Eu já te
amava pelas fotografias.
Pelo teu
ar triste e decadente dos vencidos,
Pelo teu
olhar vago e incerto
Como o
dos que não pararam no riso e na alegria.
Te amava
por todos os teus complexos de derrota,
Pelo teu
jeito contrastando com a glória dos atletas
E até pela
indecisão dos teus gestos sem pressa.
Te falei
um dia fora da fotografia
Te amei
com a mesma ternura
Que há
num carinho rodeado de silêncio
E não sentiste
quantas vezes
Minhas
mãos usaram meu pensamento,
Afagando
teus cabelos num êxtase imenso.
E assim
te amo, vendo em tua forma e teu olhar
Toda uma
existência trabalhada pela força e pela angústia
Que a verdade
da vida sempre pede
E que interminavelmente
tens que dar!...
ESTIGMA
Não receio
que partas para longe,
Que faças
por fugir, por te livrares
Da força
da minha voz
E da compreensão
do meu olhar.
Não temo
que os mares te levem
No bojo
dos transatlânticos
Nem tampouco
me amedronta
Que em
possantes aviões
No céu
e na terra,
Cortes
espaços sem conta
Em todos
os seres me encontrarás.
Serena
ficarei se disseres
Que na
certa me olvidarás
No ventre
da mata virgem,
Nas areias
dos desertos
Ou no amor
de outras mulheres que terás.
Não importa.
Nada temo
e desejo mesmo que o faças
Para que
saibas o quanto estou em teus sentidos
E que a
minha forma, o meu espírito
Jamais
da tua existência passa.
Se fugires
pelos mares
Tu me veras
na espuma leve da onda,
Me sentiras
no colorido de um peixe
E a minha
voz escutaras dentro de uma concha.
Se partires
pelos ares,
Certamente
na brancura de uma nuvem
Tu sentirás
a maciez e a alvura
Das minhas
carnes.
Se fores
para a floresta
Hás de
me ver
Na árvore
mais florida e harmoniosa
Atravessando
areias cálidas do deserto.
Sei que
trocarias o lenitivo de um oásis
Pela certeza
de me teres perto.
E nas mulheres
que encontrares,
Dos seios
o perfume, das nucas a palidez,
Das ancas
as curvas
E das peles
a cor e a tepidez,
Fica certo,
não te evadirás.
Porque
desde a tua sombra
Ao teu
mais rápido pensamento
Não serás
livre de mim
Num um
momento.
O espanto
abriu meu pensamento
Com idioma
vindo do delírio,
Dos receios
indefesos, dos louvores sem raízes,
No perdão
oferecido sem razão.
O espanto
abriu meu pensamento
Na noite
carregada de lamentos
Em linguagem
universal
Fluindo
do eco perdido
Com passos
de presságio amanhecendo.
Corpos
florindo na pele da terra
Acendendo
vida nas rosas e nos vermes,
Aumentando
a potência do limo,
Preparando
a primavera nos campos,
Ventres
irrigando secas raízes,
Cogumelos
róseos crescendo
Na umidade
das faces.
Coagulação
de prantos na semente
Das constelações
adivinhadas.
E no faminto
inconsciente, o tempo
Sorvendo
com fúria o seu sustento
No insondável
silêncio de mim mesma.
MISTÉRIO
Há vozes
dentro da noite que clamam por mim,
Há vozes
nas fontes que gritam meu nome.
Minha alma
distende seus ouvidos
E minha
memória desce aos abismos escuros
Procurando
quem chama.
Há vozes
que correm nos ventos clamando por mim.
Há vozes
debaixo das pedras que gemem meu nome
E eu olho
para as árvores tranquilas
E para
as montanhas impassíveis
Procurando
quem chama.
Há vozes
na boca das rosas cantando meu nome
E as ondas
batem nas praias
Deixando
exaustas um grito por mim
E meus
olhos caem na lembrança do paraíso
Para saber
quem chama.
Há vozes
nos corpos sem vida,
Há vozes
no meu caminhar,
Há vozes
no sono de meus filhos
E meu pensamento
como um relâmpago risca
O limite
da minha existência...
na ânsia
de saber quem grita.
POEMA
AO SILÊNCIO
Silencio,
cobre meu pensamento e o meu coração
Cobre o
meu corpo do desejo dos homens
E a minha
sombra da luz do sol
Cobre a
te a lembrança dos meus passos
E o som
da minha voz
Cobre a
minha caridade e a minha fé
A vontade
de morrer e também a de viver
Estende-te
sobre o colorido das paisagens
Interpõe-te
na minha respiração e no meu pestanejar
Cobre-me
desde o início da minha concepção
Enrola-te
no duplo de mim mesma
Transforma-me
em fragmento de ti próprio,
Penetra
no meu principio e no meu fim,
Cobre-me
bem, com tanta amplitude e intensidade
Que possa
eu ser esquecida
E me esquecer
por toda a eternidade!
Geme no cais o navio cargueiro
No hospital ao lado, o homem enfermo.
O vento da noite recolhe gemidos
Une angústias do mundo ermo.
Maresia transborda do mar em cansaço,
Odor de remédios inunda o espaço.
Máquina e homem, ambos exaustos
Um, pela carga que pesa em seu bojo
Outro, na dor tomando o seu corpo.
Cais, hospital: Portos de espera
E começo de fim da longa viagem.
Chaminés de cargueiros gritando no
mar,
Garganta do homem em gemidos no ar.
No fundo, o universo,
O mar infinito,
O céu infinito,
O espírito infinito.
Neblinados em tristezas e medos
Surgem silêncios entre os rochedos.
Chaminés de cargueiros gritando no
mar
E a garganta do homem em gemidos no
ar.
A POESIA SE ESFREGA NOS SERES E NAS COUSAS
Nunca sentiste uma força melodiosa
Cercando tudo que teus olhos veem,
Um misto de tristeza numa paisagem
grandiosa
Ou um grito de alegria na morte de
um ser que queres bem?
Nunca sentiste nostalgia na essência
das cousas perdidas
Deparando com um campo devoluto
Semelhante a uma virgem esquecida?
Num circo, nunca se apoderou de ti,
um amargor sutil
Vendo animais amestrados
E logo depois te mostrarem
Seres humanos imitando um réptil?
Nunca reparaste na beleza de uma estrada
Cortando as carnes do solo
Para unir carinhosamente
Todos os homens, de um a outro polo?
Nunca te empolgastes diante de um
avião
Olhando uma locomotiva, a quilha de
um navio,
Ou de qualquer outra invenção?
Nunca sentiste esta força que te envolve
desde o brilho do dia
Ao mistério da noite,
Na extensão da tua dor
E na delícia da tua alegria?
Pois então, faz de teus olhos o cume
da mais alta montanha
Para que vejas com toda a amplitude
A grandeza infindável da poesia que
não percebes
E que é tamanha!
CEMITÉRIO ADALGISA
Moram em mim
Fundos de mares,
estrelas-d'alva,
Ilhas, esqueletos
de animais,
Nuvens que não couberam
no céu,
Razões mortas, perdões,
condenações,
Gestos de amparo
incompleto,
O desejo do meu sexo
E a vontade de atingir
a perfeição.
Adolescências cortadas,
velhices demoradas,
Os braços de Abel
e as pernas de Caim.
Sinto que não moro.
Sou morada pelas
coisas como a terra das sepulturas
É habitada pelos
corpos.
Moram em mim
Gerações, alegrias
em embrião,
Vagos pensamentos
de perdão.
Como na terra das
sepulturas
Mora em mim o fruto
podre,
Que a semente fecunda
repetindo a vida
No sereno ritmo da
Origem.
Vida e morte, Terra
e céu,
Podridão, germinação,
Destruição e criação.
Eu te amo
Antes e depois de
todos os acontecimentos,
Na profunda imensidade
do vazio
E a cada lágrima
dos meus pensamentos.
Eu te amo
Em todos os ventos
que cantam,
Em todas as sombras
que choram,
Na extensão infinita
dos tempos
Até a região onde
os silêncios moram.
Eu te amo
Em todas as transformações
da vida,
Em todos os caminhos
do medo,
Na angústia da vontade
perdida
E na dor que se veste
em segredo.
Eu te amo
Em tudo que estás
presente,
No olhar dos astros
que te alcançam
E em tudo que ainda
estás ausente.
Eu te amo
Desde a criação das
águas,
desde a ideia do
fogo
E antes do primeiro
riso e da primeira mágoa.
Eu te amo perdidamente
Desde a grande nebulosa
Até depois que o
universo cair sobre mim
Suavemente.
POEMA NATURAL
Abro os olhos, não
vi nada
Fecho os olhos, já
vi tudo.
O meu mundo é muito
grande
E tudo que penso
acontece.
Aquela nuvem lá em
cima?
Eu estou lá,
Ela sou eu.
Ontem com aquele
calor
Eu subi, me condensei
E, se o calor aumentar,
choverá e cairei.
Abro os olhos, vejo
um mar,
Fecho os olhos e
já sei.
Aquela alga boiando,
à procura de uma pedra?
Eu estou lá,
Ela sou eu.
Cansei do fundo do
mar, subi, me desamparei.
Quando a maré baixar,
na areia secarei,
Mais tarde em pó
tomarei.
Abro os olhos novamente
E vejo a grande montanha,
Fecho os olhos e
comento:
Aquela pedra dormindo,
parada dentro do tempo,
Recebendo sol e chuva,
desmanchando-se ao vento?
Eu estou lá,
Ela sou eu.
*****
Edição preparada
por Floriano Martins. Página ilustrada com obras de Arthur Boyd (Austrália, 1920-1999), artista convidado
da presente edição.
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Agulha Revista de Cultura
Número 122 | Novembro de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO
MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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