segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

HANS ARP | Sophie Taeuber-Arp


Dentre a variada  multidão de seres que conheci ao longo de minha existência, Sophie Taeuber é a personagem mais graciosa e mais serena. Vive como um personagem dos livros de antigamente, dedicada ao trabalho e dedicada ao sonho. A realidade do sonho não lança sombras sobre ela na realidade dos dias. As duas realidades lhe são perfeitamente familiares. Quer se ocupe de jardinagem, da pintura, ou dos preparativos para uma viagem, ela se debruça sobre qualquer tarefa com zelo sorridente e não descansa até que a tenha cumprido com perfeição. Quantas vezes a observei debruçada sobre a mesa, preparando com cuidado as cores, deitando com delicadeza o pincel na paleta, passando-o com atenção sobre a tela, traçando religiosamente as linhas. Às vezes ergue os olhos e sorri com orgulho encantador. Assim o dia como a noite lhe estão plenos de maravilhas. Ela se regozija do chegar da noite e do sonhar. O sonho sobrevive ao despertar e, durante o desjejum, ela fala de mundos radiantes, de formas sonoras, de histórias maravilhosas onde rosas e sombras se entrecruzam, de guarda-sóis gigantescos e extravagantes, de espíritos e voos abençoados e de torrentes infinitas. Caminhar com ela era um prazer indescritível. Ela saudava o mundo com alegria pacata. Visitava suas flores a cada manhã como que visitasse amigos. Falava ingenuamente com criaturas grandes e pequenas. Imitava o som das cigarras, franzindo o nariz com dedicação divertida. Cuidava de trazer nas mãos cerradas as mariposas que se perdiam em torno da lâmpada. Não sei que misteriosas informações eram trocadas entre ela e as borboletas, que ansiavam por encontrá-la. Bastava ela estender os braços para que neles pousassem. Pousavam sobre seu chapéu, seu roupão, e sobre ela ficavam, em repouso, por quanto tempo durassem suas longas caminhadas. Com calma e precisão, lhes fazia sinais; conforme ela ordenasse, a precediam ou seguiam. Ela brincava de fugir, rindo, daqueles serezinhos. Não há como esquecer o tilintar de seu riso.
Conheci Sophie Taeuber em Zurique em 1915. Já naquela época, ela sabia como conferir forma direta e sensível á sua realidade interior. A esta arte chamamos “arte abstrata”. Posteriormente a chamamos “arte concreta”, porque nada mais concreto do que a realidade psíquica que exprime. Assim como a música, essa arte é uma realidade interior e tangível. Nas páginas de memórias publicadas no periódico parisiense XXe Siécle, escrevi: “Em 1915, Sophie Taeuber e eu realizamos as primeiras obras retiradas das mais simples formas em pintura, em bordado e em colagem. São, provavelmente, as primeiras manifestações dessa arte.  Essas telas são realidades em si, sem significação e nem intenção cerebral. Rejeitamos tudo que fosse cópia ou descrição para permitir que o elementar e o espontâneo reagissem em plena liberdade.”
Já em 1915 Sophie Taeuber divide a superfície de suas aquarelas em quadrados e retângulos que sobrepõe horizontal ou perpendicularmente. Constrói como que uma obra de alvenaria. As cores são luminosas, do amarelo mais
cru ao vermelho ou azul mais profundo. Em algumas dessas composições, ela introduz figuras maciças e atarracadas que, mais tarde, irá fabricar e madeira. Essas figuras podiam desabrochar em plantas, em bonecas, em vasos que, por sua vez, transformar-se-iam em máscaras refletindo o temor da solidão e da morte. Mas o vigor da juventude, com sua riqueza e sua claridade, dissipa essas sombras.
As aquarelas da fase seguinte (até 1920) são um tecido multicolor formado de incontáveis manchas quadradas e retangulares. Luz e sombra florescem sem emendas, sem o ruído do contraste que perturbaria a harmonia. Sophie Taeuber vê-se então penetrada pela caducidade, pela fragilidade, pela total insuficiência das coisas terrenas. Rejeita a vaidade do ilusionismo artístico e enxerga a perfeição da humildade.
Até 1930, ela adota um modo de composição com retângulos e quadrados sobre fundo monocromático, preto e branco. Às vezes introduz triângulos e círculos. Ela frequentemente une essas figuras entre si através de linhas retas e as anima, de suas profundezas brancas ou negras, de movimento de ascensão, de queda, de oscilação; ou as mantém imóveis. Sua paleta não conhece senão o azul, o vermelho, o amarelo, o verde. Ela concebe seus trabalhos em maiores dimensões e os executa em óleo.
Até 1933, ela elimina as retas, os triângulos, os retângulos, os quadrados, e não utiliza que não o círculo. A composição procede sempre de acorde com uma organização fundamental rígida que, depois de muito trabalho, se resume em dois ou três pontos. Desses pontos irradia toda a força da imagem. Conferem-lhe tensão e a preenchem de vida e alma. Algumas obras dessa época contêm quatro ou cinco composições diferentes que se entrelaçam. Também essas telas são elegantemente compostas sobre um fundo monocromático preto ou branco. Ela pinta o tabuleiro de damas da noite. Esferas brancas, vermelhas, verdes, servem como piões da noite. A noite brinca com o visível e o invisível. O invisível vence o visível.
DE 1936 até 1938, ela executa uma série de relevos em madeira. Alguns deles agrupam, de maneira muito simples e sobre um fundo retangular, formas geométricas em alto ou baixo relevo. Esses relevos são pontos em branco, preto,
vermelho, azul. Os relevos que chamamos de “conchas”, formas brancas vibrantes sobre fundo retangular, atingem a perfeição da beleza. É com trabalhos assim que a palavra beleza retorna à vida. O último desses relevos foi composto na época em que, para ilustrar minha coletânea poética Coquillages et parasols, Sophie Taeuber desenhou uma série de vasos, de folhas, de conchas em metamorfose: é de uma tão rara perfeição, de tal clareza interior, que não posso compará-lo senão  beleza de uma ânfora grega. A maior parte dos relevos dessa mesma época se organiza sobre um fundo circular. Terra e céu se entrelaçam como as ondas. São folhas em verde escuro, um céu de azul profundo. São a solenidade de uma asa, o esplendor de uma joia faiscante.
Nos anos de 1932, 1938 e 1939, Sophie Taeuber executou em óleo quatro grandes composições em que aplicou às aquarelas de 1916 o sistema de divisão geométrica da superfície. Ela a divide em quatro, seis ou outo planos retangulares ou quadrados de igual tamanho, por vezes unindo dois ou mais deles em um só plano que, por sua vez, se organiza em planos menores. Formam-se profundidades, fazendo do todo uma realidade espacial plana. Essas superfícies não mais se destacam do fundo, como se dava nas telas de 1933: são espaços bidimensionais, ou abrem-se em profundezas planas;  superfícies descansam sobre outras superfícies, apoiam-se nelas, como se avançassem em direção ao espectador, o engolissem, flutuassem como bandeiras em seus mastros. São espaços bidimensionais em que linhas cortam a superfície, delimitam zonas de claro e escuro, compartilham a imagem. Ela chama essas telas de “Pinturas no Espaço”. Essas realidades espaciais, esses planos, são criados pelo jogo das cores e das superfícies, sem intervenção de perspectiva ou ilusão de volume. A imagem permanece eternamente plana, não se insurge jamais contra a lei que dita a natureza em si das coisas: a visão bidimensional de toda imagem.
Sophie Taeuber passou comigo os dois últimos anos de sua vida no Sul da França, em Grasse. Era apaixonada pela região. Era seu paraíso terrestre. Ela brilhava de felicidade durante nossas caminhadas. Empurrava-me incessantemente em novas caminhadas. Seus olhos nunca se desviavam do verde prateado dos bosques de oliveiras, das silhuetas meditabundas dos pastores em meio a seus rebanhos, dos vilarejos erguendo-se das montanhas, do escudo cintilante, ofuscante, do mar. Vivíamos entre uma fonte, um cemitério, um eco e um sino. Em nosso jardim cresciam uma palmeira e oliveiras. A folhagem da palmeira fazia barulho quando chovia. As oliveiras estavam constantemente tomadas de um frêmito quase imperceptível; cada dia era mais rico em luz e alegria, e Sophie rivalizava com cada um deles.
Sua luz interior atingia todos que as encontraram naqueles tempos. Ela era como uma flor cujo declínio se aproximava. A essência luminosa do seu ser trazia proteção e conforto a quem sofresse. Ela extraía de sua pureza a coragem para suportar confiantemente a imensa tristeza da França. Espalhava em suas telas uma admirável claridade. Do fundo da mais intensa dor, nasciam esferas floridas. Profundezas e alturas, raios ascendentes e descendentes em uma vasta roda colorida. Perdida e inebriada, ela traçava linhas, longas curvas, espirais, círculos, trilhas que serpenteavam através da realidade e do sonho. Pintou seus derradeiros círculos cantores. Na torre onde ficam seus aposentos, ela trabalha com ardor. Seu delicado perfil assentia, subindo e descendo com o mar distante. Na véspera de nossa partida de Grasse ela organizou meticulosamente seus instrumentos e apoiou cuidadosamente contra a parede suas telas para que secassem, satisfeita como depois de um belo dia.
Estava sempre pronta a receber calmamente tanto a luz quanto a escuridão. Foi serena, luminosa, verdadeira, precisa, clara, incorruptível. Ela abriu esta vida à dos céus de luz.


*****

HANS ARP (1886-1966). Artista plástico, poeta e ensaísta, alemão naturalizado francês. Foi co-fundador do movimento Dadá e um dos grandes artistas do Surrealismo. Ensaio traduzido por Allan Vidigal. Página ilustrada com obras de Sophie Taeuber-Arp.

*****

Agulha Revista de Cultura
Número 105 | Dezembro de 2017
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
os artigos assinados não refletem necessariamente o pensamento da revista
os editores não se responsabilizam pela devolução de material não solicitado
todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
CNPJ 02.081.443/0001-80







Nenhum comentário:

Postar um comentário