quinta-feira, 10 de agosto de 2017

JORGE MELLO | Cenas do próximo capítulo: sonho e parcerias


1. NOS TEMPOS DA UNIVERSIDADE | Na segunda metade dos anos 1960 vinha eu do Piauí para Fortaleza movido por dois grandes sonhos: a universidade e a carreira musical (essa alimentada pelas notícias da chegada da televisão na capital alencarina). É que na minha terra natal, Piripiri, eu já encantava as garotas com minhas composições interpretadas nas serenatas pelas madrugadas, e achava pouco. Queria muito mais! E também me divertia nos programas de rádio de Teresina, onde estudava. Cheguei em Fortaleza no início de 1967. Nesse ano prestei vestibular para cursar Direito na UFC e meu irmão Emanuel Carvalho, prestou para Medicina. E logo no início de 1968 o Emanuel chega pra mim com a notícia de que na sua turma tem um cara igual a mim, segundo ele, que “fica todo tempo criando versos e tocando violão”. E ele levou até onde eu morava numa republica estudantil o tal colega de turma. Assim conheci o Belchior em março de 1968. Claro foi como cair a sopa no mel. Fiquei imediatamente ligado a ele e ele a mim. Frequentei sua casa e ele visitava muitas vezes o meu canto, um apê de apenas um cômodo na Av. Duque de Caxias.
Nossas discussões no universo artístico eram influenciadas pelos temas políticos próprios dos movimentos estudantis daqueles tempos difíceis. Eu gostava de conversar sobre aquele dualismo que preocupava Mário de Andrade: por um lado a arte brasileira, pelo outro a arte internacional. Discussões éticas sobre o “primitivismo” ou o “exorcismo divertido”, e ainda o “esquisito apimentado”. Ou ainda a recusa a esse universalismo. Vivia a pensar se iríamos trabalhar com códigos populares ou com códigos eruditos? Perguntava sempre isso aos colegas da aventura musical. Era uma chatice ficar ouvindo coisas como: ”isso não é ritmo brasileiro”; “agora, sim… isso, sim é de nossa terra e nossa gente…!” Eu, na qualidade de compositor brasileiro não me vi obrigado a utilizar essas fórmulas estabelecidas. Essa discussão me incomodava…! E foi conversando com alguns compositores contemporâneos que fui sentindo mais conforto com a liberdade de criar sem tanta obediência a ritmos e fórmulas. É claro que ouvíamos Luiz Gonzaga, mas também se ouvia Tom Jobim, João Gilberto e Egberto Gismonti. Assim creio que nossa música, e, a de minha geração foi se soltando e sentindo liberdade para criar…!
No ano seguinte 1969, depois de participação em vários festivais de música local, e tendo nos saído bem nesses eventos, fomos eu e Belchior, convidados para dirigir a parte musical de um programa na TV Ceará: PORQUE HOJE É SABADO, sob a regência de Gonzaga Vasconcelos. E ali foi um dos embriões do que se tornou conhecido por “Pessoal do Ceará”. Nos festivais eu e ele conhecemos a rapaziada que fazia música em Fortaleza, mas não tínhamos intimidade com essa turma. Nossos encontros com essa turma no começo eram encontros formais. Com o programa na TV houve um amadurecimento dessas amizades e logo nos sentimos enturmados. Os encontros se estendiam ao ambiente universitário, principalmente na Faculdade de Arquitetura e aos bares, como o Balão Vermelho na Av. Duque de Caxias e também num bar ao lado da TV Ceará que tratávamos por “Gerbô”. E logo nos reuníamos no Bar do Anísio na Av. Beira Mar, vizinho à casa do Cláudio Pereira.
Lá no Bar do Anísio encontramos todos aqueles amigos que conhecemos nos festivais, na TV e nos outros bares da cidade. Éramos uma família agora. Irmãos inesquecíveis: Petrúcio Maia, Cláudio Pereira, Augusto Pontes, Rodger Rogério, Tetty, Fausto Nilo, Mércia Pinto, Chica (Francisca Nepomuceno), Ieda Estergilda, Antonio José Brandão, Dedé, Ednardo, Cirino, Fagner, Ricardo Bezerra, Olga, Delberg, Sérgio Pinheiro, Amelinha, Belchior e eu, Jorge Mello. Uma delícia estar com esses amigos…!
No ano seguinte passamos eu e Belchior, a dirigir a parte musical de outro programa na TV Ceará: GENTE QUE A GENTE GOSTA (também sob o comando de Gonzaga Vasconcelos). E ainda na universidade eu e Belchior em parceria criamos uma trilha musical para o texto de teatro de Eduardo Campos “O MORRO DO OURO”, peça que foi montada sob a Direção de Haroldo Serra e com a Direção Musical minha. O espetáculo foi inscrito no Festival de teatro de São José do Rio Preto. E esse fato foi muito importante para meu desligamento do Nordeste e ajudou na minha decisão na busca da carreira profissional de cantor/compositor no eixo Rio e São Paulo. Era o que eu esperava para ir embora definitivamente e tentar a carreira no chamado “Sul Maravilha”. Ainda sobre esse espetáculo, devo observar que foi montado também no Rio de Janeiro em 1972 e em São Paulo em 1976, sempre com grande sucesso de crítica e de público, tendo nas três montagens, minha mulher Teca Melo no principal papel feminino e eu no principal papel masculino, acumulando também a Direção Musical.
No dizer de Gilmar de Carvalho (jornalista, professor da UFC e Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP): “Na terceira fase vieram a televisão e os festivais. Os programas “Porque Hoje é Sábado” e “Gente que a Gente Gosta”, na TV Ceará, ambos produzidos e apresentados por Gonzaga Vasconcelos, passaram a recrutar o pessoal novo. Então pintou a possibilidade de mostrar um trabalho para um público maior, de se encarregar da direção musical: era a fase da aprendizagem. Os festivais, por sua vez, ao invés de separar, pelo caráter de competição, juntavam mais a turma. Era a certeza de que havia um trabalho, um processo e de que todo mundo estava perseguindo a mesma meta, apesar de serem diversos os caminhos. E houve o Festival Aqui, promovido pela Rádio Assunção e pelos diretórios acadêmicos das escolas de Arquitetura e Serviço Social e Orgacine, em cujos estúdios, em Fortaleza, foi gravado o LP artesanal, depois prensado pela Companhia Industrial de Discos. Depois vieram os festivais promovidos pelo DCE, TV Tupi, o Nordestino, também pela TV Tupi, e o de música de carnaval, pela cervejaria Astra. Nomes como o de Rodger Rogério, Ricardo Bezerra, Petrúcio Maia, Belchior, Ednardo, Fagner, Lauro Benevides, Jorge Mello, Cirino, Luis Fiuza, Ribamar, Dedé, Braguinha, Sergio Pinheiro, e Maninho despontavam.
Então o pessoal começou a se mandar. O êxodo seria a quarta fase. Era a consciência da qualidade do trabalho e a constatação de que fora do Rio-SP, centros de geração e difusão de ideias e atitudes, era inútil insistir. Faltaria ressonância ao trabalho e nenhuma proposta e arte sobrevivem dissociadas do púbico que ela visa atingir. Foi-se a primeira leva. Belchior trancou a matrícula do curso de Medicina e se mandou, cantou na “barra pesada” e venceu com “Na hora do Almoço” um festival universitário de âmbito nacional. Era o começo. Jorge Mello foi dos primeiros a emigrar. Ednardo e Fagner foram depois.”

2. A PROFISSIONALIZAÇÃO NA MÚSICA | Há um dado de suma importância que não apareceu ainda nos estudos da trajetória de todos nós. Tanto por aqueles que entendem ter havido um movimento (“Pessoal do Ceará”), ou por aqueles que entendem que não houve movimento nenhum e que tudo foi apenas um grupo de vários músicos atuando em carreiras individuais. Devo explicar que logo que chegamos ao Rio de Janeiro, conhecemos o casal Reinaldo Zandrand e Cássia Zangrand, que nos recebeu em sua casa como se fôssemos filhos. Nos trataram como filhos, fornecendo alimentos e vestuário. Também foram os fiadores do apartamento em que morei com Teca Melo, em Copacabana, tendo a companhia em casa de Belchior, Fagner e Cirino, que moravam comigo. Esses amigos que conhecemos no Rio de Janeiro nos apresentaram a todas as pessoas importantes do meio artístico, os convidando para virem a sua casa só para nos ouvir cantar e nos conhecerem. E isso acontecia todos os dias, de segunda a segunda. Creio e tenho certeza de que sem essa força de Reinaldo e Cássia, as coisas teriam sido bem mais difíceis para todos nós, artistas do nordeste buscando nossos espaços. Outro casal que foi muito importante na divulgação de nossas presenças no eixo Rio - São Paulo, foi o Manuel Carlos e Cidinha Campos, ele hoje autor de novelas da Rede Globo, ela é hoje Deputada Estadual pelo Rio de Janeiro. Foram pessoas que também muitas vezes programaram em sua casa encontros objetivando nos apresentar àqueles que consideravam importantes para nossas carreiras. Cidinha Campos foi quem nos deu o maior incentivo quando ainda estávamos em Fortaleza. Em São Paulo, tivemos outra madrinha inesquecível, Antonieta Felmanas, que fez o mesmo que os anteriores. Colocou-nos no centro dos acontecimentos culturais da capital paulista. Mantenho amizade com essas pessoas até hoje. E no caso dos falecidos, a amizade continua com seus filhos e netos. São importantes na minha vida. Inesquecíveis. Sem eles, as coisas teriam acontecido com maiores dificuldades para todos nós. Não esqueço amigos que se mostraram interessadas em nosso trabalho, programando em suas casas verdadeiros saraus que iam até o amanhecer do dia, onde pudéssemos apresentar nossa música e nossa obra aos convidados. Nos deram visibilidade. Nossa vida teria sido muito mais difícil e possivelmente teríamos tido maiores dificuldades para criar laços de amizade com os grandes artistas, produtores, executivos de gravadoras e ainda homens da publicidade. Tenho um diário que conta essa aventura, onde registrei data e hora em que cada uma das pessoas que nos ajudaram, produziram, ou patrocinaram estiveram conosco pela primeira vez. Não posso deixar de falar da importância desses amigos que nos recebiam em suas casas com a única finalidade de nos apresentar a importantes figuras da TV, do rádio e do “show business”, tanto do Rio de Janeiro quanto de São Paulo.  Fica aqui o meu agradecimento. Estendo esse agradecimento também a Simon Bau e Irede Cardoso que além de nos oferecer uma casa para morar em São Paulo, nos recebiam em seu lar para ensaios e encontros artísticos.
Devo também ressaltar que naqueles dias em que moramos no Rio de Janeiro, eu, Teca, Belchior, Fagner e Cirino, pouco me interessei por vender a ideia de um grupo musical ou de um movimento cultural organizado. Éramos, identificados, sim por “um pessoal do Ceará”, nunca, como ficou conhecido após a chegada do Ednardo, Rodger e Tetty que criaram o “Pessoal do Ceará” conhecido como um conjunto musical que alcançou grande sucesso, depois abrindo para a ideia de um movimento cultural. Vejo as coisas como vê o Fausto Nilo quando diz: “De certa forma os principais artistas e criadores envolvido nos projetos “Soro” e “Massafeira”, são originários do mesmo chamado “Pessoal do Ceará”, designação por mim constantemente rejeitada pelo seu significado regionalista e por sua estreiteza como âmbito cultural artificial que nos confina a um recanto de artistas não incluído nas escalas nacionais” (NILO, Massafeira – 30 anos. Fortaleza Edições Musicais. 2010. p.138).
No trabalho diário com a atividade musical, me tornei o maior parceiro de Belchior. Trabalhamos juntos em composições que foram nascendo naturalmente pela presença e aproximação e convivência no ambiente de trabalho e no ambiente familiar. Primeiro ainda no Rio de Janeiro à partir de 1971 o poeta morou em minha casa por três anos. Depois em São Paulo, nos tornamos sócios da PARAISO DISCOS e da EDITORA MUSICAL CONSTELAÇÕES, o que nos fez trabalhar sob o mesmo teto por duas décadas. Posso afirmar que nessa convivência, fui o leitor privilegiado, aquele que primeiro pôs os olhos no que o poeta escreveu. Ele também foi o primeiro leitor de tudo que escrevi. E nesse ambiente de trabalho, de criação, de estudos, de leitura, tínhamos altos papos, conversações infindáveis dentro das noites, sobre música, filosofia, artes plásticas, teologia e literatura. Fazíamos infinitas leituras comentadas das mais variadas obras da literatura universal. Foram momentos inesquecíveis e de grande aproveitamento para minha formação e para a qualidade de minha música, poesia e demais escritos. Principalmente de meus poemas. No meu livro BENEDICTUS – UMA AVENTURA DE MAGIA, escrevo na contracapa: “Agradeço ao parceiro de tantas canções que compomos juntos, Belchior, que foi o primeiro a por os olhos nesses escritos, …” As outras obras minhas como ensaios, monografias, ficção, têm pitacos, comentários e revisões da língua e da estética feitas pelo parceiro/amigo, poeta Bel.
Quando o sucesso chegou ao meu amigo e parceiro, com o reconhecimento do trabalho autoral conversamos profundamente sobre a situação dos Direitos Autorais no Brasil. Esse assunto me interessava. Belchior sabia disso. Analisávamos o que acontecia naquele momento em que os grandes nomes da MPB contestavam a forma de administrar e arrecadar tais direitos. Éramos ligados a entidades, a associações de classe, mas, combatemos aquelas entidades e a forma de como praticavam suas atividades. Fomos presentes nessa luta por melhores leis autorais e melhores formas de sua arrecadação. Essa batalha motivou a necessidade de o compositor ter maior controle de sua produção. Como enfrentar os usuários das obras musicais: gravadoras, editoras musicais, intérpretes, produtores de eventos, empresas de radiodifusão, TVs e outros usuários. Havia uma insatisfação quanto aos contratos de edição com cessão de direitos. Esse tipo de contrato era defendido pelo sistema com argumentos econômicos e não políticos. Era uma discussão antiga, vinha desde os tempos da Bossa-Nova. Nesse ambiente de acirrada discussão, momento em que a SICAM (Associação de Compositores e Autores Musicais), publicou um edital no Jornal da Tarde de 6/2/1975, em que nos chama de “subversivos” e até expulsou de seu quadro alguns compositores, nós os novos autores nos sentíamos sem pai, nem mãe, nem terreno para pouso. Eram momentos difíceis…! Os que entravam com alguma proposta para discussão eram tratados como “arrogantes”. Foi nesse ambiente quente de ideias e de mudanças, que um dia Belchior me chama a sua casa e lá ele sabe por mim que eu abri uma produtora de eventos. Ele queria saber mais sobre essa coisa de administrar seu próprio negócio. Me fazia perguntas diretas e cheias de curiosidade. “Jorjão tu sabe cuidar disso, dessas coisas aí, empresa, contador… impostos, essas coisas?” Eu afirmava que sim. Que me vi forçado a ter minha empresa, por não ter empresário. Por necessitar trabalhar, fazer shows, eventos em entidades que exigem nota fiscal de serviços. Foi por isso que abri a TERRAMAREAR ATIVIDADES ARTÍSTICAS naquela ocasião. Empresa em que uma das atividades era a venda de shows e a outra era a de gravação sonora de “jingles” (trilhas de publicidade) e gravação de discos.
Havia uma nova tendência dentro da música brasileira, no dizer da matéria publicada no Jornal Opinião no dia 07 de 1975, intitulada: PROFISSÃO: ARTISTA; CATEGORIA: AUTÔNOMO, da jornalista e crítica de música Ana Maria Bahiana. (Esse texto foi publicado no seu livro: “Nada Será Como Antes – MPB nos anos 70”). Ali naquela matéria no jornal a autora dizia que os artistas partiram para a autogestão de suas carreiras. Eu fui do time de frente dessa iniciativa que naqueles tempos serviu de exemplo e incentivo para muitos outros. Vejamos como me posicionei naquela matéria do Opinião. Diz ela: “-- O que é que eu tinha?”, pergunta o compositor, maestro e professor Jorge Mello. ‘Eu tinha meu disco. Só meu disco. Saí com o disco debaixo do braço por aí, saí tocando. Fui de Além Paraíba (Minas Gerais) até Altamira no Pará. No meio do caminho meu grupo desistiu, a barra era muito pesada. Aí chamei minha mulher e nós dois seguimos nos apresentando, eu na guitarra e ela com um pandeiro. E, tocamos em porta de cinema, porta de armazém, praça pública, igreja.”
Mais adiante no texto da mesma matéria continua a jornalista: “Evidentemente um esforço coletivo significaria menos trabalho para todos. Mas ainda não é fácil reunir essa geração angustiada, aflita para passar em qualquer brecha. Em São Paulo houve uma bem sucedida tentativa de mutirão musical. A Feira de Música Popular, organizada por Marcus Vinícius e Jorge Mello no Teatro Aplicado. Teve pontos positivos. ‘As pessoas se inteiraram umas dos trabalhos das outras, houve uma mostra das tendências mais diversas. E um espírito de equipe incrível: a gente não conseguia arrumar som, pedimos ao público, no primeiro dia que nos ajudasse. Durante a semana começou a pintar microfones, caixa, mesa, e, na segunda-feira seguinte, a gente já tinha uma aparelhagem’ – diz Jorge Mello. Mas foi temporária, dispersada com a ocupação do teatro por uma temporada teatral. Continua predominando o esforço individual de uma turma numerosa que inclui os cearenses Rodger, Teti, Fagner, Belchior, Ednardo e Amelinha, o pernambucano Marcus Vinícius, o piauiense Jorge Mello, o carioca Jorge Telles, os paulistas Walter Franco, Waldemir Marques e Thiago Araripe, e até alguns grupos de rock, como o Apokalipsis, o Joelho de Porco e o Made in Brasil.”
Senti naquele momento que precisava urgentemente me organizar. Tinha que ampliar as chances de trabalhar com música. Abandonei o magistério, montei uma banda com os próprios alunos de música escolhido a dedo entre as três faculdades onde ensinava e caí na estrada com os shows. Ao mesmo tempo também invadi as produtoras e os estúdios na busca de trabalhar com publicidade. Ampliei os contatos indo às gravadoras não só oferecendo minhas composições e minha voz, como artista do “cast”, mas, também oferecendo meus conhecimentos de arranjador para atuar nas produções de álbuns dos artistas já contratados. Deu certo. Virei um rato de estúdio. Passava dias e dias ora gravando ou produzindo trilhas, ora como músico acompanhante. Ora como produtor ou criador de trilhas de publicidade. Ora como produtor dos álbuns de grandes nomes da música popular. Ganhei muita experiência.
Essa experiência com certeza atraiu a atenção de Belchior. Que sendo o artista de sucesso popular que se tornou, não poderia cuidar de uma gravadora, uma produtora e uma editora musical sozinho, precisava de alguém com essa experiência. Então me convidou para ser seu sócio e eu me associei a ele na criação de nossa gravadora PARAISO DISCOS. Devo informar que não fechei a minha própria empresa e que continuei a prestar os serviços de produção e criação de trilhas de publicidade, de cinema e de teatro na JMT PRODUÇÕES. E assumi a Direção de Produção de tudo que a PARAÍSO lançou ao mercado. Uma empresa não atrapalhava os objetivos da outra.
 Na área de shows, tive que aprender muito também. Como falei eram tempos de mudanças. “Os empresários, subprodutos da indústria fonográfica, se viram em idêntica situação. Como explica, agudamente, o compositor Marcus Vinícius: ‘A crise da indústria estrangulou o mercado, encareceu o custo da montagem de um espetáculo. Aí os artistas foram passando às escolas, às faculdades. E para fazer show em faculdade, não precisa empresário. Empresário, como em geral a gente imagina, aquele cara que descobre o artista, constrói o artista e batalha por ele, não existe no Brasil, há muito tempo. Isso é miragem de uma outra realidade, de Hollywood. Empresário é um cara que trabalha no telefone, marcando datas. Isso, se você quiser, você pode fazer também.’”
Foi o que fiz ao abrir a minha própria produtora e gravadora. Senti que poderia fazer alguma coisa na área de produção de eventos e de trilhas e ainda de discos, porque não via como entregar isso a outra pessoa, porque não atraí o interesse de nenhum sujeito que quisesse fazer isso por mim. Caí de boca no mercado e fui fazer meus shows. Produzir trilhas de publicidade e trilhas para teatro e cinema. E produzi e lancei meus próprios álbuns pelo meu próprio selo.
O Belchior ao perceber essas minhas iniciativas, imediatamente perguntou se eu saberia abrir e cuidar de uma empresa que fosse gravadora e também editora musical. Respondi que saberia, sim. E poucos dias depois ele me chamou para um novo encontro e resolvemos ter nossa gravadora e nossa editora musical. Assim nos tornamos sócios. Nasceram as empresas PARAÍSO DISCOS (gravadora) e a CONSTELAÇÕES (editora musical). Na primeira produzi nos melhores estúdios de São Paulo mais de duas centenas de álbuns. Gravei os mais variados artistas, dentre eles o Belchior e meus próprios álbuns. Uma façanha que o ambiente artístico musical da época não entendia. Era um pioneirismo, no Brasil, ver os próprios artistas terem uma gravadora. E por causa dessa sociedade, dessa ligação empresarial, eu e Belchior passamos muito tempo juntos e em razão disso as parcerias foram aparecendo naturalmente. Nunca programamos nem agendamos fazer músicas. Como se poderia pensar. Tipo, assim, esquecer as funções por um tempo e trabalhar na criação de composições em parceria. Não! Não acontecia assim. Nossas parcerias iam surgindo por puro acaso.
Eu vivia com o violão ao lado da mesa de trabalho no escritório, porque era o produtor e arranjador, e, o instrumento me facilitava nesse serviço de trabalhar a sonoridade e os arranjos das obras que iria gravar no estúdio. Gravava quase todos os dias! E quando no escritório, pegava o violão, muitas vezes para criar um arranjo para uma produção de um artista qualquer, ao pontear alguns acordes o Belchior gritava de sua sala ao lado: “Jorjão, toca isso aí de novo…”  Eu repetia a frase no violão uma duas três vezes e ele aparecia curioso e dizia. “Faz mais uma vez…!” Passados alguns instantes ele aparecia com uns versos e pedia que eu visse. Eu via, cantarolava para ele ali do lado e assim as canções foram nascendo.
 Ele costumava comer o alimento que cozinhava na cozinha do escritório. Muitas vezes ao fazer o alimento ou enquanto comia ele gritava de lá. “Repete esse lance aí Jorjão!” Eu repetia e no final da tarde ele me entregava um texto pronto. E assim criamos mais de duas dezenas de canções que foram gravadas por ele e por mim e por vários outros cantores e ainda temos uma dezena de canções inéditas…! Posso afirmar que sou o seu maior parceiro em número de obras, ou o parceiro mais constante do poeta Belchior.

3. AS PARCERIAS | Vamos falar de algumas das canções que fizemos juntos e depois tratarei de outras obras criadas só por ele e que merecem considerações. Para tanto devo informar que não me preocuparei com a cronologia de suas criações, nem de seus registros em suportes como LP em vinil ou em Cds e outros, onde se encontram essas obras fixadas.
Certo dia eu trabalhava na criação de uma canção falando de meu filho Rúrion quando tinha cinco anos (isso em 1983), e de repente o Bel entrou no escritório, foi para sua sala e lá permaneceu desenhando por algum tempo. Eu matutava uns acordes daqui, outros dali… quando ele gritou de lá, como sempre fazia quando se tocava ou se sensibilizava com minhas criações ao violão: “Jorjão repete isso mais rápido, como se estivesse mostrando a Bil Harley, ou pro Chuck Berry…!” Eu imediatamente atendi. Como não tinha texto escrito ainda, tentava por uma letra improvisada na melodia, para facilitar o canto que criara de forma a ser perceptível ao parceiro. Meu texto na realidade estava só começando… era formado de pequenos rabiscos, nada ainda amadurecido. Afinal era pra meu filho… não passava de pedaços de texto. Tinha poucas palavras e por não ser suficiente para solfejar conforme pedira o parceiro, fiquei como faz um repentista, improvisando, na forma de “meio quadrão”, com versos em redondilha maior (versos de sete sílabas). E no meio dessas estrofes eu ficava enrolando a melodia dizendo apenas: “Rock, rock, rock, rock”. E, assim segui cantarolando a melodia, voltando a repetir os improvisos naquela bela forma, mas, cantava numa melodia que mais lembrava um rock ou blues, não os modos do repente. Passados alguns minutos o Bel saiu de sua toca e me surpreende com uma estrofe pronta, com um belo texto que ele criou, utilizando algumas palavras da obra original que eu escrevera pra meu filho. Adorei! Repeti aquilo por horas. E não falamos mais nisso. Ele voltou a seus afazeres e eu cuidei de outras providências. No dia seguinte ao chegar no escritório pela manhã, ele me recebeu com o texto pronto. E juntos ficamos horas cantando e conversando sobre o texto e a melodia. O título: “CANÇÃO DE GESTA DE UM TROVADOR ELETRÔNICO”.
Essa canção foi gravada pelo bardo cearense no álbum que a PARAÍSO DISCOS produziu com ele, cujo título é: “CENAS DO PRÓXIMO CAPÍTULO”. Foi o primeiro disco de nossa empresa que verdadeiramente vendeu. Um sucesso muito grande e nos deu fôlego para outros empreendimentos. Era esse o terceiro álbum de nossa gravadora. Nesse álbum ele interpretou quatro obras minhas escritas em parceria com ele. Além da obra citada gravou também: “ROCK ROMANCE DE UM BOBÔ GOLIARDO”, “PLOFT” e “O NEGÓCIO É O SEGUINTE”.
Adorei “CANÇÃO DE GESTA DE UM TROVADOR ELETERÔNICO”. Belchior que até então se caracterizava por ser um compositor de melodias monocórdicas, em alguns casos, apresentadas como meros pretextos para a sustentabilidade do texto, agora tinha um rock pesado, tradicional como tantos outros dos anos 1950 e do início dos anos 1960. Lembrando mesmo as criações e interpretações do Chuck Berry e do Elvis. Ele que sempre se mostrava um inventor de belos textos, criou para minha obra uma dessas joias. Como bem disse o jornalista Jotabê Medeiros: “Musicalmente, Belchior assumia que a influência da cultura ibérica, moura e provençal definia seu estilo, mas não o encapsulava em nenhuma formula. Assumia inflexões dos cantos gregorianos que aprendera no colégio de frades e das tendências poéticas épicas e picarescas da tradição”.
O parceiro entendia essa característica de sua obra. Sabia que tem letras mais significativas que suas melodias. Ele sabe que suas criações sem parceria, privilegiam mais o texto do que o resultado musical de sua criação. Ele reconhece isso quando diz: “É claro que as minhas melodias são melodias fáceis, redundantes e a minha letra é mais importante do que a música, assim como as letras do Chico são mais importantes do que a música e a melodia do Pixinguinha é mais importante do que a letra” (Belchior em entrevista ao Pasquim em 1982)
O que é importante que se diga é que essas melodias criadas pelo parceiro eram absolutamente eficientes para a sua função. E com isso a média da qualidade de criação alcançava níveis elevados. Ótimas canções realizadas sem a ajuda de parceiros. Ótima obra, fácil de ser reproduzida nos bares por outros músicos e guardada na memória. E nas letras vemos fenômenos fantásticos, inclusive a inclusão de um vocabulário novo que foi incorporado ao ambiente da música popular.
Essa posição de ser um cantor popular, de sentir que suas melodias simples podem chegar mais facilmente às massas, ao sucesso radiofônico, ao povo, era uma das coisas com as quais o poeta Belchior trabalhava. Ele tinha muita consciência dessa característica de seu trabalho e o projetava exatamente para isso. Desejava se comunicar com as massas e assim levar o seu recado direto em textos com narrativa sem grandes metáforas e que atingem como flechas o alvo desejado. Vejamos essa sua colocação na entrevista que deu logo no início da carreira: “ Eu não quero envernizar o folclore, eu não quero fazer o que o povo faz muito melhor do que eu e principalmente porque eu defino música popular como aquela que está do lado do povo. Não somente aquela que vem das camadas mais baixas da população ou das camadas marginais. Eu defino a música popular de uma forma ideológica, é aquela que está do lado do povo. É aquela que fala das desesperanças, das utopias, das vicissitudes, dos ideais, dos trabalhos, dos sonhos, das conquistas do povo, então essa é uma música popular. Então eu trabalho em cima disso. Povo é uma coisa muito grande, (Belchior em entrevista a Wofenson), publicado por Josy Teixeira em sua tese de doutorado na USP.
Suas observações me foram muito úteis na minha formação. E procurei utilizar na minha produção. Não podia perder a oportunidade de absorver as suas tiradas geniais. “Isso não pode ser atribuído ao acaso, porque de um lado o número dos loucos é relativamente bem pequeno, por outro lado porém porque um indivíduo genial é um fenômeno raro, para além de qualquer avaliação normal, e que aparece na natureza somente como a maior das exceções;” (SHOPENHAUER).
Uma das características dos compositores de minha geração, vindos do Ceará, é que sempre se buscou “formas e temas perdidos no passado brasileiro e cearense”, mas, fundindo com novas experiências que pudessem concorrer dentro do mercado musical. Eu procurava ouvir a todos e tirar o melhor de cada um no amadurecimento de minha música e na abertura de minha mente. No dizer de Antonio José Brandão no texto escrito para o livro “MASSAFEIRA – 30 anos”, temos: “Na sua luta, os artistas pretendiam isolar e evitar a folclorização supostamente imposta pelo Movimento Armorial e pela fidelidade ao forró tradicional, exigida por muitos. Quase todos os teóricos não compreendiam que o forró tradicional foi novo e revolucionário em seu tempo. Tendiam a eternizá-lo pela forma como tendo surgido não do suor das filas às portas das gravadoras, emissoras, revistas e jornais, mas sim dos suspiros românticos da flor do mandacaru. Não percebiam que estavam sendo reacionários. Ou, o que é ainda pior, estavam patrulhando.” (BRANDÃO. MASSAFEIRA - 30 ANOS. Fortaleza Edições Musicais 2010. p91).
A nossa parceria “CANÇÃO DE GESTA DE UM TROVADOR ELETRÔNICO” (Jorge Mello e Belchior), tem cunho biográfico. Pois apresenta a história de todos nós que deixamos nosso canto lá no interior (no nosso caso o interior nordestino, eu de Piripiri no Piauí e meu parceiro, de Sobral no Ceará), para cair na estrada e terminar na cidade grande. O texto explica muito bem essas três etapas. Pois tem três estrofes onde a primeira te coloca lá na origem, mas, recebendo as influências do rádio, do cinema e do disco por meio do alto falante que toda tarde e parte da noite nos informava dos acontecimentos das “terras civilizadas” por meio da amplificadora estrategicamente colocada no alto da torre da igreja ou no alto da cumeeira da sala de projeções. A segunda estrofe descreve a “estrada tirana” e suas armadilhas e o sabor de suas aventuras. Por fim na terceira estrofe temos a cidade grande e seus desafios, nos colocando em localidades como o Rio de Janeiro e São Paulo. Vejam o texto:

CANÇÃO DE GESTA DE UM TROVADOR ELETRÔNICO
(Jorge Mello e Belchior)

O som do alto falante
Rolava e me dava um toque.
E Chuck Berry berrando
em sua guitarra, era um choque.
Cometas Halley passando,
astros no pó de Woodstock,
cabeças, pedras rolantes,
JIM, Jimi, John, Janis Joplin
E a moçada do subúrbio,
Cinemas, topetes, motos…
Rock, rock, rock, rock’n’roll!
Rock, rock, rock, rock’n’roll!

Caí na estrada tirana:
(A juventude é um dom!)
garotas, sonhos, mil transas,
como dar bandeira é bom!
Olhando a cidade grande,
cheia de fúria e de som;
querendo ser uma estrela
de sexo, lazer e neon…
Cidade grande é uma droga
mas o rock dá o tom.
Rock, rock, rock, rock’n’roll!
Rock, rock, rock, rock’n’roll!

São mil milhões de habitantes
deste parque industrial:
negros, mulheres, menores
- filhos da crise geral –
iguais pela mesma bomba
que vai cair no quintal.
Ídolo e Deus dos esgotos
a musa urbana me fez.
Meu sucesso é saber disso
e bater tudo pra vocês.
Rock, rock, rock, rock’n’roll!
Rock, rock, rock, rock’n’roll!ssa

Para minha felicidade, essa canção passou a ser uma daquelas músicas que se fixou no repertório dos shows do amigo/parceiro. E em virtude disso teve outras gravações, principalmente na produção de discos gravados ao vivo, como é o caso do álbum “UM SHOW – 10 ANOS DE SUCESSO”, de 1987. Outra notoriedade da obra é que ela foi a escolhida para a abertura dos shows que o Belchior apresentava por todo o mundo, durante muitos anos. E que teve um clip produzido de altíssimo nível apresentado pelos programas de TV. Era o Belchior roqueiro se manifestando. Também a obra citada, foi gravada por mim e por vários outros intérpretes. Um sucesso!
A nossa produção não era engessada nos moldes e formas tradicionais de composição, como acontecia em Pernambuco com o frevo, engessado, congelado e embalsamado por décadas e décadas, ao contrário do que fizeram os baianos que levaram o frevo para si e o “desbundaram” como bem entenderam com suas guitarras e seus trios elétricos. Compomos canções em várias vertentes. Na realidade sempre abri meu leque. Trabalho melodias até em modos como o mixolídio, utilizando instrumentos eletrônicos da época, como os “mugs”, “escaners” e outros, basta ver meus arranjos em canções como: “DENTRO DE MEUS OLHOS”, “ A NATUREZA REZA”, e outras…! Como curiosidade informo que fiz um álbum intitulado “UM TROVADOR ELETRÔNICO”, onde nos shows da temporada, não levei músicos para o palco e sim, anunciava a banda formada por computadores e outros instrumentos eletrônicos, cada um sobre uma cadeira (como se fossem os músicos ao vivo, só que eram máquinas), com os nomes: Raimundo, Mundo, Mundão, Mundinho e Mundoca. Apenas instrumentos eletrônicos, executando os arranjos e o acompanhamento do show como se músicos em pessoa fossem. Era um momento do mais fino humor no meu show naquela temporada em fins de 1980. Uma delícia. Viajei com o show por todo o país e fui com esse espetáculo até Cancum no México.
Belchior gravou canções em parceria comigo também criadas na forma do Raggay, Country e blues. E todas essas formas me pareciam cômodas e confortáveis. Nunca senti a necessidade de criá-las como formas brasileiras tradicionais como o baião, xotes ou maracatus. Quando fiz aboios e gravei aboios, não falei de bois ou currais, mas, tratei de falar da minha realidade na cidade grande, estava no Rio de Janeiro em 1972, como fiz em “KITCHENET” (um aboio), cujo texto é:

A minha cozinha é vizinha da porta da rua, ê, ê
E já nem sei se posso é chamar de rua,
o corredor, o corredor do oitavo andar do Edifício Central…
Mas, inda estou por aqui, pessoal:
Com esse mesmo olhar, normal, fatal, igual…
de quem mora e vive, de quem mora e vive nessa capital…!

4. REFERÊNCIAS ENCONTRADAS NA OBRA DE BELCHIOR | “Não existe em mim simulação alguma, mostrando-me eu por fora o que sou no coração.” É o que pretendo fazer. Falar das obras que meu parceiro tão inteligentemente homenageava os autores da literatura universal e nacional.
Na obra de Belchior há inúmeras homenagens aos clássicos da literatura universal e também da música popular brasileira. Em todos os seus álbuns, se pode testemunhar referências aos autores clássicos ou a suas obras. Logo no primeiro álbum de 1973. Bel inicia com a canção “Mote e Glosa”, onde mostra conhecer o termo “mote”, sentença, expressa em um ou mais versos da glosa (poesia em que cada estrofe termina por um dos versos de um mote). Mostra que tem intimidade com a poesia dos repentistas por ser a glosa uma das formas clássicas dos desafios de repentes. Nesse mesmo álbum encontramos a canção “A Palo Seco”, uma homenagem a João Cabral de Melo Neto na escolha do título da canção. No seu poema o poeta pernambucano repete o termo por várias vezes o definindo. Apresento uma das estrofes do belíssimo poema A PALO SECO de João Cabral de Melo Neto, como exemplo:

O cante a palo seco
é um cante desarmado:
só a lâmina da voz
sem a arma do braço;
que o cante a palo seco
sem tempero ou ajuda
tem de abrir o silêncio
com sua chama nua.

Nas formas escritas das canções do álbum MOTE E GLOSA da gravadora Chantecler estão claras homenagens aos poetas concretistas, irmãos Campos e aos compositores Gil e Caetano que tão bem utilizaram poemas concretos em suas composições. Basta a leitura das letras de: MOTE E GLOSA; BEBELO; MÁQUINA; CEMITÉRIO, sem precisar dar como exemplo a distribuição da letra de NA HORA DO ALMOÇO. Todas essas canções citadas, são apenas da autoria de Belchior.
Saliento que esse assunto foi tratado com maestria na tese de doutorado de Josy Teixeira, leitura que muito me agradou ler, falei isso a ela. E indico aos interessados na matéria sempre que posso. Vou fazer aqui um pequeno resumo do  que pretendo explorar nesse ensaio:
No segundo álbum ALUCINAÇÃO (Belchior), de 1976, o poeta alencarino dialoga com vários clássicos e com os ídolos da nossa MPB. A canção que dá nome ao LP, comenta o modo de vida e canções de Gilberto Gil, que naqueles tempos estava envolvido com macrobiótica e sabedoria orientais, e gravou de sua autoria a canção “ORIENTE”, e depois gravou sua música “EXTRA”, em que diz que espera “algo mais”. Belchior abre sua canção afirmando: “Não estou interessado em nenhuma teoria, em nenhuma fantasia, nem no algo mais…” adiante arremata: “nem nessas coisas do oriente, romances astrais. A minha alucinação é suportar o dia a dia e meu delírio é experiências com coisas reais.”
Em uma entrevista que Gilberto Gil deu a Ana Maria Bahiana publicada no jornal O Globo de 1977, sobre a acusação de que se tornara um alienado em suas produções mais recentes e pós tropicalismo ele diz: “Isso já vem nesses últimos anos desde que voltei da Inglaterra, com insinuações mais ou menos evidentes e frequentes de que eu estaria alienado, de que teria abdicado de uma posição de combate e não sei o que. Na época do Refazenda, já teve isso, e mesmo antes, na época do Expresso 2222, a macrobiótica era fuga e tudo. Quer dizer, isso já vem esse tempo todo e vem já como um reflexo do tropicalismo que foi assim o momento da grande desconfiança conosco, comigo principalmente (In. BAHIANA, 1980, P 64 E 65).”
Por outro lado o Belchior em entrevista na Revista POP, ao ser perguntado sobre sua visão de misticismo, oriente, ioga, responde: “ Sou completamente desinteressado. Não acredito, não quero nenhuma nova teoria que me decepcione depois. Sou um cara mais preocupado com toques imediatos, do presente. A arte não pode viver de ilusões.”
Como diz Belchior, tudo é proibido, “aliás tudo é permitido quando ninguém nos vê”…
Também nesse mesmo álbum de 1976, Belchior, demonstrando intimidade com a literatura popular do cordel, na canção SUJEITO DE SORTE (Belchior), quando cita trechos do livro “Poeta do Absurdo” de Orlando Tejo. Livro que tenta fazer a biografia do poeta cordelista paraibano Zé Limeira. O trecho citado por Bel é parte do poema “Poesia dos cachorros” (Zé Limeira), cujo verso original diz:

Eu já cantei no Recife
Dentro do Pronto-Socorro
Ganhei duzentos mil réis
Comprei duzentos cachorro
Morri no ano passado
Mas esse ano eu não morro.

O texto da canção do bardo cearense assim trata a matéria:

SUJEITO DE SORTE
(Belchior)

Presentemente eu posso me considerar um sujeito de sorte
porque, apesar de muito moço, me sinto são, salvo e forte.
E tenho comigo pensado: Deus e brasileiro e anda do meu lado.
E assim já não posso sofrer no ano passado.
Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro.
Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro.

Belchior sempre foi um leitor contumaz, obstinado. E como tinha muita intimidade com os livros, em especial com aqueles volumes que mantinha em sua biblioteca particular, sabia de cor o lugar de cada um e se exibia para os amigos ao encontrar cada um dos livros, de costas, sem olhar a prateleira onde os livros eram dispostos, sempre bem arrumados. Também se exibia, mostrando como é dotado de memória especial. É que muitas vezes pedia aos presentes que lá apareciam para nos visitar no escritório da PARAÍSO DISCOS, que escolhessem qualquer livro, o abrisse e lesse determinado trecho escolhido aleatoriamente. Essas pessoas iam à prateleira e escolhiam determinado livro, abria em página indeterminada, qualquer uma que fosse, iniciava a leitura e o Belchior de cabeça à sua frente continuava o texto de onde o outro parava sua leitura. Um verdadeiro show de mágica. Essa façanha me espantava sempre que via. Não tenho esse tipo de memória nem cerebral, nem visual. Por vezes, o parceiro, dizia a página em que se abrira o livro. Uma coisa fantástica, incrível, inacreditável. Eu um dia visitando a casa do Sério Pinheiro e Luciene Simões, em Fortaleza, pessoas que há anos me recebem para um sarau cultural, musical, literário, programa que já se tornou tradicional, pois repetido dezenas de vezes a cada presença minha na capital cearense, ouvi esse mesmo relato dos amigos contemporâneos presentes naquele evento. Eram eles: Galba Gomes e João de Paula. E imediatamente confirmei isso, por ser testemunha de muitos desses momentos gloriosos da convivência que tive com o poeta Belchior. Relembramos essas facetas incríveis com que o poeta se exibia aos amigos…!
O reflexo dessa intimidade com livros e com os autores da literatura universal é flagrante na obra de Belchior. Podemos citar dezenas de obras com referências textuais a esses autores e suas obras, notabilizando as criações do poeta Bel, como uma obra cheia de citações dos clássicos. Faceta que só mesmo um conhecedor daquela literatura sabe fazer. E o faz porque leu e as mantém de memória. Faceta única sem paralelo…!
Partindo desse esclarecimento, vejamos algumas das obras do Belchior que têm referências textuais de algumas obras clássicas da literatura brasileira e universal. Primeiro tratarei de algumas obras em que sou parceiro, pois tais citações foram colocadas na minha presença no ato de criação dessas obras. Quando criamos a canção NOTÍCIA DE TERRA CIVILIZADA (Jorge Mello e Belchior), Belchior me apresentou o texto que diz:

Lido e corrido relembro
Um ditado esquecido:
“(…) antes de tudo um forte”.
Com fé em Deus um dia
ganha a loteria
pra voltar pro Norte.

Temos aí uma referência ao livro “Os Sertões” de Euclides da Cunha, quando escreveu: “O nordestino é antes de tudo um forte.” A citação está entre aspas e indica que a frase dita pela metade, vem de um esquecimento do personagem, e que sendo dita assim, prova que o co-autor, não se esqueceu, e que lembra muito bem da oração por inteiro.
E não acaba por aí, porque encontramos ainda só nas minhas parcerias com Belchior, inúmeras referências à literatura universal: Na canção PLOFT (Jorge Mello e Belchior), há referências a Eduardo Galeano e seu Las venas abiertas de Latinoamérica. Vejamos:

O Nordeste sentado na esquina do mapa OLVIDADO
DE LOS REYES DEL MUNDO EM UM SIGLO DE LUCES,
se mira no Atlântico: Amérias, Africas,
Índios, pobres e jovens: tudo um negro blues.
A dor do Nordeste, a cor do Nordeste;
(deste e daqueloutro que homem não vê!)
LAS VENAS ABIERTAS DE LATINOAMÉRICA:
mil poetas: primatas que abraçam o ET.

Em O NEGÓCIO É O SEGUINTE (Jorge Mello e Belchior) há referências a Augusto dos Anjos quando dizemos:

Engenho (e arte) do Pau-d’Arco…
‘Tome Dr., essa tesoura e… corte.
 
Ainda tratando dessas homenagens à literatura brasileira, posso indicar a obra musical de Belchior LIRA DOS VINTE ANOS (de Belchior e Francisco Casaverde), canção gravada no álbum ELOGIO DA LOUCURA de 1988, onde ele faz uma referência ao livro de Álvares de Azevedo (Manoel Antônio), poeta, dramaturgo e contista, filiado à escola representada por Byron na Europa. A referência de Belchior está logo no título de sua canção que tem o mesmo título da obra de Álvares de Azevedo, pois “Lira dos Vinte Anos” é o livro publicado postumamente em 1853, com poemas do autor, dentre eles Noite na Taverna.
Agora vamos tratar das obras de Belchior que homenageiam a literatura universal: vamos começar pelo álbum já citado ELOGIO DA LOUCURA. O título do álbum é o mesmo título da obra de Erasmo de Roterdan que viveu entre 1466 e 1536. O livro “Elogio da Loucura” foi editado em 1509. Uma sátira na qual os poderosos da época em especial os homens da Igreja, são tratados com a ironia do escritor. Esse é sem dúvida um dos mais influentes livros da civilização ocidental. E deu nome ao álbum de Belchior do ano de 1988. Nesse álbum está uma das canções de Bel que mais gosto. Balada de Madame Frigidaire (Belchior). Uma declaração de amor pela nova geladeira. Incrível…! Surpreendente. Vejam o refrão:

Mister Andy, o papa pop,
E outro amigo meu xarope
Se cansaram de dizer:
Prá que Deus, Dinheiro, Sexo,
Ideal, Pátria, Família,
Se alguém já tem frigidaire?
É Freud rapaziada,
Vive a cair na cantada
De um objeto mulher.

Na canção VELHA ROUPA COLORIDA (Belchior), uma das obras que teve mais sucesso na carreira do cantor/compositor, temos também referências do autor à literatura universal como se pode ver a homenagem ao escritor americano Edgar Allan Poe, nascido em Boston em 1809 e falecido em Baltimore em 1849, gênio atormentado de imaginação estranha. Publicou poemas, contos e novelas que o tornaram muito popular. Na canção de Belchior citada, temos referências ao texto de “O Corvo” de Poe.

Como Poe, poeta louco americano
Eu pergunto ao passarinho: Black bird, Assum-preto, o que se faz?
Haven never haven never haven never haven never haven
Assum-preto, passáro preto, black bird, me responde, tudo já ficou atrás
Haven never haven never haven never haven never haven
Black bird, passáro preto, passáro preto, me responde
O passado nunca mais

Na álbum intitulado “TODOS OS SENTIDOS” de 1978, temos várias referências e citações de Belchior, onde posso indicar “To be or not to be”, citado na obra TER OU NÃO TER (Belchior), que é uma homenagem a William Shakespeare, nascido em 1564 em Stratford e morto em 1616. Foi autor, ator e coproprietário do Globe Theatre, e que tornou-se célebre. Escreveu principalmente para teatro, mas, também escreveu sonetos.
Nesse álbum temos referências a Jorge Benjor na canção COMO SE FOSSE PECADO (Belchior), e outra referência a canção “Acorda, Maria Bonita” (de Antonio dos Santos), e também à canção “Até Amanhã” (de Noel Rosa) na obra ATÉ AMANHÃ (Belchior). Vejamos:

Até amanhã
Se o homem quiser – mesmo se chover
Volto pra te ver mulher.
Até à manhã.
Se houver amanhã – se eu vir à manhã
Mando alguém dizer como é.

E em “COMO SE FOSSE PECADO vejamos esse trecho:

ACORDAAMOR
O sono acabou Maria Bonita
Vem fazer o café.
O homem comum inda nem levantou
Mas a polícia já está de pé.

Na canção TUDO OUTRA VEZ, Belchior, faz referências ao livro “A Normalista” de Adolfo Caminha e também à música NORMALISTA (Benedito Lacerda e David Nasser), Vejamos:

Gente de minha rua! Como eu andei distante!
(Quando eu desapareci, ela arranjou um amante.)
Minha normalista linda! Ainda sou estudante
Da vida que eu quero dar.

Belchior referencia a várias obras célebres em suas canções. Na canção VÍCIO ELEGANTE (Belchior e Ricardo Bacelar), obra que dá o título ao CD gravado em 1996, ele cita o poema “Flores do mal” de Charles Baudelaire, nascido em Paris em 1821. O poema citado foi escrito em 1857. Vejamos:

Versos perversos das ‘Flores do mal’
nesse romance, fantasia oriental
cenas obscenas? Não! Apenas de amor!
Que estou navegando numa tela multicor.

Belchior também cita outro clássico da literatura logo adiante nessa mesma canção. Apresenta trechos do poeta português Fernando Pessoa, nascido em Lisboa em 1888. Pessoa criou heterônimos como Alberto Caeiro, Álvaro de Campo e Ricardo Reis, dos quais inventou biografias distintas. Vejamos na obra citado do poeta cearense a referência ao Pessoa:

O viver é de improviso
Faz sua própria Lei
Mas navegar é preciso:
Vou mandar-te um Lay-lady-lay.

Outra referência do poeta Belchior é encontrada na canção SE VOCÊ TIVESSE APARECIDO (Belchior e Gracco), numa referência ao poeta, pintor e gravador inglês Willian Blake, nascido em Londres em 1757, com citações de suas obras “Canções de Inocência” e “Canções de Experiência”, ambos escritos em 1789. Vejamos:

Se você tivesse aparecido
em minha adolescência,
canção Blake de inocência
amor, quem não teria ido e vivido
com Byron, o bardo da gangue
do “le me perish young
Se você tivesse aparecido
esta droga de existência
se mudaria em viver
eu coração (traído) bandido,
canção Blake de experiência
revelaria seu ser.

Na canção AMOR DE PERDIÇÃO, a homenagem do poeta Belchior é explícita a Camilo Castelo Branco, polígrafo e romancista português nascido em Lisboa em 1825. Um mestre do idioma com 262 obras. Representa o apogeu do romantismo. “Amor de Perdição” é sua obra prima. A obra homônima do compositor cearense está em seu álbum “Elogio da Loucura” de 1988.
No álbum ”Todos os Sentidos” de 1978, Belchior trás uma das canções que mais faz referências em sua obra à obras clássicas da literatura universal. Sua canção DIVINA COMÉDIA HUMANA, segundo ele feita em Teresina em 1976, homenageia em suas referências a quatro grandes obras: 1- “Divina Comédia” de Dante Alighieri, poeta italiano nascido em Florença em 1321, que por ser o criador dessa obra citada é considerado o pai da poesia italiana; 2 – “Comédia Humana” de Honoré de Balzac, escritor Frances nascido em Tours em 1799. Sua obra citada é uma série de romances que trata da sociedade francesa ao fim da monarquia. Escreveu também contos; 3 – “A comédia humana” de Willian Saroyan; e 4 – “Via Lactea parte XIII” de Olavo Bilac, nascido no Rio de Janeiro em 1865, parnasiano, rígido na forma. Sua poesia tem várias fases, marcada ora por um lirismo arrebatado e sensual e depois pela exaltação épica e por vezes pelo pendor à meditação. Eleito o Príncipe dos Poetas Brasileiros. A poesia do Bilac é citada na obra literalmente no decorrer da música.
Eu e Belchior basicamente vivemos durante nosso trabalho em sociedade, dentro de uma biblioteca. A dele montada na Paraíso Discos (gravadora em que éramos sócios e dirigida por mim) e a minha biblioteca na JMT Produções (empresa que tinha em sociedade com minha mulher Teca Melo). A leitura era atividade constante em nossa vida. Acontecia entre um show e outro, também entre as gravações nos estúdios, porque como produtor de discos das duas empresas, produzi mais de duas centenas de álbuns somando mais de vinte mil horas de gravação (isso contando apenas o tempo de gravação dos discos que produzi sem falar nas trilhas para publicidade e para cinema e teatro  uma centena delas. Como sei desse volume de horas de produção dos discos? Porque nas fichas de produção, um dos dados registrados é o gasto com pagamentos de estúdios. Esse serviço era contratado, e cobrado por tempo de gravação. Custava muito caro a hora de gravação num bom estúdio. Alugava-se um estúdio para a gravação do álbum de seu artista. Não tínhamos estúdio próprio. Assim eu sei exatamente quanto tempo fiquei gravando. E nos intervalos, apenas lia…! E o resultado dessa leitura está presente na obra. É verdade, há a referência da literatura brasileira e universal em toda nossa obra. Belchior era profundo conhecedor dos clássicos da literatura e do pensamento.

5. CAPÍTULO FINAL | “Eu, por exemplo, acho que, para conseguir liberdade, tem que se pulverizar o poder, diminuí-lo ao máximo, ao ponto de todas as pessoas gerirem individualmente as suas vidas e presença no mundo, não precisando de nenhum chefe de rebanho, mestre, religião. Isso pode dar a ideia de que o meu trabalho não pretende tocar na política. Eu não quero fazer uma música simplesmente falando sobre o divórcio. Eu quero muito mais que isso. Não basta que o MDB vá ao poder. Eu quero que o poder não mande em mim. Minha utopia é paradisíaca, edênica, dionisíaca. Eu acho mais importante cuidar da felicidade das pessoas do que do Produto Interno Bruto. (Antonio Carlos Belchior)”
As teses, teorias e outras impressões que vi publicado, sobre o que teria acontecido com o poeta/parceiro para que ele tomasse a decisão que tomou há mais de dez anos, essa misteriosa saída dos palcos e de perto dos parentes e dos amigos, me levaram a sugerir a leitura de momentos difíceis pelos quais passaram outros artistas importantes da música popular brasileira. Ainda nos anos de 1974, foi publicado no Jornal OPINIÃO a entrevista inédita de Chico Buarque quando perguntado sobre seu show e porque tem feito poucas apresentações. Na entrevista ele diz:
“Agora, eu não estou fazendo show, mais. Estou cumprindo alguns compromissos a duras penas, porque num show você é conduzido a um troço que gera uma carga emocional diária e eu não tenho estrutura para suportar. Foi por isso que eu me mandei, cancelei a temporada, fui ao médico, fiz um check-up e resolvi que não estava bom. Eu me expunha emocionalmente demais, e não só como artista, ai é que está o negócio. Se eu entrasse num palco e me maquiasse, me vestisse e interpretasse alguma coisa, legal. Em algumas músicas eu já conseguia fazer isso, um negócio que eu aprendi com Caetano, sair um pouco como pessoa.”
Em outra entrevista, Luiz Gonzaga Jr., se diz preocupado com o Milton. Diz que o amigo não aguenta mais a exposição e o assédio: “ Este país só vive tendo um ídolo, um padrão, um modelo. E estão querendo por o Milton lá. O trono está prontinho pra ele sentar”. E Milton, na mesma matéria assim se manifesta adiante: “Eu, estou sentindo isso ó… faz tempo, já. Porque o engraçado é que, para ter uma pessoa em evidência, parece que tem de derrubar outras, só pode um de cada vez. E eu comecei a sentir isso, muitas perguntas sobre o que meu trabalho se propunha, a onde levava, muitas solicitações para que indicasse caminhos, muitas comparações com a coisa dos outros. Com o trabalho do Caetano, então, demais. E eu comecei a desconfiar, sabe como? Comecei a conversar isso com o Gonzaguinha já faz muito tempo. E eu dizia sempre, e ainda digo, se for realmente assim, eu tiro o time de campo, vou não sei pra onde, mas vou.”
Adiante ele ainda reforça incisivo: “Só sei que não vou aceitar ser líder de ninguém, nem ser estrela. Quero mais é dar um tempo,….” (Entrevista em O Globo, 26 de dezembro de 1975).

PALAVRA DE AMIGOS

“Nunca esperei que as coisas que um poeta diz, e que as pessoas assimilam, precisem ser verdades de alguém. É uma necessidade que o ser humano tem, de que esse real da vida possa se dar um tempo e imaginar as coisas de outra maneira. Essa é a função dos artistas. Eles precisam disso. E o povo também precisa disso. Acho que ele fez isso. (Fausto Nilo. Jornal O POVO 06/05/ 2017 Caderno VIDA &ARTE).

Outro amigo assim se manifestou após a sua morte: “Assim o nosso gênio Belchior conseguiu, como um manto unicrômico estendido feito a terra, toldar com tintas coloridas as suas ideias, alcançando grande parte deste manto sobre o Brasil e América do Sul, por ele tão decantada.
A sua alma atlântica e Latino-americana, gerada e acalentada no calor e sentimentos tropicais, deverá ser mantida em nossas mentes, com veneração ao seu especial cérebro, gerado e nutrido nesse sagrado chão cearense por muito tempo.
Meu parceiro e querido amigo Belchior parece um ser nascido nas Ilhas Fortunadas, onde a natureza não tem necessidade nenhuma da arte, porque a sua própria arte da poesia já lhe completa.
Quero lhes falar livremente do parceiro, como dizia Erasmo de Roterdan: “Que seria esta vida, se é que de vida merece o nome, sem os prazeres da volúpia? Oh! Oh! Vós me aplaudis? Já vejo que não há aqui nenhum insensato que não possua esse sentimento. Sois todos muitos sábios, uma vez que a meu ver, loucura é o mesmo que sabedoria.”(Luis Augusto Castelo Branco Mourão).

“No dizer de Shopenhauer, “… as melhores obras de arte, os mais nobres resultados do gênio, permanecerão eternamente ilegíveis à maioria obtusa da humanidade…”

RESUMO:
Eu e Belchior basicamente vivemos durante nosso trabalho em sociedade, dentro de uma biblioteca. A dele montada na Paraíso Discos (gravadora em éramos sócios e dirigida por mim) e a minha biblioteca na JMT Produções (empresa que tinha em sociedade com minha mulher Teca Melo). A leitura era atividade constante em nossa vida. Acontecia entre um show e outro, Também entre as gravações nos estúdios, porque como produtor de discos das duas empresas, produzi mais de duas centenas de álbuns somando mais de vinte mil horas de gravação (isso contando apenas o tempo de gravação dos discos que produzi, sem falar nas trilhas para publicidade e para cinema e teatro - uma centena delas. Como sei desse volume de horas de produção dos discos? Porque nas fichas de produção, um dos dados registrados é o gasto com pagamentos de estúdios. Esse serviço era contratado, e cobrado por tempo de gravação. Custava muito caro a hora de gravação num bom estúdio. Alugava-se um estúdio para a gravação do álbum de seu artista. Não tínhamos estúdio próprio. É verdade, há a referência da literatura brasileira e universal em toda nossa obra. Especialmente na obra só de autoria do Belchior e outros parceiros que não eu. Na obra do poeta cearense como um todo há essas referências a dezenas de autores clássicos como de Shakespeare, Allan Poe, Erasmo de Roterdan, Álvares de Azevedo, Euclides da Cunha, Orlando Tejo, Augusto dos Anjos, Baudelaire, Willian Blake, Camilo Castelo Branco, Dante Alighieri, Balzac, Willian Sayoan e outros. Belchior era profundo conhecedor dos clássicos da literatura e do pensamento.

COMENTARIO FINAL:
Caetano Veloso publicou em sua “autobiografia” VERDADE TROPICAL: “Quando Rogério, ouvindo-me argumentar entusiasmado, provocou-me dizendo que eu era apenas um apóstolo, e que Gil é que era o profeta, pareceu-me que ele lia meus pensamentos mais recônditos. Eu me sentia responsável por uma grande e bela tarefa, pois Gil e Gal (e também Bethânia, apesar de seu grito de independência) necessitariam sempre de minha orientação, direta ou indireta, mas a verdadeira mensagem poética se daria através do grupo - e a partir de Gil.”
Assim eu sentia no nosso “movimento”. A necessidade de se impor como uma nova mensagem, vinda de mais ao norte do que falaram os baianos, na música popular. Para os músicos de minha geração surgidos da universidade e dos bares, como o Bar do Anísio, o guru era o Augusto Pontes, mas, para mim depois de chegar ao Rio de Janeiro, as mensagens que mais me tocaram eram geradas pelo Belchior. Ele dava a mensagem poética que norteava a minha direção. Da mesma maneira eu sentia, que a minha importância era imensa para a existência do grupo num grande centro como o Rio e São Paulo. Importância não só pela qualidade minha como artista, mas pelo meu senso prático. Eu tinha emprego no Rio de Janeiro. Era do quadro de funcionários da TV Tupy (Direção Musical). Tinha salário. Salvava a base da sobrevivência, podia pagar onde o grupo morava. Em São Paulo, fui ensinar em três faculdades de música: IMSP – Instituto Musical de São Paulo; FAP ART (Faculdade Paulista de Artes) e Instituto MOZARTEUM. Além disso criei empresas de produção e gravação de trilhas sonoras para publicidade e para a produção de eventos, ainda em meados dos anos 1970. De alguma maneira o Belchior, que como poeta me orientava para melhorar a qualidade de meus poemas, sentiu que poderia ter em mim, uma força na compreensão de outras facetas próprias e necessárias à profissão de artista cantor e compositor. Vinha de minhas iniciativas, o sonho da procura por independência da carreira. Independência dos grandes grupos empresariais e de grandes gravadoras. A independência da administração da própria obra. Hoje basicamente toda a obra do Belchior e a minha, estão em editoras das quais somos o titular. O dono. Sonho de poucos…! E isso começou lá atrás…!
Havia entre mim e Belchior uma coisa especial que não se desenvolveu com os outros membros do grupo. Havia um grau de intimidade diferenciada entre a gente. Muitas vezes, ao terminar o expediente no escritório da PARAÍSO DISCOS, o parceiro se dirigia para minha casa. Oportunidade em que ficávamos, eu ele e Teca horas a fio assistindo filmes do Chaplin, rindo a se esborrachar de Bourvil, Louis de Funes, Oliver Hardy e Stan Laurel. O tipo de coisa que não amadureceu a esse ponto com os demais amigos e parceiros…!  Mesmo depois que deixei a empresa (Paraíso Discos) para cuidar da JMT (empresa minha e da Teca), ele continuava a fazer essas visitas para momentos da mais pura intimidade e alegria. Pouco antes do seu desaparecimento, em fins de 2006 e início de 2007, ele me chamou ao escritório da PARAÍSO DISCOS, eu fui. Conversamos e combinamos vir ao meu escritório logo em seguida. Ele comentou comigo que o proprietário do imóvel onde funciona a gravadora lhe pediu o imóvel justificando a venda do mesmo onde seria construído um prédio. Isso queria dizer que a casa seria demolida. Ele precisava sair de lá. De pronto ofereci o galpão enorme que há atrás de onde era meu escritório naquela ocasião, para que ele colocasse lá o material da PARAÍSO e sua biblioteca. Ele olhou tudo no ambiente do galpão fazendo anotações e enquanto fazia isso traçou planos incríveis de ajustar ali um mezanino, sua biblioteca e tornar aquele pedaço no seu “atelier”. Ficamos nessa conversa até escurecer. Eu morava do lado. Fomos pra casa à noitinha e repetimos mais uma vez aquele ritual de conversar e ver filmes por horas. Eu ele e a Teca a rir de tudo, de dezenas de piadas tantas vezes repetidas, e de todas as imagens dos filmes que escolhíamos ver. Uma delícia!
Foi a última vez que o vi. Mas, ele me ligou em três oportunidades depois do seu recolhimento. Ligações durante o ano de 2007.


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Entrevista a Cláudia Nocchi | 1996 www.youtube.com/watch?v=iANWrFps82c


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Organização a cargo de Floriano Martins © 2017 ARC Edições
JORGE MELLO (1948). Cantor, compositor e produtor
Artista convidado | Belchior (Brasil, 1946-2017)
Fotografia © Antonio Lúcio
Caricatura © Dodô Vieira
Imagens © Acervo Resto do Mundo / Acervo particular Jorge Mello
Agradecimentos especiais a Graco Braz Peixoto, Jorge Mello e Josy Teixeira
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:

1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO, I
3 O RIO DA MEMÓRIA, I
4 VANGUARDAS NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO EDITORIAL BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS DO SURREALISMO, II
8 O RIO DA MEMÓRIA, II
9 ACAMPAMENTO MUSICAL

A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

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