quinta-feira, 1 de novembro de 2018

POEMAS DE FRANCISCO CARVALHO


ANTIODE EM CLAVE DE SOL

Conheço de cor esses passos de pluma que me assaltam
As estátuas libertas da estática caminham para agarrar o assombro
É um mundo poroso, esse em que navegas do espanto
para o sobressalto. As estátuas envelhecem sob
o pólen de tantas noites. Debalde os velhos te espreitam
por detrás das grandes lápides. Os velhos te cortejam
e te desdenham. Têm nas mãos de ossos uma cicatriz
de palavras. Eles te acenam com as órbitas repletas
de escárnio. Os velhos cochilam nos verdes sepulcros
gretados. As aves do espanto os embrulham nas noites
de inverno. As estátuas são cúmplices dos velhos
Elas trabalham com obstinação para conter a volúpia
dos velhos. Trabalham a eternidade como se fosse dócil madeira
O caruncho assoma no pórtico onde os velhos prosperam
Eles têm nas mãos de ossos uma cicatriz de palavras
Papéis com odor de azinhavre pendem-lhes dos dedos
Os velhos são burocratas da morte. Eles te proíbem
passar diante das estátuas. A palidez do antigório
ordena que te cales. Nenhum sussurro de liberdade
agita a fímbria dourada nesse escoadouro de treva

Os velhos insistem em te pedir memórias. Memória até
do que não há memórias. Memória do céu e do inferno
Os olhos empoeirados dos velhos subitamente vidraças
Onde pasce a alma é a penugem dourada do sonho
                                                 Mas ninguém adivinha o gosto
desse contorno de fêmea mergulhado em lume e cristal
Ninguém adivinha o relento de escombros onde os velhos
se deitam. Onde elaboram o visgo das suas traições
a fosforescência do seu desdém, onde a sua volúpia prospera
Os velhos prosperam com alegria obscena. Conheço
de cor esses passos de escuma que me assaltam
São os velhos que deslizam pela memória com seus
tamancos de acaso. Os velhos com a solidão a tiracolo
A naftalina e o sonho se misturam, enquanto a alma
se debruça nesse espaldar de orvalho que é o mistério

O tempo dos velhos é o tempo da morte. O tempo
do verde sazonado, da espiga que se oferta ao caruncho
O tempo dos velhos é o tempo das goteiras e do orvalho
escapando pelas frinchas de Deus. O tempo dos homens
e o tempo do húmus. Mas ninguém vislumbra lume algum
de eternidade. Nem a penugem dourada na axila das
fêmeas que os velhos postulam. A vida da alma é a morte
do húmus. Os velhos coabitam num cemitério de barcos
Tentarei escapar do cerco terrível, sair ileso
desse mergulho, dessa torrente de baba. Tentarei
não me corromper, não me perturbar com a insignificância dos velhos
O caruncho os abastece de paciência e destruição
A vida não é isto que apregoam. Repito: a vida não
é isto com que douram os burocratas da morte
Esse odor de almas fétidas, que por ali brilhassem
coroados pântanos. A vida não é antípoda da morte
A vida não é uma pauta vazia onde as traças e o sorriso
dos velhos prosperam. Tenho direitos a reclamar
perante a lei dos velhos. Não me intimidarei com
o seu esgar. Nem consentirei que me espreitem por trás
dos olhos gretados, lume algum tentando estancar
o rio de carunchos e os outros afluentes da morte
                                                           Faço o que posso
para escapar à sedução da mentira. Os velhos me
advertem da legenda de vermes embutida no verde. Faço
o que posso para não renegar a alma, para trazê-la
esculpida em mim, junto o seu brasão de mistério. Os
velhos me perturbam com tamanha ostentação. Têm
vísceras listradas de esplendor e desfraldam problemas
sobre uma catedral de rotinas. Nas mãos de ossos reluz
uma cicatriz de palavras. Onde pasce a alma é o sol que se
introduz nas dobras das tuas pernas e no húmus das tuas
pestanas. Onde pasce a alma põe-se a palma. Mas ninguém
adivinha o gosto desse contorno de fêmea mergulhado em
lume e cristal


ANTIODE EM CLAVE DE SOL (2)

Os velhos prosperam em solidão e em solidão
restauram os seus caminhos. Com os mesmos caminhos por
onde voltarão a passar outras sombras de velhos. Alguns
escurecidos pelo brasão da fome e pelo cansaço, pelo
silêncio que ficou sem resposta. Os velhos entranhados
no ladrilho e nas paredes das catedrais. Os velhos
à espera de que os vitrais acesos, por ali brilhassem
coroados pântanos. Os velhos, de pergaminho em riste,
investem contra Deus, enquanto as estátuas reverdecem
Ritmo de água prisioneira querendo escapar de dentro
O outro ritmo, aquele que rege os vivos e os mortos os pósteros e os póstumos
ninguém jamais o sentiu como se vindo à tona
ninguém jamais o teve ao pé de si feito um cão repleto
a não ser aqueles que dormem num casulo de lágrimas
O outro ritmo, aquele que acende o lume das coisas
nasce da alma guardada, da alma encruzilhada de signos
onde palavra alguma prospera. O outro ritmo, aquele
que os velhos não sabem que é ritmo, comanda o pastoreio
dos mortos. O mundo não é esse simulacro de ovações
de que se doura a pantomima dos néscios. Os velhos
e os néscios deitam sabedoria pelo nariz. Mas ignoram
que o mundo não são as palavras e seu luminoso desafio,
                                                                Os velhos mistificam
o sonho. Húmus de que as estátuas reverdecem. Onipre-
sença e estandarte dos mortos. Os velhos nos oprimem
sob o peso do seu hálito. A eternidade cuja raiz mergulha
na alma à procura da flor. Brasa que é brisa ao reluzir da
morte. Ninguém resiste ao temporal de palavras que
assola o universo. Eu não sou eu. Sou o outro que rege
uma orquestra de sonho de dentro de mim. Eis-me no
umbral onde se questionam vísceras encharcadas de
sonho. Os velhos deliberam enquanto o caruncho prospera
no pedestal de Deus. Poucos os que veem a eternidade
do que se rodeiam. Pilhas inteiras de laudas
ameaçam sufocar o mundo. A ferocidade do s velhos
apregoa sabedoria pelo nariz. O universo à deriva uma
espiral de problemas. Deus é o vértice. Mas os velhos
prosperam em silêncio. Simplesmente prosperam e
trabalham na ordenação do caos. O absurdo da vida os
converte em paladinos de si mesmos. Conheço pelo cheiro
a alma desses passos, o ritmo desses passos, a arquitetura
que se desenha nesses passos. A ternura me sufoca
como uma rajada de sangue. Mas continuarei vigilante
contra o impudor dos velhos. Agora, pelos caminhos
do mundo, passa uma orquestra de andrajos. Alguns sonhos soçobram, outros
vêm à tona da alma, assim barcos impelidos pelas águas.
Não obstante os velhos prosperam, a plenitude
irrigada pelo húmus do seu hálito. Do fundo dos sepulcros
de cimento eles cortejam as multidões encharcadas
de fantasia e pobreza. As maiores ambições de um homem
se reduzem a migalhas de trigo. Apenas o sonho
não se tinge de sangue, não mergulha a cabeça no charco
Os velhos contudo prosperam. Desdenham de ti e de mim
Os velhos enrodilhados no seu testamento de códigos
O riso dos velhos abala os fundamentos do sonho
e ao fel que deles emana se evapora a essência da alma.
                                                         Os velhos te observam
Algum dia eles acordarão do mergulho para refundir
as suas leis e ordenar mais uma vez que se cumpra a rotina
O jogo dos velhos é o jogo das palavras. Cada palavra
é uma tentativa de ressurreição para os velhos
A vida contudo escapa rumo ao lume do húmus
A vida caminha para a organização da morte. A alma
do homem é a alma do húmus. Algum dia os velhos
estalarão nos sepulcros, rebelados contra a ordenação do caos
Algum dia zumbirá na cova outra estação de ternura
A primavera aprisionada em cada folha. Mas de repente
o esplendor dos velhos mergulha num firmamento de lápides


ANTIODE EM CLAVE DE SOL (3)

Dei-te amor e desse combate de sonho escapei
andrajoso. Ó mentira do amor, ternura tantas vezes
consentida. A morte investe contra o sonho. Nada
mais resta do cristal em que mergulhei as franjas
da memória, além desse cansaço de mil noites
de consentimento e combate. Memória é o que me escapou
dos afluentes do teu corpo, além desse mistério
de douradas garras que em teu ser se fez penugem
Memória é o que me restou das mil mortes em que
naufraguei, além desse carregamento de solidão que me pesa na alma
Dei-te amor e desse combate de sonho escapei
dilacerado. Tudo que tenho é esse rio de espanto
que me escorre dos ombros. Talvez esse esplendor
de andrajos que me identifica perante a luz dos mortos
Tudo que tenho é esse barco carregado de apelos
que te singra em marés de ternura. Tudo que tenho
é essa lanhadura de signos que me sustenta
a alma. Esse estremecimento de mortos vingativos
e essa ferida de apelos que se nutre de mim
Tudo que tenho é este sonho arrastado ao cadafalso esse mistério que a vida
me recusa, essa saudade que os mortos me arrebatam
é esse resto de paz que me escapou do mergulho
em teu ser, desse naufrágio nas profundezas da alegria
Tudo que tenho é uma espada de orvalho para o combate
da morte. Tudo que tenho é esse desafio de esperas
com que me vingo do silêncio de Deus. Tudo que tenho
é esse desespero de emergir, de sacudir bem alto
o pólen de outrora, de resplandecer entre árvores
encharcadas de seiva, de ordenar que a primavera
do teu corpo se alastre sobre as mil faces da morte

Tudo que tenho é esse diadema de solidão
com que me coroei para o combate do sonho
Esse punhal de palavras com que me defendo de mim
Tudo que tenho é essa ilusão em pedaços
Tudo que tenho é tudo que não tenho. O céu
e o inferno e todas as legiões de arcanjos
paladinos. Tudo que tenho é esse condado
de testemunhos que me impelem para o fundo do charco
Tudo que tenho é o charco e dentro dele
um sonho maior do que Deus. Um sonho rodeado de muralhas
a catedral e o ícone. Dei-te amor e isso é tudo
que tenho maior do que a eternidade. Maior foi
o dia em que a minha alma mergulhou no charco
e dele saiu escorrendo sangue uma cicatriz
de estrelas. Maior o dia em que o charco agasalhou
os mortos expulsos de ti e de mim. Os nossos mortos
milhares deles perseguidos pela alma do húmus
Tudo que tenho é essa primavera de zumbidos que me levanta do fundo
do charco. E essa luz de soluços que escapando da alma
do charco, investe contra o perfil dos mortos. Tudo
que tenho é essa garra de homem com que me aferro
à vida. Os mortos me andam à deriva, e esse pântano
que de repente se ilumina é a alma do húmus
Tudo que tenho é tudo que não tenho. Levarei para
o fundo do charco esse momento de lucidez que
me puseste no ombro. O homem é apenas o sonho
que soçobra. Apenas o indicio dourado que permanece
no fundo do charco. O homem é talvez a garra que se
prende ao céu para não apodrecer no fundo do charco


SOB O NARIZ DE DEUS

Cuida-se que a vida é apenas estar com os olhos
abertos e mergulhar no tempo sem contudo
perder o gosto da solidão
o calendário e os cabelos
Cuida-se que todo dia é tarde demais
para que a morte não nos encontre obstinados


Cuida-se que diariamente o acaso recria notícias
que cavalos são mortos a golpes de heliotrópios 
que peixes são convertidos em tochas
que lagartas monumentais reinventam a fotossíntese
que imponderáveis meninos e seu hálito
passam de velocípede sob o nariz de Deus


O APRENDIZ DE ETERNIDADE


Pela manhã o coração mergulha
numa espiral de enigmas
Pestanas de orvalho reluzem
com reverberações cítricas
Dedos de asas codificam
a nomenclatura de Deus
emergindo de claridades sem vértebras
Pisas o mundo em derredor
contido na espessura dum verme
A eternidade se elabora
como um tecido de malha
Atiras a face à brisa
de insuspeitadas palavras
O sortilégio do anjo te acompanha
entre seres incautos
enquanto espedaças entre os dedos
o invisível contorno da solidão
Sabes que é preciso agarrar
a fímbria do tempo
Sabes que é impossível recompor
a antiga imagem do menino
desamparado às potências do êxtase
Sabes que a duração do momento
é apenas um sinal
na engrenagem de soluços
que nos esmaga trigo de Deus.


CANÇÃO DOS DESERDADOS

Na alma do nordestino
soluça um riacho
de águas traiçoeiras
que fogem para o mar...

Um sol de úlceras
desintegra a paisagem.
E o céu andrajoso descobre
a musculatura de estrelas.

Súbito sobem da terra
claridades intrínsecas.
E uma luz de ossadas
pulveriza o esqueleto dos caminhos.

Os homens não são homens:
são restos dum pesadelo de Deus.
As árvores não são árvores:
são braços esgalhados como vértebras.

O sol é um histrião
que enlouqueceu na ribalta.
Um povo de fantasmas
com seu punhal de lágrimas.

O verso é um braço impotente
para ajudar os aflitos.
Preciso escrever na terra
uma canção de legumes.

Na alma do nordestino
chove artificial
sob o nariz de Deus.
No chão prosperam mortos autênticos.


OS CAVALOS E OS MORTOS

Cedo me rodeei
das muitas presenças da morte
cedo as encontrei
entre os meus brinquedos
e palavras guardadas na memória

Cedo me coroei
da penugem dos mortos
eles me perseguiam
com seu olho cínico
que eu voltava de apascentar os cavalos

Os cavalos me afastaram
dos mortos
o verde vertente dos cavalos
afugentou o lume dos mortos
e o tempo desfez o resto


ELEGIA

a tarde caiu peluda
por cima da metáfora
primavera de obuses
fez emergente a aurora

arroz de pólvora e chumbo
prospera na paisagem
sob uma aurora de gumes
a fumegante chávena

a morte desfaz o espesso
dos soldados e das facas
a tarde caiu peluda
sobre a garupa das vacas

a morte em tudo inserida
(no cabelo e nas faces)
a morte guardada insípida
no coração de biafra

a morte como um escudo
fundido no sobressalto
morte de gás e de náilon
no vinco das alpercatas

a morte embrulhada em napa
papel celofane e lacre
a morte feito em prenúncio
de solidão em vermelho

vazios estão os campos
de espigas e não de espadas
ao longe deus em desuso
e um temporal de espingardas

noites de sangue e peritos
céu salpicado de facas
clarão de negros aflitos
sobre a fogueira dos lagos

biafra sem paz na torre
biafra em medo inserida
clarão de negros que escorre
por cima da nossa vida


A VERTIGEM

Enquanto dormes
o caracol refaz a encruzilhada
sob a correnteza das folhas
o leopardo fareja os antílopes
o silêncio te arranha como uma túnica de palha
os eventos passeiam sobre o teu corpo
o acaso descose os teus melhores anseios
a solidão se cumpre na tua boca


Enquanto dormes envelheces
vertiginosamente envelheces
o mundo envelhece
a terra envelhece
o céu envelhece
e os anjos mudam de nome


OS MORTOS AZUIS

João cor de betume
do que mais se ocupava
não era desse ofício
de ser coisa entre as coisas
nem de aprender o vento
canção dos ancestrais
nem de fumar cachimbo
para espantar tristezas
dos olhos africanos
nem de enrolar distâncias
no fuso dos tamancos
nem de plantar suspiros
na cova do seu amo.
João cor de betume
do que mais se ocupava
além do arar constante
hectares de solidão
era de apascentar
os seus mortos azuis.


*****

Edição preparada por Floriano Martins. Página ilustrada com obras de Arthur Boyd (Austrália, 1920-1999), artista convidado da presente edição.


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Agulha Revista de Cultura
Número 122 | Novembro de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES




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