande desconfiança conosco, comigo principalmente
(In. BAHIANA, 1980, P 64 E 65).”
Por
outro lado o Belchior em entrevista na Revista POP, ao ser perguntado sobre sua
visão de misticismo, oriente, ioga, responde: “ Sou completamente desinteressado.
Não acredito, não quero nenhuma nova teoria que me decepcione depois. Sou um cara
mais preocupado com toques imediatos, do presente. A arte não pode viver de ilusões.”
Como
diz Belchior, tudo é proibido, “aliás tudo é permitido quando ninguém nos vê”…
Também
nesse mesmo álbum de 1976, Belchior, demonstrando intimidade com a literatura popular
do cordel, na canção SUJEITO DE SORTE (Belchior), quando cita trechos do livro “Poeta
do Absurdo” de Orlando Tejo. Livro que tenta fazer a biografia do poeta cordelista
paraibano Zé Limeira. O trecho citado por Bel é parte do poema “Poesia dos cachorros”
(Zé Limeira), cujo verso original diz:
Eu já cantei no Recife
Dentro do Pronto-Socorro
Ganhei duzentos mil réis
Comprei duzentos cachorro
Morri no ano passado
Mas esse ano eu não morro.
O
texto da canção do bardo cearense assim trata a matéria:
SUJEITO
DE SORTE
(Belchior)
Presentemente eu posso me considerar
um sujeito de sorte
porque, apesar de muito moço,
me sinto são, salvo e forte.
E tenho comigo pensado: Deus
e brasileiro e anda do meu lado.
E assim já não posso sofrer
no ano passado.
Tenho sangrado demais, tenho
chorado pra cachorro.
Ano passado eu morri, mas esse
ano eu não morro.
Belchior
sempre foi um leitor contumaz, obstinado. E como tinha muita intimidade com os livros,
em especial com aqueles volumes que mantinha em sua biblioteca particular, sabia
de cor o lugar de cada um e se exibia para os amigos ao encontrar cada um dos livros,
de costas, sem olhar a prateleira onde os livros eram dispostos, sempre bem arrumados.
Também se exibia, mostrando como é dotado de memória especial. É que muitas vezes
pedia aos presentes que lá apareciam para nos visitar no escritório da PARAÍSO DISCOS,
que escolhessem qualquer livro, o abrisse e lesse determinado trecho escolhido aleatoriamente.
Essas pessoas iam à prateleira e escolhiam determinado livro, abria em página indeterminada,
qualquer uma que fosse, iniciava a leitura e o Belchior de cabeça à sua frente continuava
o texto de onde o outro parava sua leitura. Um verdadeiro show de mágica. Essa façanha
me espantava sempre que via. Não tenho esse tipo de memória nem cerebral, nem visual.
Por vezes, o parceiro, dizia a página em que se abrira o livro. Uma coisa fantástica,
incrível, inacreditável. Eu um dia visitando a casa do Sério Pinheiro e Luciene
Simões, em Fortaleza, pessoas que há anos me recebem para um sarau cultural, musical,
literário, programa que já se tornou tradicional, pois repetido dezenas de vezes
a cada presença minha na capital cearense, ouvi esse mesmo relato dos amigos contemporâneos
presentes naquele evento. Eram eles: Galba Gomes e João de Paula. E imediatamente
confirmei isso, por ser testemunha de muitos desses momentos gloriosos da convivência
que tive com o poeta Belchior. Relembramos essas facetas incríveis com que o poeta
se exibia aos amigos…!
O
reflexo dessa intimidade com livros e com os autores da literatura universal é flagrante
na obra de Belchior. Podemos citar dezenas de obras com referências textuais a esses
autores e suas obras, notabilizando as criações do poeta Bel, como uma obra cheia
de citações dos clássicos. Faceta que só mesmo um conhecedor daquela literatura
sabe fazer. E o faz porque leu e as mantém de memória. Faceta única sem paralelo…!
Partindo
desse esclarecimento, vejamos algumas das obras do Belchior que têm referências
textuais de algumas obras clássicas da literatura brasileira e universal. Primeiro
tratarei de algumas obras em que sou parceiro, pois tais citações foram colocadas
na minha presença no ato de criação dessas obras. Quando criamos a canção NOTÍCIA
DE TERRA CIVILIZADA (Jorge Mello e Belchior), Belchior me apresentou o texto que
diz:
Lido e corrido relembro
Um ditado esquecido:
“(…) antes de tudo um forte”.
Com fé em Deus um dia
ganha a loteria
pra voltar pro Norte.
Temos
aí uma referência ao livro “Os Sertões” de Euclides da Cunha, quando escreveu: “O
nordestino é antes de tudo um forte.” A citação está entre aspas e indica que a
frase dita pela metade, vem de um esquecimento do personagem, e que sendo dita assim,
prova que o co-autor, não se esqueceu, e que lembra muito bem da oração por inteiro.
E
não acaba por aí, porque encontramos ainda só nas minhas parcerias com Belchior,
inúmeras referências à literatura universal: Na canção PLOFT (Jorge Mello e Belchior),
há referências a Eduardo Galeano e seu Las
venas abiertas de Latinoamérica. Vejamos:
O Nordeste sentado na
esquina do mapa OLVIDADO
DE LOS REYES DEL MUNDO
EM UM SIGLO DE LUCES,
se mira no Atlântico:
Amérias, Africas,
Índios, pobres e jovens:
tudo um negro blues.
A dor do Nordeste, a
cor do Nordeste;
(deste e daqueloutro
que homem não vê!)
LAS VENAS ABIERTAS DE LATINOAMÉRICA:
mil poetas: primatas
que abraçam o ET.
Em
O NEGÓCIO É O SEGUINTE (Jorge Mello e Belchior) há referências a Augusto dos Anjos
quando dizemos:
Engenho (e arte) do
Pau-d’Arco…
‘Tome Dr., essa tesoura
e… corte.
Ainda
tratando dessas homenagens à literatura brasileira, posso indicar a obra musical
de Belchior LIRA DOS VINTE ANOS (de Belchior e Francisco Casaverde), canção gravada
no álbum ELOGIO DA LOUCURA de 1988, onde ele faz uma referência ao livro de Álvares
de Azevedo (Manoel Antônio), poeta, dramaturgo e contista, filiado à escola representada
por Byron na Europa. A referência de Belchior está logo no título de sua canção
que tem o mesmo título da obra de Álvares de Azevedo, pois “Lira dos Vinte Anos”
é o livro publicado postumamente em 1853, com poemas do autor, dentre eles Noite na Taverna.
Agora
vamos tratar das obras de Belchior que homenageiam a literatura universal: vamos
começar pelo álbum já citado ELOGIO DA LOUCURA. O título do álbum é o mesmo título
da obra de Erasmo de Roterdan que viveu entre 1466 e 1536. O livro “Elogio da Loucura”
foi editado em 1509. Uma sátira na qual os poderosos da época em especial os homens
da Igreja, são tratados com a ironia do escritor. Esse é sem dúvida um dos mais
influentes livros da civilização ocidental. E deu nome ao álbum de Belchior do ano
de 1988. Nesse álbum está uma das canções de Bel que mais gosto. Balada de Madame
Frigidaire (Belchior). Uma declaração de amor pela nova geladeira. Incrível…! Surpreendente.
Vejam o refrão:
Mister Andy, o papa pop,
E outro amigo meu xarope
Se cansaram de dizer:
Prá que Deus, Dinheiro, Sexo,
Ideal, Pátria, Família,
Se alguém já tem frigidaire?
É Freud rapaziada,
Vive a cair na cantada
De um objeto mulher.
Na
canção VELHA ROUPA COLORIDA (Belchior), uma das obras que teve mais sucesso na carreira
do cantor/compositor, temos também referências do autor à literatura universal como
se pode ver a homenagem ao escritor americano Edgar Allan Poe, nascido em Boston
em 1809 e falecido em Baltimore em 1849, gênio atormentado de imaginação estranha.
Publicou poemas, contos e novelas que o tornaram muito popular. Na canção de Belchior
citada, temos referências ao texto de “O Corvo” de Poe.
Como
Poe, poeta louco americano
Eu
pergunto ao passarinho: Black bird, Assum-preto, o que se faz?
Haven never haven never haven never haven never
haven
Assum-preto,
passáro preto, black bird, me responde, tudo já ficou atrás
Haven never haven never haven never haven never
haven
Black
bird, passáro preto, passáro preto, me responde
O
passado nunca mais
Na álbum intitulado “TODOS OS SENTIDOS” de 1978, temos
várias referências e citações de Belchior, onde posso indicar “To be or not to be”,
citado na obra TER OU NÃO TER (Belchior), que é uma homenagem a William Shakespeare,
nascido em 1564 em Stratford e morto em 1616. Foi autor, ator e coproprietário do
Globe Theatre, e que tornou-se célebre. Escreveu principalmente para teatro, mas,
também escreveu sonetos.
Nesse álbum temos referências a Jorge Benjor na canção
COMO SE FOSSE PECADO (Belchior), e outra referência a canção “Acorda, Maria Bonita”
(de Antonio dos Santos), e também à canção “Até Amanhã” (de Noel Rosa) na obra ATÉ
AMANHÃ (Belchior). Vejamos:
Até
amanhã
Se
o homem quiser – mesmo se chover
Volto
pra te ver mulher.
Até
à manhã.
Se
houver amanhã – se eu vir à manhã
Mando
alguém dizer como é.
E em “COMO SE FOSSE PECADO vejamos esse trecho:
ACORDAAMOR
O
sono acabou Maria Bonita
Vem
fazer o café.
O
homem comum inda nem levantou
Mas
a polícia já está de pé.
Na canção TUDO OUTRA VEZ, Belchior, faz referências
ao livro “A Normalista” de Adolfo Caminha e também à música NORMALISTA (Benedito
Lacerda e David Nasser), Vejamos:
Gente
de minha rua! Como eu andei distante!
(Quando
eu desapareci, ela arranjou um amante.)
Minha
normalista linda! Ainda sou estudante
Da
vida que eu quero dar.
Belchior referencia a várias obras célebres em suas
canções. Na canção VÍCIO ELEGANTE (Belchior e Ricardo Bacelar), obra que dá o título
ao CD gravado em 1996, ele cita o poema “Flores do mal” de Charles Baudelaire, nascido
em Paris em 1821. O poema citado foi escrito em 1857. Vejamos:
Versos
perversos das ‘Flores do mal’
nesse
romance, fantasia oriental
cenas
obscenas? Não! Apenas de amor!
Que
estou navegando numa tela multicor.
Belchior também cita outro clássico da literatura logo
adiante nessa mesma canção. Apresenta trechos do poeta português Fernando Pessoa,
nascido em Lisboa em 1888. Pessoa criou heterônimos como Alberto Caeiro, Álvaro
de Campo e Ricardo Reis, dos quais inventou biografias distintas. Vejamos na obra
citado do poeta cearense a referência ao Pessoa:
O
viver é de improviso
Faz
sua própria Lei
Mas
navegar é preciso:
Vou
mandar-te um Lay-lady-lay.
Outra referência do poeta Belchior é encontrada na canção
SE VOCÊ TIVESSE APARECIDO (Belchior e Gracco), numa referência ao poeta, pintor
e gravador inglês Willian Blake, nascido em Londres em 1757, com citações de suas
obras “Canções de Inocência” e “Canções de Experiência”, ambos escritos em 1789.
Vejamos:
Se você tivesse aparecido
em minha adolescência,
canção Blake de inocência
amor, quem não teria ido e vivido
com Byron, o bardo da gangue
do “le me perish young
Se você tivesse aparecido
esta droga de existência
se mudaria em viver
eu coração (traído) bandido,
canção Blake de experiência
revelaria seu ser.
Na canção AMOR DE PERDIÇÃO, a homenagem do poeta Belchior
é explícita a Camilo Castelo Branco, polígrafo e romancista português nascido em
Lisboa em 1825. Um mestre do idioma com 262 obras. Representa o apogeu do romantismo.
“Amor de Perdição” é sua obra prima. A obra homônima do compositor cearense está
em seu álbum “Elogio da Loucura” de 1988.
No álbum ”Todos os Sentidos” de 1978,
Belchior trás uma das canções que mais faz referências em sua obra à obras clássicas
da literatura universal. Sua canção DIVINA COMÉDIA HUMANA, segundo ele feita em
Teresina em 1976, homenageia em suas referências a quatro grandes obras: 1- “Divina
Comédia” de Dante Alighieri, poeta italiano nascido em Florença em 1321, que por
ser o criador dessa obra citada é considerado o pai da poesia italiana; 2 – “Comédia
Humana” de Honoré de Balzac, escritor Frances nascido em Tours em 1799. Sua obra
citada é uma série de romances que trata da sociedade francesa ao fim da monarquia.
Escreveu também contos; 3 – “A comédia humana” de Willian Saroyan; e 4 – “Via Lactea
parte XIII” de Olavo Bilac, nascido no Rio de Janeiro em 1865, parnasiano, rígido
na forma. Sua poesia tem várias fases, marcada ora por um lirismo arrebatado e sensual
e depois pela exaltação épica e por vezes pelo pendor à meditação. Eleito o Príncipe
dos Poetas Brasileiros. A poesia do Bilac é citada na obra literalmente no decorrer
da música.
Eu e Belchior basicamente vivemos durante nosso trabalho
em sociedade, dentro de uma biblioteca. A dele montada na Paraíso Discos (gravadora
em que éramos sócios e dirigida por mim) e a minha biblioteca na JMT Produções (empresa
que tinha em sociedade com minha mulher Teca Melo). A leitura era atividade constante
em nossa vida. Acontecia entre um show e outro, também entre as gravações nos estúdios,
porque como produtor de discos das duas empresas, produzi mais de duas centenas
de álbuns somando mais de vinte mil horas de gravação (isso contando apenas o tempo
de gravação dos discos que produzi sem falar nas trilhas para publicidade e para
cinema e teatro – uma centena delas. Como sei desse volume de horas de produção
dos discos? Porque nas fichas de produção, um dos dados registrados é o gasto com
pagamentos de estúdios. Esse serviço era contratado, e cobrado por tempo de gravação.
Custava muito caro a hora de gravação num bom estúdio. Alugava-se um estúdio para
a gravação do álbum de seu artista. Não tínhamos estúdio próprio. Assim eu sei exatamente
quanto tempo fiquei gravando. E nos intervalos, apenas lia…! E o resultado dessa
leitura está presente na obra. É verdade, há a referência da literatura brasileira
e universal em toda nossa obra. Belchior era profundo conhecedor dos clássicos da
literatura e do pensamento.
5. CAPÍTULO FINAL
| “Eu, por exemplo, acho que, para conseguir liberdade, tem que se pulverizar
o poder, diminuí-lo ao máximo, ao ponto de todas as pessoas gerirem individualmente
as suas vidas e presença no mundo, não precisando de nenhum chefe de rebanho, mestre,
religião. Isso pode dar a ideia de que o meu trabalho não pretende tocar na política.
Eu não quero fazer uma música simplesmente falando sobre o divórcio. Eu quero muito
mais que isso. Não basta que o MDB vá ao poder. Eu quero que o poder não mande em
mim. Minha utopia é paradisíaca, edênica, dionisíaca. Eu acho mais importante cuidar
da felicidade das pessoas do que do Produto Interno Bruto. (Antonio Carlos Belchior)”
As teses, teorias e outras impressões que vi publicado,
sobre o que teria acontecido com o poeta/parceiro para que ele tomasse a decisão
que tomou há mais de dez anos, essa misteriosa saída dos palcos e de perto dos parentes
e dos amigos, me levaram a sugerir a leitura de momentos difíceis pelos quais passaram
outros artistas importantes da música popular brasileira. Ainda nos anos de 1974,
foi publicado no Jornal OPINIÃO a entrevista inédita de Chico Buarque quando perguntado
sobre seu show e porque tem feito poucas apresentações. Na entrevista ele diz:
“Agora, eu não estou fazendo show, mais. Estou cumprindo
alguns compromissos a duras penas, porque num show você é conduzido a um troço que
gera uma carga emocional diária e eu não tenho estrutura para suportar. Foi por
isso que eu me mandei, cancelei a temporada, fui ao médico, fiz um check-up e resolvi
que não estava bom. Eu me expunha emocionalmente demais, e não só como artista,
ai é que está o negócio. Se eu entrasse num palco e me maquiasse, me vestisse e
interpretasse alguma coisa, legal. Em algumas músicas eu já conseguia fazer isso,
um negócio que eu aprendi com Caetano, sair um pouco como pessoa.”
Em outra entrevista, Luiz Gonzaga Jr., se diz preocupado
com o Milton. Diz que o amigo não aguenta mais a exposição e o assédio: “ Este país
só vive tendo um ídolo, um padrão, um modelo. E estão querendo por o Milton lá.
O trono está prontinho pra ele sentar”. E Milton, na mesma matéria assim se manifesta
adiante: “Eu, estou sentindo isso ó… faz tempo, já. Porque o engraçado é que, para
ter uma pessoa em evidência, parece que tem de derrubar outras, só pode um de cada
vez. E eu comecei a sentir isso, muitas perguntas sobre o que meu trabalho se propunha,
a onde levava, muitas solicitações para que indicasse caminhos, muitas comparações
com a coisa dos outros. Com o trabalho do Caetano, então, demais. E eu comecei a
desconfiar, sabe como? Comecei a conversar isso com o Gonzaguinha já faz muito tempo.
E eu dizia sempre, e ainda digo, se for realmente assim, eu tiro o time de campo,
vou não sei pra onde, mas vou.”
Adiante ele ainda reforça incisivo: “Só sei que não
vou aceitar ser líder de ninguém, nem ser estrela. Quero mais é dar um tempo,….”
(Entrevista em O Globo, 26 de dezembro
de 1975).
PALAVRA DE AMIGOS
“Nunca esperei que as coisas que um poeta diz, e que
as pessoas assimilam, precisem ser verdades de alguém. É uma necessidade que o ser
humano tem, de que esse real da vida possa se dar um tempo e imaginar as coisas
de outra maneira. Essa é a função dos artistas. Eles precisam disso. E o povo também
precisa disso. Acho que ele fez isso. (Fausto
Nilo. Jornal O POVO 06/05/ 2017 Caderno VIDA &ARTE).
Outro amigo assim
se manifestou após a sua morte: “Assim o nosso gênio Belchior conseguiu, como um
manto unicrômico estendido feito a terra, toldar com tintas coloridas as suas ideias,
alcançando grande parte deste manto sobre o Brasil e América do Sul, por ele tão
decantada.
A sua alma atlântica
e Latino-americana, gerada e acalentada no calor e sentimentos tropicais, deverá
ser mantida em nossas mentes, com veneração ao seu especial cérebro, gerado e nutrido
nesse sagrado chão cearense por muito tempo.
Meu parceiro e
querido amigo Belchior parece um ser nascido nas Ilhas Fortunadas, onde a natureza
não tem necessidade nenhuma da arte, porque a sua própria arte da poesia já lhe
completa.
Quero lhes falar
livremente do parceiro, como dizia Erasmo de Roterdan: “Que seria esta vida, se
é que de vida merece o nome, sem os prazeres da volúpia? Oh! Oh! Vós me aplaudis?
Já vejo que não há aqui nenhum insensato que não possua esse sentimento. Sois todos
muitos sábios, uma vez que a meu ver, loucura é o mesmo que sabedoria.”(Luis Augusto
Castelo Branco Mourão).
“No dizer de Shopenhauer,
“… as melhores obras de arte, os mais nobres resultados do gênio, permanecerão eternamente
ilegíveis à maioria obtusa da humanidade…”
RESUMO:
Eu e Belchior basicamente vivemos durante nosso trabalho
em sociedade, dentro de uma biblioteca. A dele montada na Paraíso Discos (gravadora
em éramos sócios e dirigida por mim) e a minha biblioteca na JMT Produções (empresa
que tinha em sociedade com minha mulher Teca Melo). A leitura era atividade constante
em nossa vida. Acontecia entre um show e outro, Também entre as gravações nos estúdios,
porque como produtor de discos das duas empresas, produzi mais de duas centenas
de álbuns somando mais de vinte mil horas de gravação (isso contando apenas o tempo
de gravação dos discos que produzi, sem falar nas trilhas para publicidade e para
cinema e teatro - uma centena delas. Como sei desse volume de horas de produção
dos discos? Porque nas fichas de produção, um dos dados registrados é o gasto com
pagamentos de estúdios. Esse serviço era contratado, e cobrado por tempo de gravação.
Custava muito caro a hora de gravação num bom estúdio. Alugava-se um estúdio para
a gravação do álbum de seu artista. Não tínhamos estúdio próprio. É verdade, há
a referência da literatura brasileira e universal em toda nossa obra. Especialmente
na obra só de autoria do Belchior e outros parceiros que não eu. Na obra do poeta
cearense como um todo há essas referências a dezenas de autores clássicos como de
Shakespeare, Allan Poe, Erasmo de Roterdan, Álvares de Azevedo, Euclides da Cunha,
Orlando Tejo, Augusto dos Anjos, Baudelaire, Willian Blake, Camilo Castelo Branco,
Dante Alighieri, Balzac, Willian Sayoan e outros. Belchior era profundo conhecedor
dos clássicos da literatura e do pensamento.
COMENTARIO FINAL:
Caetano Veloso
publicou em sua “autobiografia” VERDADE TROPICAL: “Quando Rogério, ouvindo-me argumentar
entusiasmado, provocou-me dizendo que eu era apenas um apóstolo, e que Gil é que
era o profeta, pareceu-me que ele lia meus pensamentos mais recônditos. Eu me sentia
responsável por uma grande e bela tarefa, pois Gil e Gal (e também Bethânia, apesar
de seu grito de independência) necessitariam sempre de minha orientação, direta
ou indireta, mas a verdadeira mensagem poética se daria através do grupo - e a partir
de Gil.”
Assim eu sentia no nosso “movimento”. A necessidade
de se impor como uma nova mensagem, vinda de mais ao norte do que falaram os baianos,
na música popular. Para os músicos de minha geração surgidos da universidade e dos
bares, como o Bar do Anísio, o guru era o Augusto Pontes, mas, para mim depois de
chegar ao Rio de Janeiro, as mensagens que mais me tocaram eram geradas pelo Belchior.
Ele dava a mensagem poética que norteava a minha direção. Da mesma maneira eu sentia,
que a minha importância era imensa para a existência do grupo num grande centro
como o Rio e São Paulo. Importância não só pela qualidade minha como artista, mas
pelo meu senso prático. Eu tinha emprego no Rio de Janeiro. Era do quadro de funcionários
da TV Tupy (Direção Musical). Tinha salário. Salvava a base da sobrevivência, podia
pagar onde o grupo morava. Em São Paulo, fui ensinar em três faculdades de música:
IMSP – Instituto Musical de São Paulo; FAP ART (Faculdade Paulista de Artes) e Instituto
MOZARTEUM. Além disso criei empresas de produção e gravação de trilhas sonoras para
publicidade e para a produção de eventos, ainda em meados dos anos 1970. De alguma
maneira o Belchior, que como poeta me orientava para melhorar a qualidade de meus
poemas, sentiu que poderia ter em mim, uma força na compreensão de outras facetas
próprias e necessárias à profissão de artista cantor e compositor. Vinha de minhas
iniciativas, o sonho da procura por independência da carreira. Independência dos
grandes grupos empresariais e de grandes gravadoras. A independência da administração
da própria obra. Hoje basicamente toda a obra do Belchior e a minha, estão em editoras
das quais somos o titular. O dono. Sonho de poucos…! E isso começou lá atrás…!
Havia entre mim e Belchior uma coisa especial que não
se desenvolveu com os outros membros do grupo. Havia um grau de intimidade diferenciada
entre a gente. Muitas vezes, ao terminar o expediente no escritório da PARAÍSO DISCOS,
o parceiro se dirigia para minha casa. Oportunidade em que ficávamos, eu ele e Teca
horas a fio assistindo filmes do Chaplin, rindo a se esborrachar de Bourvil, Louis
de Funes, Oliver Hardy e Stan Laurel. O tipo de coisa que não amadureceu a esse
ponto com os demais amigos e parceiros…!
Mesmo depois que deixei a empresa (Paraíso Discos) para cuidar da JMT (empresa
minha e da Teca), ele continuava a fazer essas visitas para momentos da mais pura
intimidade e alegria. Pouco antes do seu desaparecimento, em fins de 2006 e início
de 2007, ele me chamou ao escritório da PARAÍSO DISCOS, eu fui. Conversamos e combinamos
vir ao meu escritório logo em seguida. Ele comentou comigo que o proprietário do
imóvel onde funciona a gravadora lhe pediu o imóvel justificando a venda do mesmo
onde seria construído um prédio. Isso queria dizer que a casa seria demolida. Ele
precisava sair de lá. De pronto ofereci o galpão enorme que há atrás de onde era
meu escritório naquela ocasião, para que ele colocasse lá o material da PARAÍSO
e sua biblioteca. Ele olhou tudo no ambiente do galpão fazendo anotações e enquanto
fazia isso traçou planos incríveis de ajustar ali um mezanino, sua biblioteca e
tornar aquele pedaço no seu “atelier”. Ficamos nessa conversa até escurecer. Eu
morava do lado. Fomos pra casa à noitinha e repetimos mais uma vez aquele ritual
de conversar e ver filmes por horas. Eu ele e a Teca a rir de tudo, de dezenas de
piadas tantas vezes repetidas, e de todas as imagens dos filmes que escolhíamos
ver. Uma delícia!
Foi a última vez que o vi. Mas, ele me ligou em três
oportunidades depois do seu recolhimento. Ligações durante o ano de 2007.
*****
Fortaleza | 1988 www.youtube.com/watch?v=3v7y9r1ebmU
Entrevista a Cláudia
Nocchi | 1996
www.youtube.com/watch?v=iANWrFps82c
Organização a cargo de Floriano Martins © 2017 ARC Edições
JORGE
MELLO (1948). Cantor, compositor e produtor
Artista convidado | Belchior (Brasil, 1946-2017)
Fotografia © Antonio Lúcio
Caricatura © Dodô Vieira
Imagens © Acervo Resto do Mundo / Acervo particular
Jorge Mello
Agradecimentos especiais a Graco Braz Peixoto, Jorge
Mello e Josy Teixeira
Esta edição integra o projeto de séries especiais
da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:
1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO, I
3 O RIO DA MEMÓRIA, I
4 VANGUARDAS NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO EDITORIAL BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS DO SURREALISMO, II
8 O RIO DA MEMÓRIA, II
9 ACAMPAMENTO MUSICAL
A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira
fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada
no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo
de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial
apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob
a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.
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