Eu vi teus bichos
mansos e domésticos:
um motociclo
gato e cachorro.
Estudei contigo
um planador,
volante máquina,
incerta e frágil.
Bebi da aguardente
que fabricaste
servida às vezes
numa leiteira.
Mas sobretudo
senti o susto
de tuas surpresas.
E é por isso
que quando a mim
alguém pergunta
tua profissão
não digo nunca
que és pintor
ou professor
(palavras pobres
que nada dizem
de tais surpresas);
respondo sempre:
– É inventor,
trabalha ao ar livre
de régua em punho,
janela aberta
sobre a manhã.
NOITES DE RECIFE
Os figurantes esperam
muito no cais
um lorde inglês um
piemontês
Uma parisiense aí
passeia seu spleen e seu ouistiti
Ananás cabaças pintadas
e com estranhas inscrições
gravadas
Meu amor
Os táxis sem clientela
em fila indiana e
as cortesãs
O andar de baixo
vos convidam para passeios
ou ao seu quarto
céu onde juntar os
dois extremos as noites em claro
Os trâmueis loucos
ziguezagueiam sobre os paralelos
Um ato perde seu
centro de gravidade e rasga seus
pneus na primeira
viragem impertinente
O vento sopra constantemente
Miséria Dinheiro
Desonra
Deserção?
Não.
Divo não tem pressa,
não sabe para onde
vai,
ouviu nos
Cinemas a sonorização
dos bólidos que riscam
o cimento fingindo
o inexorável destino.
Todas as tentativas
fracassaram
À medida que se afastavam
as irregularidades
se multiplicavam
até a perda de todo
contato
A fórmula da propagação
direta parecia portanto
ser
a verdadeira indiscutivelmente
pela revelação das
ondas amortecidas
Podia-se supor que
A emissão desaparecida
reapareceria
Ensaios organizados
mostraram que todas as ideias recebidas
Eram absolutamente
falsas
Com potência irrisória
e bilateral
Revolucionando todos
os dogmas
A era dos impossíveis
estava acabada
Por telefone um assinante
De Rio pede Issy-les
Moulineaux
Saint-Ouen
Chocolat
Pastilhas
de menta
Bolsinhas-surpresas
O Oceano perde seu
mistério
Paradoxal quilociclismo
A 10 metros fazem
um mais
longo percurso que
os quilômetros de Maratona
MINHA ONDA ERA MUITO CURTA PARA
VOCÊ
Minha onda era muito
curta para você
nem baixas nem altas
frequências
podiam propaga-la
até você
Buscava havia horas
tua emissão longínqua
nas bandas dos quinze
metros
Era ir ao encontro
de um fracasso certo
Tuas lâmpadas muito
metálicas eram
acordadas sobre outros
circuitos
O telégrafo Morse
gangster do espaço
metralhava por rajadas
a voz do locutor
Tua voz anunciava
em desconhecidas linguagens
O mistério do vasto
mundo
Domínio da irradiação
Dos sopros estranhos
e cochichos
Mas o primeiro passo
para conquista de tua onda curta
é bem conhecer tuas
regras experimentais
Disso vocês vão concluir
que meu
receptor não funciona?
Adie a sua malícia
Amanhã sua zona de
silêncio será quebrada
e nossa alegria profunda
até as antípodas
Sem discordância
mútua
operando
sobre a mesma banda
com
espírito esportivo
Faremos a travessia
do Pacífico
Deixaremos a atmosfera
para
a estratosfera
Procuremos as miríades
e nebulosas
Nenhum aparelha detector
poderá controlar nosso prazer
Nossa onda curta
alongada
sobre
a cama Heaviside
fará
écran
e nenhuma radiação
estranha
penetrará nosso leito
ionizado
O SER E SUA SOMBRA
No coração do possível
abunda o real estreito
o possível do mundo
mede o fatal destino
do universo
A natureza repudia
o real
e perde o seu olho
com pavor
nos limites fatais
ela se arranca os
cabelos e nas
coisas proibidas
grita, ordena no
tempo
e no espaço
artesão das ordens
soberanas
sobre praça
obra, dispõe, rápida
e sem cessar
ao morrer empresta
dos heróis a figura
Ai de mim! bebi como
tu
A taça destinada
ao ser imóvel
À medida compatível
impossível medir
a distância
extrema
entre tu
e mim.
Se te pinto em um
quadro
É meu coração que
desenha, amiga,
Fixando na tela para
a vida
Teu bonito jeito
de bibelô.
Um poeta num rondó
De tua beleza não
dirá, querida,
Se te pinto num quadro
É meu coração que
desenha, querida
Meu coração pelo
pinel verteria
Tua alegria sem melancolia
E essa bonita tez
de aquilégia
Florida na sombra
por tempo ardente
Se num quatro te
pinto
TÚMULO
Um casebre de palha
Sem paredes, o sol
malha
O telhado, os pássaros
cantores
Denunciam-no. O clarão
Da lua alonga sua
dimensão
E o ar doce toma
cheiro de flores
Cuja corola se entreabre
Pela manhã quando
o sol doura
O mato A morena irmã
A ânfora
Portadora de flores
e amores
Verão como inverno
todos os dias
Num riso sonoro,
traz ao pintor
O veludo leque das
cores
Que a natureza rememora.
O PEQUENO CIRCO
Abrindo caminho a
quadriga anda
Em branco manejo.
O clown recebe
A bofetada pela multidão
aplaudida
Bravo Paul Albert
e François
Sobre seu caule içada
a flor dança
Concentrada, o bufão
a dominando
Entre laços de fogo,
criando
Por terra uma imensa
roseta.
Um inesperado trapezista
Ramón Gómez de la
Serna
Desenrolando longas
dobras premia
O preço, e sua felicidade
assiste
O circo armado de
Apollinaire
De Laurencin, d’Arthur
Rimbaud
E de Seurat um grande
seio
Mirífico círculo
lunar
A Luc Bérimont
Os caldeireiros batendo
batendo
Estiram o metal que
soa
A pan pan pan redobrado
E eco sobre os vidros
ressoa
Vão eles martelos
batendo
Tanto e tanto o dia
todo
Que afinal persistentes
Criaram espessas
panelas espelhantes
Ao joalheiro, a prata,
o ouro
Ao caldeireiro o
rubro cobre,
O antigo soldo grosso
do pobre
Rico adorno de nossa
cozinha
Bem à mostra, e que
se empenha
Uma vez o ano, como
se adivinha
HOSPITAL SANTO-OFÍCIO
Foi traçado o espaço
imaginário
Para minha luta entre
o bem e o mal
Um retângulo branco
de leito de hospital
Onde durante trinta
dias desespero
Deitado neste curto
espaço precário
Não sei se sou um
vegetal
Ou plasma fresco
para o corpo médico
Brinquedo para o
bom prazer da enfermeira
Caro Philippe Soupault
Há pouco a chama
Do “auto-da-fé” sem
compaixão
Matava o corpo para
salvar a alma
Como outrora em um
mesmo cenário
A Ciência esta Inquisição
Tortura a alma para
salvar o corpo
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Edição preparada
por Floriano Martins. Página ilustrada com obras de Arthur Boyd (Austrália, 1920-1999), artista convidado
da presente edição.
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Agulha Revista de Cultura
Número 122 | Novembro de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO
MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
Creio que o primeiro poema não seja de Vicente do Rêgo Monteiro, mas sim de João Cabral de Melo Neto.
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