Conheço de cor esses
passos de pluma que me assaltam
As estátuas libertas
da estática caminham para agarrar o assombro
É um mundo poroso,
esse em que navegas do espanto
para o sobressalto.
As estátuas envelhecem sob
o pólen de tantas
noites. Debalde os velhos te espreitam
por detrás das grandes
lápides. Os velhos te cortejam
e te desdenham. Têm
nas mãos de ossos uma cicatriz
de palavras. Eles
te acenam com as órbitas repletas
de escárnio. Os velhos
cochilam nos verdes sepulcros
gretados. As aves
do espanto os embrulham nas noites
de inverno. As estátuas
são cúmplices dos velhos
Elas trabalham com
obstinação para conter a volúpia
dos velhos. Trabalham
a eternidade como se fosse dócil madeira
O caruncho assoma
no pórtico onde os velhos prosperam
Eles têm nas mãos
de ossos uma cicatriz de palavras
Papéis com odor de
azinhavre pendem-lhes dos dedos
Os velhos são burocratas
da morte. Eles te proíbem
passar diante das
estátuas. A palidez do antigório
ordena que te cales.
Nenhum sussurro de liberdade
agita a fímbria dourada
nesse escoadouro de treva
Os velhos insistem
em te pedir memórias. Memória até
do que não há memórias.
Memória do céu e do inferno
Os olhos empoeirados
dos velhos subitamente vidraças
Onde pasce a alma
é a penugem dourada do sonho
Mas ninguém adivinha o gosto
desse contorno de
fêmea mergulhado em lume e cristal
Ninguém adivinha
o relento de escombros onde os velhos
se deitam. Onde elaboram
o visgo das suas traições
a fosforescência
do seu desdém, onde a sua volúpia prospera
Os velhos prosperam
com alegria obscena. Conheço
de cor esses passos
de escuma que me assaltam
São os velhos que
deslizam pela memória com seus
tamancos de acaso.
Os velhos com a solidão a tiracolo
A naftalina e o sonho
se misturam, enquanto a alma
se debruça nesse
espaldar de orvalho que é o mistério
O tempo dos velhos
é o tempo da morte. O tempo
do verde sazonado,
da espiga que se oferta ao caruncho
O tempo dos velhos
é o tempo das goteiras e do orvalho
escapando pelas frinchas
de Deus. O tempo dos homens
e o tempo do húmus.
Mas ninguém vislumbra lume algum
de eternidade. Nem
a penugem dourada na axila das
fêmeas que os velhos
postulam. A vida da alma é a morte
do húmus. Os velhos
coabitam num cemitério de barcos
Tentarei escapar
do cerco terrível, sair ileso
desse mergulho, dessa
torrente de baba. Tentarei
não me corromper,
não me perturbar com a insignificância dos velhos
O caruncho os abastece
de paciência e destruição
A vida não é isto
que apregoam. Repito: a vida não
é isto com que douram
os burocratas da morte
Esse odor de almas
fétidas, que por ali brilhassem
coroados pântanos.
A vida não é antípoda da morte
A vida não é uma
pauta vazia onde as traças e o sorriso
dos velhos prosperam.
Tenho direitos a reclamar
perante a lei dos
velhos. Não me intimidarei com
o seu esgar. Nem
consentirei que me espreitem por trás
dos olhos gretados,
lume algum tentando estancar
o rio de carunchos
e os outros afluentes da morte
Faço o que posso
para escapar à sedução
da mentira. Os velhos me
advertem da legenda
de vermes embutida no verde. Faço
o que posso para
não renegar a alma, para trazê-la
esculpida em mim,
junto o seu brasão de mistério. Os
velhos me perturbam
com tamanha ostentação. Têm
vísceras listradas
de esplendor e desfraldam problemas
sobre uma catedral
de rotinas. Nas mãos de ossos reluz
uma cicatriz de palavras.
Onde pasce a alma é o sol que se
introduz nas dobras
das tuas pernas e no húmus das tuas
pestanas. Onde pasce
a alma põe-se a palma. Mas ninguém
adivinha o gosto
desse contorno de fêmea mergulhado em
lume e cristal
ANTIODE EM CLAVE DE SOL (2)
Os velhos prosperam
em solidão e em solidão
restauram os seus
caminhos. Com os mesmos caminhos por
onde voltarão a passar
outras sombras de velhos. Alguns
escurecidos pelo
brasão da fome e pelo cansaço, pelo
silêncio que ficou
sem resposta. Os velhos entranhados
no ladrilho e nas
paredes das catedrais. Os velhos
à espera de que os
vitrais acesos, por ali brilhassem
coroados pântanos.
Os velhos, de pergaminho em riste,
investem contra Deus,
enquanto as estátuas reverdecem
Ritmo de água prisioneira
querendo escapar de dentro
O outro ritmo, aquele
que rege os vivos e os mortos os pósteros e os póstumos
ninguém jamais o
sentiu como se vindo à tona
ninguém jamais o
teve ao pé de si feito um cão repleto
a não ser aqueles
que dormem num casulo de lágrimas
O outro ritmo, aquele
que acende o lume das coisas
nasce da alma guardada,
da alma encruzilhada de signos
onde palavra alguma
prospera. O outro ritmo, aquele
que os velhos não
sabem que é ritmo, comanda o pastoreio
dos mortos. O mundo
não é esse simulacro de ovações
de que se doura a
pantomima dos néscios. Os velhos
e os néscios deitam
sabedoria pelo nariz. Mas ignoram
que o mundo não são
as palavras e seu luminoso desafio,
Os velhos mistificam
o sonho. Húmus de
que as estátuas reverdecem. Onipre-
sença e estandarte
dos mortos. Os velhos nos oprimem
sob o peso do seu
hálito. A eternidade cuja raiz mergulha
na alma à procura
da flor. Brasa que é brisa ao reluzir da
morte. Ninguém resiste
ao temporal de palavras que
assola o universo.
Eu não sou eu. Sou o outro que rege
uma orquestra de
sonho de dentro de mim. Eis-me no
umbral onde se questionam
vísceras encharcadas de
sonho. Os velhos
deliberam enquanto o caruncho prospera
no pedestal de Deus.
Poucos os que veem a eternidade
do que se rodeiam.
Pilhas inteiras de laudas
ameaçam sufocar o
mundo. A ferocidade do s velhos
apregoa sabedoria
pelo nariz. O universo à deriva uma
espiral de problemas.
Deus é o vértice. Mas os velhos
prosperam em silêncio.
Simplesmente prosperam e
trabalham na ordenação
do caos. O absurdo da vida os
converte em paladinos
de si mesmos. Conheço pelo cheiro
a alma desses passos,
o ritmo desses passos, a arquitetura
que se desenha nesses
passos. A ternura me sufoca
como uma rajada de
sangue. Mas continuarei vigilante
contra o impudor
dos velhos. Agora, pelos caminhos
do mundo, passa uma
orquestra de andrajos. Alguns sonhos soçobram, outros
vêm à tona da alma,
assim barcos impelidos pelas águas.
Não obstante os velhos
prosperam, a plenitude
irrigada pelo húmus
do seu hálito. Do fundo dos sepulcros
de cimento eles cortejam
as multidões encharcadas
de fantasia e pobreza.
As maiores ambições de um homem
se reduzem a migalhas
de trigo. Apenas o sonho
não se tinge de sangue,
não mergulha a cabeça no charco
Os velhos contudo
prosperam. Desdenham de ti e de mim
Os velhos enrodilhados
no seu testamento de códigos
O riso dos velhos
abala os fundamentos do sonho
e ao fel que deles
emana se evapora a essência da alma.
Os velhos te observam
Algum dia eles acordarão
do mergulho para refundir
as suas leis e ordenar
mais uma vez que se cumpra a rotina
O jogo dos velhos
é o jogo das palavras. Cada palavra
é uma tentativa de
ressurreição para os velhos
A vida contudo escapa
rumo ao lume do húmus
A vida caminha para
a organização da morte. A alma
do homem é a alma
do húmus. Algum dia os velhos
estalarão nos sepulcros,
rebelados contra a ordenação do caos
Algum dia zumbirá
na cova outra estação de ternura
A primavera aprisionada
em cada folha. Mas de repente
o esplendor dos velhos
mergulha num firmamento de lápides
ANTIODE EM CLAVE DE SOL (3)
Dei-te amor e desse
combate de sonho escapei
andrajoso. Ó mentira
do amor, ternura tantas vezes
consentida. A morte
investe contra o sonho. Nada
mais resta do cristal
em que mergulhei as franjas
da memória, além
desse cansaço de mil noites
de consentimento
e combate. Memória é o que me escapou
dos afluentes do
teu corpo, além desse mistério
de douradas garras
que em teu ser se fez penugem
Memória é o que me
restou das mil mortes em que
naufraguei, além
desse carregamento de solidão que me pesa na alma
Dei-te amor e desse
combate de sonho escapei
dilacerado. Tudo
que tenho é esse rio de espanto
que me escorre dos
ombros. Talvez esse esplendor
de andrajos que me
identifica perante a luz dos mortos
Tudo que tenho é
esse barco carregado de apelos
que te singra em
marés de ternura. Tudo que tenho
é essa lanhadura
de signos que me sustenta
a alma. Esse estremecimento
de mortos vingativos
e essa ferida de
apelos que se nutre de mim
Tudo que tenho é
este sonho arrastado ao cadafalso esse mistério que a vida
me recusa, essa saudade
que os mortos me arrebatam
é esse resto de paz
que me escapou do mergulho
em teu ser, desse
naufrágio nas profundezas da alegria
Tudo que tenho é
uma espada de orvalho para o combate
da morte. Tudo que
tenho é esse desafio de esperas
com que me vingo
do silêncio de Deus. Tudo que tenho
é esse desespero
de emergir, de sacudir bem alto
o pólen de outrora,
de resplandecer entre árvores
encharcadas de seiva,
de ordenar que a primavera
do teu corpo se alastre
sobre as mil faces da morte
Tudo que tenho é
esse diadema de solidão
com que me coroei
para o combate do sonho
Esse punhal de palavras
com que me defendo de mim
Tudo que tenho é
essa ilusão em pedaços
Tudo que tenho é
tudo que não tenho. O céu
e o inferno e todas
as legiões de arcanjos
paladinos. Tudo que
tenho é esse condado
de testemunhos que
me impelem para o fundo do charco
Tudo que tenho é
o charco e dentro dele
um sonho maior do
que Deus. Um sonho rodeado de muralhas
a catedral e o ícone.
Dei-te amor e isso é tudo
que tenho maior do
que a eternidade. Maior foi
o dia em que a minha
alma mergulhou no charco
e dele saiu escorrendo
sangue uma cicatriz
de estrelas. Maior
o dia em que o charco agasalhou
os mortos expulsos
de ti e de mim. Os nossos mortos
milhares deles perseguidos
pela alma do húmus
Tudo que tenho é
essa primavera de zumbidos que me levanta do fundo
do charco. E essa
luz de soluços que escapando da alma
do charco, investe
contra o perfil dos mortos. Tudo
que tenho é essa
garra de homem com que me aferro
à vida. Os mortos
me andam à deriva, e esse pântano
que de repente se
ilumina é a alma do húmus
Tudo que tenho é
tudo que não tenho. Levarei para
o fundo do charco
esse momento de lucidez que
me puseste no ombro.
O homem é apenas o sonho
que soçobra. Apenas
o indicio dourado que permanece
no fundo do charco.
O homem é talvez a garra que se
prende ao céu para
não apodrecer no fundo do charco
Cuida-se que a vida
é apenas estar com os olhos
abertos e mergulhar
no tempo sem contudo
perder o gosto da
solidão
o calendário e os
cabelos
Cuida-se que todo
dia é tarde demais
para que a morte
não nos encontre obstinados
Cuida-se que diariamente
o acaso recria notícias
que cavalos são mortos
a golpes de heliotrópios
que peixes são convertidos
em tochas
que lagartas monumentais
reinventam a fotossíntese
que imponderáveis
meninos e seu hálito
passam de velocípede
sob o nariz de Deus
O APRENDIZ DE ETERNIDADE
Pela manhã o coração
mergulha
numa espiral de enigmas
Pestanas de orvalho
reluzem
com reverberações
cítricas
Dedos de asas codificam
a nomenclatura de
Deus
emergindo de claridades
sem vértebras
Pisas o mundo em
derredor
contido na espessura
dum verme
A eternidade se elabora
como um tecido de
malha
Atiras a face à brisa
de insuspeitadas
palavras
O sortilégio do anjo
te acompanha
entre seres incautos
enquanto espedaças
entre os dedos
o invisível contorno
da solidão
Sabes que é preciso
agarrar
a fímbria do tempo
Sabes que é impossível
recompor
a antiga imagem do
menino
desamparado às potências
do êxtase
Sabes que a duração
do momento
é apenas um sinal
na engrenagem de
soluços
que nos esmaga trigo
de Deus.
Na alma do nordestino
soluça um riacho
de águas traiçoeiras
que fogem para o
mar...
Um sol de úlceras
desintegra a paisagem.
E o céu andrajoso
descobre
a musculatura de
estrelas.
Súbito sobem da terra
claridades intrínsecas.
E uma luz de ossadas
pulveriza o esqueleto
dos caminhos.
Os homens não são
homens:
são restos dum pesadelo
de Deus.
As árvores não são
árvores:
são braços esgalhados
como vértebras.
O sol é um histrião
que enlouqueceu na
ribalta.
Um povo de fantasmas
com seu punhal de
lágrimas.
O verso é um braço
impotente
para ajudar os aflitos.
Preciso escrever
na terra
uma canção de legumes.
Na alma do nordestino
chove artificial
sob o nariz de Deus.
No chão prosperam
mortos autênticos.
OS CAVALOS E OS MORTOS
Cedo me rodeei
das muitas presenças
da morte
cedo as encontrei
entre os meus brinquedos
e palavras guardadas
na memória
Cedo me coroei
da penugem dos mortos
eles me perseguiam
com seu olho cínico
que eu voltava de
apascentar os cavalos
Os cavalos me afastaram
dos mortos
o verde vertente
dos cavalos
afugentou o lume
dos mortos
e o tempo desfez
o resto
ELEGIA
a tarde caiu peluda
por cima da metáfora
primavera de obuses
fez emergente a aurora
arroz de pólvora
e chumbo
prospera na paisagem
sob uma aurora de
gumes
a fumegante chávena
a morte desfaz o
espesso
dos soldados e das
facas
a tarde caiu peluda
sobre a garupa das
vacas
a morte em tudo inserida
(no cabelo e nas
faces)
a morte guardada
insípida
no coração de biafra
a morte como um escudo
fundido no sobressalto
morte de gás e de
náilon
no vinco das alpercatas
a morte embrulhada
em napa
papel celofane e
lacre
a morte feito em
prenúncio
de solidão em vermelho
vazios estão os campos
de espigas e não
de espadas
ao longe deus em
desuso
e um temporal de
espingardas
noites de sangue
e peritos
céu salpicado de
facas
clarão de negros
aflitos
sobre a fogueira
dos lagos
biafra sem paz na
torre
biafra em medo inserida
clarão de negros
que escorre
por cima da nossa
vida
Enquanto dormes
o caracol refaz a
encruzilhada
sob a correnteza
das folhas
o leopardo fareja
os antílopes
o silêncio te arranha
como uma túnica de palha
os eventos passeiam
sobre o teu corpo
o acaso descose os
teus melhores anseios
a solidão se cumpre
na tua boca
Enquanto dormes envelheces
vertiginosamente
envelheces
o mundo envelhece
a terra envelhece
o céu envelhece
e os anjos mudam
de nome
OS MORTOS AZUIS
João cor de betume
do que mais se ocupava
não era desse ofício
de ser coisa entre
as coisas
nem de aprender o
vento
canção dos ancestrais
nem de fumar cachimbo
para espantar tristezas
dos olhos africanos
nem de enrolar distâncias
no fuso dos tamancos
nem de plantar suspiros
na cova do seu amo.
João cor de betume
do que mais se ocupava
além do arar constante
hectares de solidão
era de apascentar
os seus mortos azuis.
*****
Edição preparada
por Floriano Martins. Página ilustrada com obras de Arthur Boyd (Austrália, 1920-1999), artista convidado
da presente edição.
*****
Agulha Revista de Cultura
Número 122 | Novembro de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO
MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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