Ser mulher, vir à luz trazendo a alma talhada
para os gozos da vida; a liberdade e o amor;
tentar da glória a etérea e altívola escalada,
na eterna aspiração de um sonho superior…
Ser mulher, desejar outra alma pura e alada
para poder, com ela, o infinito transpor;
sentir a vida triste, insípida, isolada,
buscar um companheiro e encontrar um senhor…
Ser mulher, calcular todo o infinito curto
para a larga expansão do desejado surto,
no ascenso espiritual aos perfeitos ideais…
Ser mulher, e, oh! atroz, tantálica tristeza!
ficar na vida qual uma águia inerte, presa
nos pesados grilhões dos preceitos sociais!
[PARTICULARIDADES]
Muitas vezes, a sós, eu me analiso e estudo,
os meus gostos crimino e busco, em vão torcê-los;
é incrível a paixão que me absorve por tudo
quanto é sedoso, suave ao tato: a coma… Os pelos…
Amo as noites de luar porque são de veludo,
delicio-me quando, acaso, sinto, pelos
meus frágeis membros, sobre o meu corpo desnudo
em carícias sutis, rolarem-me os cabelos.
Pela fria estação, que aos mais seres eriça,
andam-me pelo corpo espasmos repetidos,
às luvas de camurça, às boas, à pelica…
O meu tato se estende a todos os sentidos;
sou toda languidez, sonolência, preguiça,
se me quedo a fitar tapetes estendidos.
IMPRESSÕES DO
GESTO
A uma bailarina
A tua dança indefinida,
que me retém extática, surpresa,
guarda em si resumida
a harmonia orquestral da natureza,
a euritmia da Vida.
(…)
todo teu ser parece-me tomado
por convulsões de dores infinitas…
E desse trágico crescendo
de gestos que enchem o silêncio de ais,
vais
smorzando, descendo,
como que por encanto,
presa de um místico quebranto…
Danças e cuido estar em ti me vendo.
Os teus meneios
são
cheios
de meus anseios;
a tua dança é a exteriorização
de tudo quanto sinto:
minha imaginação
e meu instinto
movem-se nela alternadamente;
minha volúpia, vejo-a torça, no ar,
quando teu corpo lânguido, indolente,
sensibiliza a quietação do ambiente,
ora a crescer, ora a minguar
numa flexuosidade de serpente
a se enroscar
e a se desenroscar.
Em tua dança agitada ou calma,
de adejos cheia e cheia de elastérios,
materializa-se minha alma,
pois nos teus membros leves, quase etéreos,
eu contemplo os meus gestos interiores,
meus prazeres, meus tédios, minhas dores!
ENCANTAMENTO
A Francisco Alves,
o perfeito intérprete da canção brasileira
Canta,
que tua voz
ardente e moça
faz com que eu sinta a meiguice
das palavras que a vida não me disse.
Para te ouvir melhor
abro as janelas
e fico a sós
com tua voz
sonhando
que a noite está cantando
pelos lábios de fogo das estrelas.
Canta,
boca febril que não conheço,
que nunca me falaste e que me dizes tudo!…
Ave estranha
de garras de veludo,
entoa para mim
uma canção sem fim!
Canta,
que ao teu canto vejo
em tudo
quietude atroz
de insatisfeito desejo
Canta,
— em cada ouvido há um beijo
para tua linda voz.
CHUVA DE CINZAS
na estática mudez da Terra triste e viúva;
e, da tarde ao cair, sinto, minha alma, agora,
embuça-se na cisma e no torpor se enluva.
Hora crepuscular, hora de névoas, hora
em que de bem ignoto o humano ser enviúva;
e, enquanto em cinza todo o espaço se colora,
o tédio, em nós, é como uma cinérea chuva.
Hora crepuscular - concepção e agonia,
hora em que tudo sente uma incerteza imensa,
sem saber se desponta ou se fenece o dia;
hora em que a alma, a pensar na inconstância da sorte,
fica dentro de nós oscilando, suspensa
entre o ser e o não ser, entre a existência e a morte.
Não creias nos meus retratos,
nenhum deles me revela,
ai, não me julgues assim!
Minha cara verdadeira
fugiu às penas do corpo,
ficou isenta da vida.
Toda minha faceirice
e minha vaidade toda
estão na sonora face;
naquela que não foi vista
e que paira, levitando,
em meio a um mundo de cegos.
Os meus retratos são vários
e neles não terás nunca
o meu rosto de poesia.
Não olhes os meus retratos,
nem me suponhas em mim.
REFLEXÃO
Há certas almas
como as borboletas,
cuja fragilidade de asas
não resiste ao mais leve contato,
que deixam ficar pedaços
pelos dedos que as tocam.
Em seu voo de ideal,
deslumbram olhos,
atraem as vistas:
perseguem-nas,
alcançam-nas,
detém-nas,
mas, quase sempre,
por saciedade
ou piedade,
libertam-nas outra vez.
Ela, porém, não voam como dantes,
ficam vazias de si mesmas,
cheias de desalento…
Almas e borboletas,
não fosse a tentação das cousas rasas;
- o amor de néctar,
- o néctar do amor,
e pairaríamos nos cimos
seduzindo do alto,
admirando de longe!…
ESBOÇO
Teus lábios inquietos
pelo meu corpo
acendiam astros…
e no corpo da mata
os pirilampos
de quando em quando,
insinuavam
fosforescentes carícias…
e o corpo do silêncio
estremecia,
chocalhava,
com os guizos
do cri-cri osculante
dos grilos que imitavam
a música de tua boca…
e no corpo da noite
as estrelas cantavam
com a voz trêmula
e rútila
de teus beijos…
Teus olhos me olham
longamente,
imperiosamente…
de dentro deles teu amor me espia.
Teus olhos me olham numa tortura
de alma que quer ser corpo,
de criação que anseia ser criatura
Tua mão contém a minha
de momento a momento:
é uma ave aflita
meu pensamento
na tua mão.
Nada me dizes,
porém entra-me a carne a persuasão
de que teus dedos criam raízes
na minha mão.
Teu olhar abre os braços,
de longe,
à forma inquieta de meu ser;
abre os braços e enlaça-me toda a alma.
Tem teu mórbido olhar
penetrações supremas
e sinto, por senti-lo, tal prazer,
há nos meus poros tal palpitação,
que me vem a ilusão
de que se vai abrir
todo meu corpo
em poemas.
SAUDADE
De quem é esta saudade
que meus silêncios invade,
que de tão longe me vem?
De quem é esta saudade,
de quem?
Aquelas mãos só carícias,
Aqueles olhos de apelo,
aqueles lábios-desejo…
E estes dedos engelhados,
e este olhar de vã procura,
e esta boca sem um beijo…
De quem é esta saudade
que sinto quando me vejo?
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Edição preparada
por Floriano Martins. Página ilustrada com obras de Arthur Boyd (Austrália, 1920-1999), artista convidado
da presente edição.
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Agulha Revista de Cultura
Número 122 | Novembro de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO
MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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