quinta-feira, 1 de novembro de 2018

POEMAS DE MARIAJOSÉ DE CARVALHO


HIERÁTICA

gráceis esguias tristes sonolentas
alvas róseas plúmbeas negras
vós sábias pernaltas
anfíbias aristocratas
requinte é vosso estado
ó indolentes pensativas
hídricas contemplativas
vós não-precipitadas
resolvidas no silêncio
ensimesmadas displicentes
sonhadoras de voo certo
passo largo leve lento
longo flexível colo
princesas-sacerdotisas
em perpétua ablução purificante
vós consumada elegância
castelãs solitárias
do mistério e sossego das águas
vós pressagas delicadas
habitantes de finas porcelanas
biombos parques vestes reais
vós simbólicas extáticas
deusas de ritos idos
ficai permanecei


O HORTO

ouro prata e azul
no verde horto
resplandeces
em tuas finas
delicadas mãos
recebes a taça
licor de cereja
              o filtro
que celebra esta noite
de vigília d’armas
casta
límpida
no carro de corças
vaga em campo de aço
                       a deusa
os braços em colar
em teu colo
a fronte em tua fronte
por nove nomes a invoco
                                   lua
                                   hécate
                                   febe
                                   tânit
                                   ishtar
                                   astarté
                                   selene
                                   ártemis
                                   diana
silêncio
êxtase


ÂNSIA IMEMORIAL

que ânsia imemorial atrai os corpos
de ambarina e amavios impregnados
ossos tendões e carne e sangue nervos?
que impacto os enlouquece tange anula?
que plectro ou lançadeira ou sábia lâmina?
e exangues ao cansaço os abandona?
phallus vulva os seios mãos e boca
e a pele esse tecido permeável
são instrumentos de urdir tecer
e a estrutura imantada aniquilada
é deliquo amplo voo queda a pique
num abismo do fogo gelo e nada


O INICIADO

que nome te dar

na faca e no gume
na lima e no lume
na lama dos limos
na lança no laço
na trança no traço
na trama dos limbos

que névoa te envolve
                   e densa
turva
teu sacro perfil
se destravando
                        a treva
emerso a iluminaste
e
na dança do templo
que o corpo enlaça
a pupila embaça
o passo trava
e o sangue desata
em salva de prata
contido o lábio
na doce taça

que nome te dar

que medo te impele
que tolhida asa
o voo te impede
que secreta chaga
de ferida pluma
te enluta o âmago

e que maga imagem
te dispara a seta
que o peito afeta
em bruma
               e arfagem
ó
iniciado

que êxtase
nos espera
que ardente
dardo
através da estirpe
         de transe
           e treva
           a dor
              extirpa
           o ir
           é nosso rio
         ao bramir
         do touro
           o ouro
          de teu corpo
                           ao sol
o manso bezerro
o túrgido úbere
a plúmbea ave
o fruto maduro
lança e raiz
o chão e o sal
tua urdidura são
ao sol posto
evocamos
             a chaga
que a taça embaça
e o violáceo laço
de obscura trama
nesta agosto
                 deposto
nos envolve o rosto
                   a palavra
                   o chá


[QUE ÂNSIA]

que ânsia imemorial atrai os corpos
de ambarina e amavios impregnados
ossos tendões e carne e sangue nervos?
que impacto os enlouquece tange anula?
que plectro ou lançadeira ou sábia lâmina?
e exangues ao cansaço os abandona?
phallus vulva os seios mãos e boca
e a pele esse tecido permeável
são instrumentos de urdir tecer
e a estrutura imantada aniquilada
é deliquo amplo voo queda a pique
num abismo do fogo gelo e nada


TRILOGIA DAS AMOROSAS

I

Acaso poderias contentar-te com outra paixão menos ardente do que a minha?

Sóror Mariana de Alcoforado

que mão ardilosa tece
o rumo das amorosas
ardendo em paixão constante
vorazes em seu anseio
verazes no seu amar
tenazes em sua sina
que frágil tecido o seu
que as torna tão vulneráveis
que sólida trama a sua
que as faz tão impenetráveis
que estranha sua urdidura
que armadilha suas entranhas
e a violenta mordedura
das presas do seu veneno
que rara essência as perfuma
que licor denso ou que vinho
corre em suas veia e artérias
que pátera ou que cratera
as embriaga e afoga
que cimento ou que argamassa
constrói a sua ossatura
que flava flama ou que rio
as consome ou as arrasta
que sede e que fome atroz
alimentam sua busca
que nem torres e muralhas
afugentam seu assédio
e as vias mais tortuosas
as sendas mais pedregosas
não intimidam seus passos
e a noite mais tenebrosa
incita a sua coragem
que misteriosa estrutura
sustenta a sua conduta
o fio do seu novelo
a linha de sua estirpe
que ígneo astro as habita
que negro sol as concita
que maciez pisa fino
em sua pata felina
que aço mais temperado
em sua fala ferina
vem de longe a sua linhagem
em viagem ininterrupta
e mesmo partido o leme
rotos cordoalha e velame
prosseguem em seu caminho


II

Daos a tener grandes deseos, que se sacam siempre grandes provechos, aunque no se puedan poner en obra.

Santa Teresa de Ávila

amorosas lancinadas
que é feito do vosso poder
tendes furor nas entranhas
mênades amenas
que eu turvos uivos de viúvas
            trincais as uvas
serpente macia brando látego
dança no ar a cabeleira
e avança a negra trança
crina e cauda ala calada
obscura raiz límpido traço
vós
que alvo não tendes em vossa tenda
                                                    e senda
e teceis ponto a ponto a delicada renda
venda no olhar travado o andar
e
sós
    nadais em fino linho
    e na treva do sono
                       o sonho indo e vindo
                     no vinho do encontro
                          áspero recontro
é nessas águas o navegar
                        e o vagar
                                      de ansiedade
                                           ebriedade
                                           soledade
ânfora de âmbar vosso corpo guarda
                                                               à espera
                                                                     o mel
erra nos muros a hera
em susto
javalis e javalinas
sucumbem às correrias
                                    de montearia
e arrulham as rolas
alheias aos voos de falcoaria
mas pedra é teu chão
                                 terra despida
pedra é o piso de tuas casas
                                             terra curtida
                                             em sangue e flama
                                             calcinada
tuas matas incendiadas
                                     ou em naves transformadas
no ataque feroz
                 feraz o solo te recebeu
                                        rude guerreiro
e glória cantou-se ao vencedor
enquanto
entenebrecida
                       carpias teus mortos
foi quando se recolheram
                                      os feridos
e sobre as chagas
                             derramou-se o óleo
faminta naquele assédio
a sede secou-te o peito
e rouca
   louca
no chão rolaste
entre chamas chamando
o bem-achado bem
                              perdido
e o vão gemido sem alento
perdeu-se no alarido
junto ao vencido
                         estandarte


III

On m’a dit cent fois que l’amour était une chimère et le bonheur un rêve.  Je me le suis dit cent fois à moi-même.  Mais tant que je me sentirai la force de désirer le bonheur et l’amour, j’aurai la force de les espérer.

George Sand

coroadas de hésperis
nadam as hespérides
em águas abissais
e a leoa com suas crias
a loba com seus cachorros
a égua com seus potros
guardam a planura
parassemas emproam tuas naves
e parassóis pluripétalos
arrogantes girassóis
cobrem teus paramentos
thalassa é teu mundo
em pélagos e périplos navegas
heráldicas aves marcam tuas insígnias
as paragnátides de teus cascos
protegem tua maxila
e sob a axila trazes domado o leão
gloriosa nike
em panejante peplo desfraldadas alas
guia teus barcos
e de imigos arcos zunem os dardos
sem os roçar
e as deusas férteis pariram deuses
e feridas por seus raios sucumbiram
assim foi transferido o poder
mas do fundo profundo
emerge tua boca
e clama e inflama
a vaga e a praia
teu hálito é brisa e chama
teus dentes cortam algas corais medusas polvos
e teus brados e braços alcançam e abraçam
o espaço que te usurparam
vitório é o equilíbrio da balança
no peso desse metal maior
                                                massa de armilas
                                                e armas invencíveis
profunda é tua raiz
e sabes que não te quer o que não queres
pois quando vencedores
eram vencidos os imaturos
a quem ofertavas a salva
no lodo sorveu-se o húmus
sábio olhar perpassou teu ser
e sereno passou o horizonte
                                                fonte e ponte
para enfrentar seguro
                                    treva e luz
                                     penumbra e lusco-fusco
e o turvo fez-se transparente
e as mãos foram leais
essa a terra que buscavas
onde fincar tua lança
onde lançar sua semente
esse o prêmio do tempo que esperaste
tempo de penitência e propiciação
em que lutaste contra empestados ventos
e agora louva o encontro
e vive a estação dos frutos

que o tempo é de maturação


LUNALUNARIUM VIII

Do
sardo mar
por águas
            lavrado
em sal
         conservado
dentre
joias
moedas
armas
de submerso
acervo
a mim
         vieste
aro de bronze
a mim
viúva
e
nesta herança
de remoto
pacto
em meu dedo
estás
       arcaica

      aliança


LUNALUNARIUM XI

o descarnado tempo
  descornado touro
  é o exemplo
  na face dúbia
  de covarde olhar
  na carne
             permanente
             pungente
            o
            espinho
vinho de ciência
          da essência
            o
             arminho



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Edição preparada por Floriano Martins. Página ilustrada com obras de Arthur Boyd (Austrália, 1920-1999), artista convidado da presente edição.


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Agulha Revista de Cultura
Número 122 | Novembro de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES




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