O
pássaro é um pedaço de seu voo
Há
o voo do pássaro e o outro lado do voo
O
ar é um pedaço do voo
é
o outro lado do ar
O
ar voa no pássaro
o
pássaro é o outro lado do voo
As
asas são o voo do ar
O
pássaro é o outro lado do ar
O
ar sem pássaro voa
O
pássaro pousa no ar
O
pássaro é o pouso do ar
A
morte do pássaro no ar
é
o outro lado de seu voo
O
pássaro morto é seu voo pousado na morte
SONETO PARA LEONARDO
É chiaro e scuro este desejo. É
oscuro revelá-lo por imagem
que
não limite tudo o que se vê
a
meros exercícios de paisagem
É chiaro e scuro este desejo. É
chiaro captar sua surpresa
ante
a manhã veloz que não prevê
os
ventos e os frutos pondo a mesa
Vedere da ques'angolo é oscuro
pois
quando a vida não se imobiliza
o
que é presente torna-se futuro
Então
a sombra é que projeta o muro
e
que dessangra a luz e a cicatriza
perché vedere é sempre chiaroscuro
O
meu amigo via nos pardais
mais
do que via a sombra passageira
Cingir-se
a vida a mínimos plurais
para
não ser dos ritos prisioneira
Por
isso parecerem tão iguais
e
o mundo não ser mais do que clareira
e
ser a fome sempre mais voraz
porque
é voraz a vida quando inteira
O
meu amigo amava estes pardais
que
agasalhava em fogo de lareira
E
como são as coisas naturais
são
naturais as coisas verdadeiras
Viver
é uma estratégia de pardais
é
se buscar nas perdas derradeiras
APENAS O QUE DOU NÃO É PERDIDO
A Floriano Martins
Apenas
o que dou não é perdido
o
que estiver à mesa será tudo
Brindemos
ao convívio consentido
até
que a solidão me torne mudo
Do
que recolho faço bom partido
herbário
de poções originais
Para
quem tem a dor por aldeído
as
ervas mais amargas são banais
Até
perder me faz contentamento
pois
o que sei e fiz trouxe da ausência
e
refazer é meu melhor invento
Ao
mais amado enfim dobrem os sinos
pois
é viver ardil e inocência
e
do que amamos somos assassinos
O AMOR PARTIU EM BUSCA DOS ESPELHOS
O
amor partiu em busca dos espelhos
Narciso
de seu ego de cristal
seguiu
a rota avessa dos conselhos
e
quase fez-se ícone de sal
Então
o amor encomendou as sedas
por
não poder encomendar as velas
e
fez do mar um céu de labaredas
e
fez do céu um mar de caravelas
Capturou
o tempo por astúcia
reinventado
magos surreais
que
aprisionou em ursos de pelúcia
Um
dia quis dar forma a seus mistérios
elaborou
poemas musicais
e
dividiu-se em quatro cantos sérios
A
vida não caldou a pera amarga
e
o que era amargo fez-se feio e frio
e
o frio se lançou como quem crava
seu
último punhal contra o vazio
Para
cingir o que era movimento
a
pétalas avessas de rancor
a
vida recusou dar fala ao vento
e
fez da ira rio sem rumor
e
fez a febre arder sem rebeldia
porquanto
vivo o corpo em desamor
é
ânsia que devora o que não cria
A
quem faltar a vida em provisão
possa
fazer conluio com a dor:
a
dor tem seu consolo a vida não
A VOZ E O CANTO
Não
sabe a ansiedade ser pequena
nem
sabe ser estigma ou virtude
o
quanto mais intensa mais é plena
o
quando mais é plena mais é rude
Não
sabe a ansiedade a que convenha
porque
se lança a abismo que não mede
e
faz-se fogo antes que seja lenha
e
faz-se fonte antes que tenha sede
É
ansioso o amor posto em cautela
mas
à ansiedade tem de ser esquivo
porque
não pode escravizar-se dela
Decerto
o amor é mais não sendo tanto
pois
se a ansiedade diz: "Aqui eu vivo"
o
amor lhe contrapõe: "É onde canto"
ELEGIAS BRANCAS
1.
Não
me traiu à palavra
ao
ansioso desejo
em
poemas radicais
anunciar
tua gênese
pois
nem a condição
de
iguais e diferentes
levou-me
a emudecer
a
ira de teus dias
E
no chão da aventura
amargaram
teus frutos
(foi-se
a inocência)
Voltei
para o caos:
meu
pomar é morada
da
perversa beleza
2.
Em
rudes invernos
íntimos
e cúmplices
a
avó e o tempo
trabalharam
a lã
Por
serem constantes
cumpriram
novelos
de
limpo enxoval
pelo
prazer das mãos
E
então se partiram
deixando
na sala
este
silêncio branco
e
nos olhos do gato
a
memória da chama
que
não sopra o vento
A Francisco Carvalho
Quando
os lobos procuram seus pastores
na
aciaria de seus territórios
incendeiam
seus deuses protetores
para
adotar emblemas transitórios
Se
estranhas te parecem tais figuras
se
estranho o amor que move estas matilhas
tamanha
é a amplitude das clausuras
que
a solidão carece de partilhas
Se
teus sermões revelam-se profanos
a
quem a morte é menos do que nome
é
porque John não é pastor de Donne
mas
lobo que se ilude nos espelhos
onde
as escaras despem-se dos panos
(estigmas
de lobos são vermelhos)
O ÚLTIMO DA TRIBO
O
que fazer o último da tribo?
Reivindicar
o luto do extermínio
ou
inumar-se no fogo da saga?
Abandonar-se
em segredo
em
pomares escuros?
Ceifar
o figo ao coalho da manhã?
Tatuar
o sonho na pedra
para
que ambos se lembrem
sonho
e
pedra?
O
que fazer o último da tribo?
Tornar-se
a alegoria dos pajés
trocando
a ira pela fúria a esmo?
Ou
matar a si mesmo?
*****
Edição preparada
por Floriano Martins. Página ilustrada com obras de Arthur Boyd (Austrália, 1920-1999), artista convidado
da presente edição.
*****
Agulha Revista de Cultura
Número 122 | Novembro de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO
MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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