1. O CASO BELCHIOR E ELIS: A RELAÇÃO SIMBIÓTICA ENTRE
O COMPOSITOR E A INTÉRPRETE | Em 17 de março de
2015, aquela que é considerada a maior cantora do Brasil, Elis Regina, teria completado
70 anos de vida. Em homenagem à data e em memória à carreira da artista, falecida
em 1982, ocorreu uma série de lançamentos. Dentre eles, a biografia “Elis Regina – Nada será como antes”, assinada por Julio Maria; o primeiro site oficial, que
reúne informações biográficas e os trabalhos feitos pela cantora; e um longa-metragem
com direção de Hugo Prata, que aborda a segunda metade da vida da artista, a partir
da chegada ao Rio de Janeiro. Para comemorar com música a efeméride, dois shows
em São Paulo reuniram parceiros da cantora, como Fagner, João Bosco, Gilberto Gil,
Ivan Lins e Renato Teixeira.
Ao ver essas atividades em torno da
comemoração dos 70 anos de nascimento de Elis, eu não pude deixar de pensar justamente
na relação entre a intérprete e os compositores lançados e gravados por ela. É sabido
que, na história da música brasileira, a própria cantora saía em busca dos novos
e desconhecidos compositores e “garimpava” o melhor de suas produções, como já relataram
muitos desses “escolhidos”.
Agora, com a comemoração dos 70 anos
de Belchior, penso no encontro entre o artista cearense e a cantora Elis.
Segundo o próprio compositor, depois
de ter gravado em 1972 a canção “Mucuripe”, foi Elis quem o convidou para ir à casa
dela, ocasião em que Belchior a apresentou “simplesmente” a totalidade de sua obra
até então. Com o ouvido especial que tinha, naquela noite dos primeiros anos da
década de 70, Elis escolheu para gravar as canções “Como nossos pais” e “Velha roupa
colorida”, que compuseram o repertório do show e do disco “Falso brilhante”, de
1975 e 1976, respectivamente. No contexto do imenso sucesso obtido por “Falso brilhante”,
essas duas canções também foram gravadas por Belchior exatamente no ano de 1976,
naquele que se tornaria a obra-prima de Belchior, tanto junto à crítica, quanto
no que se refere à difusão junto ao público, o disco “Alucinação”.
Essa simultaneidade de ações é bastante
significativa, pois ao mesmo tempo em que o nome Belchior se apresentava na música
brasileira como “compositor” de Elis Regina, ele também instituía de forma paralela
sua carreira de cantor e de compositor, iniciada em disco dois anos antes com o
LP “A palo seco”, que não teve grande repercussão com o público, talvez por seu
viés extremamente literário e concretista.
É óbvio que Belchior é e será extremamente
grato à Elis pela difusão que a cantora deu à sua obra. Paradoxalmente, a força
de Elis na interpretação de “Como nossos pais” foi tamanha, que deu origem ao seguinte
fato: Elis impregnou de tal forma a canção de Belchior com uma marca autoral dela,
como intérprete, que a autoria do compositor Belchior nessa canção ficou de certa
forma escondida se considerarmos o conhecimento pelo grande público da música brasileira.
Na área musical, o que se constata,
no que diz respeito à relação entre a figura do intérprete e a do compositor, é
que desde o instante em que a canção é apresentada ao público, independentemente
do “fracasso” ou do “sucesso” que a canção terá ao longo dos anos, é principalmente
o nome do cantor que ficará e restará associado àquela música, por mais que o texto
verbal e musical “canção” seja uma forma que para existir necessite do trabalho
de muitos agentes (compositor, intérprete, músicos etc.). E é exatamente por isso
que uma grande parte do público ouvinte acredita que a canção “Como nossos pais”
é “a canção da Elis Regina”, sem se lembrar do nome do verdadeiro autor da canção,
Belchior. Se a Internet simboliza o apagamento da autoria de modo geral, o fenômeno
também atinge a música brasileira. Qualquer pesquisa rápida na rede mostrará, equivocadamente
(?), que “Como nossos pais” é uma música de Elis Regina.
Mas para além dessa ocultação da autoria,
bastante comum na música brasileira, com relação à parceria entre o compositor Belchior
e a intérprete Elis, coloco as seguintes questões:
1) Até que ponto a cantora consagrada
deu voz ao desconhecido compositor?
2) Até que ponto o desconhecido compositor
alimentou a voz da cantora consagrada?
A interação entre os papéis de Elis
e de Belchior só pode ser entendida por meio de uma simbiose na qual e pela qual
essas duas instâncias (intérprete e compositor) vivem juntas e imbricadas e se beneficiam
mutuamente. Nesse sentido, o reconhecimento de Belchior à Elis é plenamente compreensível,
pois de fato a dicção singular da cantora deu a Belchior “a oportunidade e o direito
de se manifestar, ou de continuar se manifestando, enquanto autor” na música brasileira.
Mas por outro lado, Belchior também
deu à Elis “a chance de aquela cantora, e nenhuma outra, poder cantar e mostrar
primeiro um universo igualmente singular”, qual seja, um mundo até então novo na
música do País, que só pode ser apreendido pelo conjunto da obra de Belchior, autor
de mais de 300 composições lançadas em 11 discos autorais e inúmeros outros trabalhos.
E Elis Regina sabia disso. Ao escolher “Como nossos pais” (e também “Velha roupa
colorida” e “Mucuripe”), Elis percebeu toda a força que aquela canção possuía, potência
essa que a interpretação da cantora só veio a intensificar, gerando a partir daí
uma das maiores “arquicanções” da música brasileira de todos os tempos.
Assim, não foi novidade nenhuma a
divulgação pelo Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição) em 2015
de um ranking mostrando as canções interpretadas por Elis mais tocadas nos últimos
anos, no qual “Como nossos pais” aparece como a primeira da lista.
Elis Regina soube disso desde que
ouviu a canção pela primeira vez. Belchior sabia disso desde que a compôs.
2. SE VOCÊ VIER ME PERGUNTAR POR ONDE ANDA “O BELCHIOR”… “– Olá, professora,
alguma notícia do Belchior?”. Essa é a pergunta que ouço desde a divulgação pela
grande mídia do “desaparecimento” de Belchior. Em 23 de agosto de 2009, o Programa
semanal “Fantástico” contou a todo o Brasil o que as pessoas mais próximas a Belchior
já sabiam havia alguns anos. “Belchior tinha sumido!”.
Depois da matéria da Globo, procuram-me
frequentemente, como pesquisadora do cancioneiro do artista, querendo saber por
onde anda Belchior. São “tête-à-têtes”, telefonemas e e-mails de diferentes pessoas
de várias partes do Brasil e até de outros países: jornalistas e radialistas dos
meios mais prestigiados aos menos difundidos, fãs, curiosos e interessados em geral
pela obra de Belchior.
Considerando o seu afastamento social,
é plenamente compreensível esse reiterado interesse sobre o paradeiro ou sobre o
percurso atual de um dos artistas mais importantes da música brasileira.
Pensando em como responder à indagação
de “onde está Belchior”, reflito aqui sobre “quem é Belchior”, entendendo a “identidade”
do cantor e compositor cearense numa acepção bem geral encontrada em Houaiss, como
o “conjunto de características que distinguem uma pessoa e por meio das quais é
possível individualizá-la”.
A compreensão daquilo que intitulamos
“o Belchior” pode ser visualizada pela relação entre três papéis (segundo nos ensina
o teórico francês Dominique Maingueneau em “O discurso literário” de 2006, livro
que descreve as diversas instâncias constituintes da figura do autor).
O primeiro deles refere-se ao “compositor”
Belchior enquanto sujeito que definiu uma trajetória profissional na música brasileira;
aquele que compôs uma das canções mais emblemáticas da MPB, como é o caso de “Como
nossos pais”;
O segundo papel refere-se aos diversos
“eus personagens” presentes no interior dos textos das canções de Belchior; todos
aqueles que representam por exemplo a trajetória de milhares de nordestinos que
deixaram seu lugar natal em busca de melhores condições na cidade grande, o que
encontramos em “Fotografia 3x4” e “Tudo outra vez”;
O último refere-se à “pessoa” Belchior,
enquanto ser dotado de um estado civil e de uma vida privada, ou seja, aquele jovem
que abandonou a faculdade de Medicina na Universidade Federal do Ceará para seguir
a carreira de músico no eixo Rio-São Paulo.
Esses 3 elementos que formam “o Belchior”
não podem ser isolados, pois cada um deles está atravessado pelos outros. Isso implica
que o ato de compor uma canção só é possível porque um dado indivíduo (“a pessoa
Belchior”) se posiciona como fazedor de canções (“o compositor Belchior”) e para
tanto se vale da vida de “seus personagens”.
A partir dessa classificação, pode-se
considerar então que tanto “o compositor Belchior”, quanto os seus “eus personagens”
permanecem presentes cada vez que um de nós canta ou ouve qualquer uma das mais
de 100 músicas gravadas nos 11 discos de carreira de Belchior, de “A palo seco”
a “Baihuno”. Afinal, será impossível fazer desaparecer da história da música brasileira
o percurso fundado pelo artista que ficou conhecido no Brasil inteiro como um dos
principais integrantes do Pessoal do Ceará, junto com Fagner e Ednardo, bem como
não há como extinguir de nossas vidas sujeitos que tanto nos identificam, como “o
rapaz latino-americano sem dinheiro no banco” ou “aquele que tem medo de avião”.
Se Belchior continua presente enquanto
compositor e em cada um dos personagens criados em suas músicas, nesses dois sentidos
“o Belchior” nunca desapareceu. No entanto, nós continuamos querendo saber por onde
anda aquele cantor de vasto bigode, que cantava de forma fanhosa e que dançava nos
palcos; onde está aquele que tinha a mesma energia ao cantar para poucos ouvintes
ou para milhares.
Isso significa que, na constituição
do “todo Belchior”, falta um forte elemento, que se refere ao homem real, de carne
e osso, à pessoa de Belchior, ao Bel: aquele que descansava em uma pousada do Uruguai
e que caminhava pelas ruas de Porto Alegre; aquele que ria gostosamente e que falava
apaixonadamente; aquele que contava piadas, que falava várias línguas e que sabia
tudo de literatura universal; aquele que adorava um bom vinho e que não dispensava
uma rúcula com tomate seco; aquele que era viciado em quadros e dominava todos os
assuntos; aquele que…
É desse Belchior também que muitos
sentem falta. E é exatamente a ausência desse Belchior que faz com que seus admiradores
(os íntimos e os mais longínquos) sintam um enorme vazio, mesmo que suas canções
possam estar e continuar sempre presentes.
Por isso, ecoando o sentimento de
todos aqueles que me perguntam regularmente se tenho novidades sobre “o Belchior”
e que gritam em uníssono “Volta, Bel!”, eu digo:
– Sim, Belchior, nós nos importamos!
Todos estão esperando “o fim do termo saudade como um charme brasileiro de alguém
sozinho a cismar”.
Enquanto Belchior silencia, cada um
dos seus admiradores e amigos está cantando: “Agora eu quero tudo. Tudo outra vez…”
3. “NOTÍCIA DE TERRA
CIVILIZADA” – UMA CARTA | Oi, Belchior, hoje, 26 de outubro de 2016, dia do teu
aniversário de 70 anos, te escrevo para te parabenizar. Como vai a vida? Espero
que estejas bem!
Já que tu andas um pouco distante,
aproveito para te contar as novidades.
Nossa, em Fortaleza muita coisa tem
acontecido desde aquele show da Concha Acústica e da exposição do Aldemir Martins
no Museu da UFC. Foram lindos demais aqueles eventos, lembras? E o pessoal do Ceará
está com muitas saudades. Para amenizar a falta que tu fazes por lá, a nova (e a
anterior) geração da música cearense tem te homenageado muito, como é o caso de
Jord Guedes, Lidia Maria, da Banda Renegados e de tantos outros artistas, que têm
feito trabalhos cantando tuas composições. Os ídolos dessa turma sempre serão os
mesmos: tu, Fagner, Ednardo, Rodger, Téti… Tu terias adorado o tributo a ti, Fagner
e Ednardo que a Orquestra Filarmônica do Ceará realizou em 6 de outubro do ano passado
no Theatro José de Alencar, no Projeto “Grandes Clássicos da MPB”.
Já começando a falar do lado profissional,
depois de meu mestrado na UFC, que tu já conheces, resolvi continuar a pesquisa
sobre tua obra, com um projeto mais denso. E seguindo o percurso que tu mesmo fizeste,
decidi partir do Ceará para São Paulo, dessa vez num pau-de-arara moderno e sem
descida forçada em Salvador, como aconteceu contigo (risos). Mas nada de conhaque
no avião. E foi assim que, “pelas ruas de São Paulo, por entre os carros”, andei
e passeei, enquanto escrevia a tese do doutorado na Universidade de São Paulo, cuja
proposta foi analisar aquelas polêmicas entre a tua obra, Chico, Gil, Caetano, Roberto,
Raul etc. Certamente tu lembras bem a agitação que causaste naqueles primeiros anos
entre Rio e Sampa, não é mesmo? Quando tu dizias que estava “chegando com teu trabalho,
dialeticamente”.
A tese ficou imensa, Bel. 690 páginas,
que, apesar de enorme, não chega nem perto da complexidade do teu cancioneiro. Queria
te contar que, na defesa do doutorado, a obra “do Belchior” (a tua) foi destacada
pelos professores da USP, a maior universidade do Brasil, como uma das mais importantes
na MPB. (Lembrei aquele gracejo que tu mesmo fazias, de que é um dos maiores nomes
da MPB, pois, claro, Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernnandes – risos).
Eles consideraram o trabalho como de grande alcance dentro das Ciências Humanas,
unindo pesquisas de domínio verbal e não verbal e indicaram para a publicação. (Espero
que tu apareças para o lançamento do livro!). E fiz questão de dizer, na defesa,
te parafraseando, que a tese era a de uma nordestina na cidade grande. Ela está
dedicada a ti, claro.
Falando da “terra da garoa”, o pessoal
de lá mandou lembranças. Tu soubeste que a Banda Radar reuniu-se no dia 20 de outubro
de 2013, no Centro Cultural São Paulo, para o concerto “Banda Radar canta Belchior”?
Tava todo mundo lá, Bel. O Sérgio Zurawski, o João Mourão, o Monsieur Parron e o
Roger Carrer. Foi muito bom encontrar os teus amigos, o Ednardo Nunes e o Jorge
Mello e muitos outros. E também o jornalista Silvio Atanes, teu grande admirador.
Por falar em fã, o poeta Heldemarcio
Ferreira também sempre pergunta por ti. Ah, a Mona Gadelha e o Tavito, que encontrei
dias depois no Conjunto Nacional, também mandaram um abração pra ti. E foi muito
interessante ver e ouvir tuas canções modernamente tocadas pelos DJs da festa “Calefação
Tropicaos”, no dia 18 de abril de 2014. Eles fizeram uma brincadeira e deram descontos
para o público que fosse de bigode, “nível Belchior” (risos). Teve ainda o espetáculo
“Achamos Belchior”, que aconteceu em São Paulo em maio de 2010, comandado por João
Cabral e Banda.
Já ia esquecendo que mais recentemente
teve o show “Por onde anda Belchior?”, realizado em 23 de janeiro de 2014 em Recife
por Samuel Luna e a Banda caruaruense Nove Luas. Como vês, Bel, todo o Brasil, de
uma ponta a outra, quer se aproximar de ti, cantando tua obra. Foi por isso que
fizeram o CD “Belchior Blues”, em 2012, de releituras das tuas canções. Quando ouvi
o disco, fiquei pensando que tu dirias que “um tango argentino é tão bom quanto
o blues”. Ah, em 2013, a querida Amelinha abriu o show “Janelas do Brasil”, no Sesc
Pinheiros, com a música “Galos, noites e quintais”. E ao final, ela fez um pedido
de “Volta, Bel”.
E ainda falando dos artistas que cantam
tuas músicas, que bonita a interpretação da Ana Carolina para “Coração selvagem”!
Mais uma mulher na tua vida e obra, somando-se à Elis Regina, Vanusa, Vânia Bastos,
Margareth Menezes, Lúcia Menezes, Márcia Castro, Zélia Duncan, Maria Rita e Sandy.
Como tu mesmo e Newton sabem, “o que
pesa no Norte, cai no Sul, grande cidade…”. E foi assim que, de Sampa, eu fui morar
no Pampa. De lá, o jornalista Juarez Fonseca também sente saudades. É verdade que
tu estás morando em POA? Tu deveria ter assistido o show que os Latinoamericanos
fizeram no Opinião em junho passado cantando tuas canções. Sim, no mesmo palco que
nosso Dylan tocou em 1998.
Como tu não tem aparecido muito, ainda
bem que os gaúchos podem sempre te escutar na FM Cultura de Porto Alegre, rádio
da qual sou apresentadora agora. Lembras daqueles dias de Rádio Universitária, em
Fortaleza? Tempo bom, né? O Nelson Augusto continua com o belo trabalho de divulgação
da boa música aos cearenses.
Falando dos teus 70 anos, estamos
fazendo juntos este ano na Web Rádio Nelsons a análise de todos os teus discos autorais,
de “A palo seco” a “Baihuno”. Tem programa todo dia 26, se puderes ouvir!
Bel, tu sabias que estive no Uruguai?
Atravessei a ponte de Jaguarão. Uma emoção, não é? Tu também passaste por lá ou
foste pelo Chuí? Em Montevidéu, ouvi muito o Carrero, o Larbanois, a Laura Canoura
e um monte de artistas maravilhosos. Entendi porque tu gostas tanto daquela terra,
de gente querida, boa comida e vinhos fantásticos. O poeta Elder Silva também perguntou
por ti. E me mostrou uma entrevista tua memorável, dada a um amigo de vocês em comum.
Tu falas muito bem espanhol, ein!
Tenho de te contar ainda outra novidade
boa, Bel: “Que há tempo, muito tempo, que eu estou longe de casa”. Nos últimos anos,
tenho passado temporadas de estudos e de trabalho na França. É, na França de “Tudo
outra vez”!! Há alguns anos vim para Paris para fazer uma parte do doutorado, na
Sorbonne e na Paris XII. E atualmente estou fazendo o pós-doutorado, de novo na
Cidade Luz. Acreditas que vi os teus ídolos McCartney e Dylan pessoalmente? Depois
te conto os detalhes. Agorinha mesmo, te escrevo a alguns passos da casa de George
Brassens. Estou morando no XV arrondissement de Paris, bairro cheio de memórias
desse grande cantautor francês, que viveu no número 42 da Rue Santos Dumont (sim,
o nosso conterrâneo), e que tem tantas semelhanças contigo.
Sobre meu trabalho aqui, gostaria
que soubesses que a obra “do Belchior”, junto com a dos maiores escritores e artistas
do mundo e de todos os tempos, agora é estudada na Europa, nas universidades, e
apresentada em instituições culturais. Aqui, uso “minha fala nordestina para falar
o francês”. E quero que saibas que tem muitos admiradores, tanto na Terra da Luz,
como na Cidade Luz.
Por enquanto é isso, Bel. Sei que,
na era do twitter, a carta ficou um pouco grande, mas é que depois de tanto tempo,
né…
Aproveita teu aniversário! Muita saúde!
Não vejo a hora de ler a tradução da “Divina Comédia”!
E vê se não somes!
Dessas “ilhas cheias de distâncias”,
saudades!
P.S.: Recebi no ano passado um e-mail
de um israelense falando que era muito teu fã. Fiquei pensando como a língua portuguesa
também ultrapassa fronteiras. Para a carta não ficar maior, te contarei da próxima
vez.
4. BELCHIOR, QUE COMPLETA 70 ANOS,
FEZ DE CANÇÕES UMA 'ARTE DA FUGA' | Em agosto
de 2009, a notícia na grande mídia do “desaparecimento” de Belchior pegou muita gente de surpresa. Jornalistas e radialistas,
fãs, curiosos e interessados pela obra do cantor e compositor cearense não falavam
em outra coisa.
Apesar do
burburinho provocado pelas possíveis motivações de seu afastamento, o próprio Belchior,
que desde 2006 cortara laços com empresários, produtores e a família, declarou que
tinha se isolado em uma pousada de um povoado remoto no Uruguai para finalizar o
trabalho de tradução para o português da “Divina Comédia”, de Dante Alighieri. Desde
então, não se tem notícias sobre as atividades do músico, que, nesta quarta (26),
completa 70 anos.
Se Belchior, tal qual Rimbaud, transformará seu autoexílio
em ato de criação, ainda não se sabe. Mas é fato que o tema da evasão da sociedade
está fortemente presente em diversos pontos de sua obra, do primeiro ao último disco
autoral, já indicando ao público um percurso de fuga que ele próprio pudesse vir
a seguir, considerando que o elemento autobiográfico perpassa a totalidade do cancioneiro
do autor de “Apenas um Rapaz Latino-americano”.
Além de retratar grupos marginalizados pela sociedade
(pretos, pobres, estudantes, índios, nordestinos, retirantes, prostitutas, lista
na qual ele faz questão de incluir os artistas), Belchior acumula em suas letras
referências ao desejo das pessoas de serem ativamente “gauches”, de ficarem à margem
das práticas sociais.
Na música “Passeio”, do disco de estreia, “Mote e Glosa”
(1974), o sujeito que está rodeado pelos prédios de São Paulo afirma querer fugir
dali num disco voador. Em “Todos os Sentidos” (1978), a canção “Até Amanhã” deixa
bem claro que um reencontro pode não acontecer porque talvez não haja o dia seguinte.
Em “Seixo Rolado”, de “Objeto Direto” (1980), o próprio
título converge com o conteúdo da música que descreve um indivíduo que “tudo o que
tem é seu corpo” e que cai na estrada feito pedra rolante.
A ideia de “ir embora sorrindo, sem ligar pra nada”
se expressava já em 1982, na canção “E que Tudo Mais Vá para o Céu”, do álbum “Paraíso”
(1982), como se antecipasse a atitude do próprio compositor, que botou o pé no mundo,
deixando documentos e objetos pessoais para trás.
Se uma desistência repentina dos limites sociais estabelecidos
poderia ser qualificada como irresponsável na idade madura, não seria diferente
em se tratando de um jovem aventureiro que abandona a escola.
É o que narra na letra de “Rock-romance de um Robô Goliardo”
(de “Cenas do Próximo Capítulo”, de 1984): “E não me chamem irresponsável/Para que,
levar a vida, assim tão a sério?/ Afinal, a vida é, mesmo uma aventura da qual não/
sairemos vivos”. Como o personagem da canção, o jovem Belchior tinha largado a faculdade
de Medicina no quarto ano.
Também os dissabores da marginalização, tematizados
de forma detalhada e irônica em “Jornal Blues (Canção Leve de Escárnio e Maldizer)”,
de “Melodrama” (1987), coincidem com as próprias dificuldades que ele enfrentou
ao morar na rua, quando chegou ao Rio de Janeiro, no início dos anos 1970: “Não,
não quero contar vantagem, mas já passei fome com muita elegância”.
Nessa correlação entre a obra do autor e a vida da pessoa
Belchior, duas músicas mostram-se particularmente reveladoras do distanciamento
do artista.
Em “Arte Final”, o personagem da canção expressa seu
desejo de não ser perturbado: Desculpe qualquer coisa, passe outro dia,/ Agora eu
estou por fora, volto logo,/ Não perturbe, pra vocês eu não estou.
Seguindo esse percurso de retirada, “Até Mais Ver” é
a canção-despedida de Belchior: “Qualquer distância entre nós, tornada em nada,/
só assinala um novo encontro pra depois”.
Não por acaso, essas declarações encerram os dois últimos
trabalhos discográficos de Belchior. Em “Elogio da Loucura” (1988) e “Baihuno” (1993)
o artista conclui a sua obra e se despede do público, comprovando a frase do poeta
e autor de canções Pierre Jean de Béranger (1780-1857): “Minhas canções sou eu”.
Ensaio | 1992 www.youtube.com/watch?v=_cMzSWIuw8U
Rádio Nacional | 1979
www.youtube.com/watch?v=z36_2900C-8
Organização a cargo de Floriano Martins © 2017 ARC Edições
Josy Teixeira é professora de linguística, radialista e pesquisadora
da USP, com mestrado e doutorado sobre a obra de Belchior.
Artista convidado | Belchior (Brasil, 1946-2017)
Caricatura © Genildo Ronchi
Imagens © Acervo Resto do Mundo / Acervo particular
Jorge Mello
Agradecimentos especiais a Graco Braz Peixoto, Jorge
Mello e Josy Teixeira
Esta edição integra o projeto de séries especiais
da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:
1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO, I
3 O RIO DA MEMÓRIA, I
4 VANGUARDAS NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO EDITORIAL BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS DO SURREALISMO, II
8 O RIO DA MEMÓRIA, II
9 ACAMPAMENTO MUSICAL
A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira
fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada
no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo
de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial
apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob
a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.
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