quinta-feira, 1 de novembro de 2018

POEMAS DE VICENTE DO REGO MONTEIRO


ESTRADA DE MISTÉRIOS

Eu vi teus bichos
mansos e domésticos:
um motociclo
gato e cachorro.
Estudei contigo
um planador,
volante máquina,
incerta e frágil.
Bebi da aguardente
que fabricaste
servida às vezes

numa leiteira.
Mas sobretudo
senti o susto
de tuas surpresas.
E é por isso
que quando a mim
alguém pergunta
tua profissão
não digo nunca
que és pintor
ou professor

 (palavras pobres
que nada dizem
de tais surpresas);
respondo sempre:
– É inventor,
trabalha ao ar livre
de régua em punho,
janela aberta
sobre a manhã.


NOITES DE RECIFE

Os figurantes esperam muito no cais
um lorde inglês um piemontês
Uma parisiense aí passeia seu spleen e seu ouistiti
Ananás cabaças pintadas
e com estranhas inscrições gravadas
Meu amor
Os táxis sem clientela
em fila indiana e as cortesãs
O andar de baixo vos convidam para passeios
ou ao seu quarto
céu onde juntar os dois extremos as noites em claro
Os trâmueis loucos ziguezagueiam sobre os paralelos
Um ato perde seu centro de gravidade e rasga seus
pneus na primeira viragem impertinente
O vento sopra constantemente
Miséria Dinheiro Desonra
Deserção?
Não.

Divo não tem pressa,
não sabe para onde vai,
ouviu nos
Cinemas a sonorização
dos bólidos que riscam
o cimento fingindo
o inexorável destino.


ENSAIOS TRANSATLÂNTICOS

Todas as tentativas fracassaram
À medida que se afastavam
as irregularidades se multiplicavam
até a perda de todo contato
A fórmula da propagação
direta parecia portanto ser
a verdadeira indiscutivelmente
pela revelação das ondas amortecidas
Podia-se supor que
A emissão desaparecida reapareceria
Ensaios organizados mostraram que todas as ideias recebidas
Eram absolutamente falsas

Com potência irrisória e bilateral
Revolucionando todos os dogmas
A era dos impossíveis estava acabada
Por telefone um assinante
De Rio pede Issy-les
Moulineaux

Saint-Ouen Chocolat
Pastilhas de menta
Bolsinhas-surpresas

O Oceano perde seu mistério

Paradoxal quilociclismo
A 10 metros fazem um mais
longo percurso que os quilômetros de Maratona


MINHA ONDA ERA MUITO CURTA PARA VOCÊ

Minha onda era muito curta para você
nem baixas nem altas frequências
podiam propaga-la até você
Buscava havia horas tua emissão longínqua
nas bandas dos quinze metros
Era ir ao encontro de um fracasso certo
Tuas lâmpadas muito metálicas eram
acordadas sobre outros circuitos
O telégrafo Morse gangster do espaço
metralhava por rajadas a voz do locutor
Tua voz anunciava em desconhecidas linguagens
O mistério do vasto mundo
Domínio da irradiação
Dos sopros estranhos e cochichos
Mas o primeiro passo para conquista de tua onda curta
é bem conhecer tuas regras experimentais
Disso vocês vão concluir que meu
receptor não funciona?
Adie a sua malícia
Amanhã sua zona de silêncio será quebrada
e nossa alegria profunda até as antípodas
Sem discordância mútua
operando sobre a mesma banda
com espírito esportivo
Faremos a travessia do Pacífico
Deixaremos a atmosfera para
a estratosfera
Procuremos as miríades e nebulosas
Nenhum aparelha detector poderá controlar nosso prazer
Nossa onda curta alongada
sobre a cama Heaviside
fará écran
e nenhuma radiação estranha
penetrará nosso leito ionizado


O SER E SUA SOMBRA

No coração do possível
abunda o real estreito
o possível do mundo
mede o fatal destino do universo
A natureza repudia o real
e perde o seu olho com pavor
nos limites fatais
ela se arranca os cabelos e nas
coisas proibidas
grita, ordena no tempo
e no espaço
artesão das ordens soberanas
sobre praça
obra, dispõe, rápida
e sem cessar
ao morrer empresta dos heróis a figura
Ai de mim! bebi como tu
A taça destinada ao ser imóvel
À medida compatível
impossível medir a distância
extrema
entre tu
e mim.


SE TE PINTO EM UM QUADRO

Se te pinto em um quadro
É meu coração que desenha, amiga,
Fixando na tela para a vida
Teu bonito jeito de bibelô.

Um poeta num rondó
De tua beleza não dirá, querida,
Se te pinto num quadro
É meu coração que desenha, querida

Meu coração pelo pinel verteria
Tua alegria sem melancolia
E essa bonita tez de aquilégia
Florida na sombra por tempo ardente
Se num quatro te pinto


TÚMULO

Um casebre de palha
Sem paredes, o sol malha
O telhado, os pássaros cantores
Denunciam-no. O clarão
Da lua alonga sua dimensão
E o ar doce toma cheiro de flores
Cuja corola se entreabre

Pela manhã quando o sol doura
O mato A morena irmã A ânfora
Portadora de flores e amores
Verão como inverno todos os dias
Num riso sonoro, traz ao pintor
O veludo leque das cores
Que a natureza rememora.



O PEQUENO CIRCO

Abrindo caminho a quadriga anda
Em branco manejo. O clown recebe
A bofetada pela multidão aplaudida
Bravo Paul Albert e François

Sobre seu caule içada a flor dança
Concentrada, o bufão a dominando
Entre laços de fogo, criando
Por terra uma imensa roseta.

Um inesperado trapezista
Ramón Gómez de la Serna
Desenrolando longas dobras premia
O preço, e sua felicidade assiste

O circo armado de Apollinaire
De Laurencin, d’Arthur Rimbaud
E de Seurat um grande seio
Mirífico círculo lunar


OS CALDEIREIROS

A Luc Bérimont

Os caldeireiros batendo batendo
Estiram o metal que soa
A pan pan pan redobrado
E eco sobre os vidros ressoa

Vão eles martelos batendo
Tanto e tanto o dia todo
Que afinal persistentes
Criaram espessas panelas espelhantes

Ao joalheiro, a prata, o ouro
Ao caldeireiro o rubro cobre,
O antigo soldo grosso do pobre

Rico adorno de nossa cozinha
Bem à mostra, e que se empenha
Uma vez o ano, como se adivinha


HOSPITAL SANTO-OFÍCIO

Foi traçado o espaço imaginário
Para minha luta entre o bem e o mal
Um retângulo branco de leito de hospital
Onde durante trinta dias desespero

Deitado neste curto espaço precário
Não sei se sou um vegetal
Ou plasma fresco para o corpo médico
Brinquedo para o bom prazer da enfermeira

Caro Philippe Soupault Há pouco a chama
Do “auto-da-fé” sem compaixão
Matava o corpo para salvar a alma

Como outrora em um mesmo cenário
A Ciência esta Inquisição
Tortura a alma para salvar o corpo








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Edição preparada por Floriano Martins. Página ilustrada com obras de Arthur Boyd (Austrália, 1920-1999), artista convidado da presente edição.


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Agulha Revista de Cultura
Número 122 | Novembro de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES




Um comentário:

  1. Creio que o primeiro poema não seja de Vicente do Rêgo Monteiro, mas sim de João Cabral de Melo Neto.

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