quinta-feira, 1 de novembro de 2018

POEMAS DE SÉRGIO CAMPOS


PÁSSARO

O pássaro é um pedaço de seu voo
Há o voo do pássaro e o outro lado do voo
O ar é um pedaço do voo
é o outro lado do ar

O ar voa no pássaro
o pássaro é o outro lado do voo
As asas são o voo do ar
O pássaro é o outro lado do ar

O ar sem pássaro voa
O pássaro pousa no ar
O pássaro é o pouso do ar

A morte do pássaro no ar
é o outro lado de seu voo

O pássaro morto é seu voo pousado na morte


SONETO PARA LEONARDO

É chiaro e scuro este desejo. É
oscuro revelá-lo por imagem
que não limite tudo o que se vê
a meros exercícios de paisagem
É chiaro e scuro este desejo. É
chiaro captar sua surpresa
ante a manhã veloz que não prevê
os ventos e os frutos pondo a mesa
Vedere da ques'angolo é oscuro
pois quando a vida não se imobiliza
o que é presente torna-se futuro
Então a sombra é que projeta o muro
e que dessangra a luz e a cicatriza
perché vedere é sempre chiaroscuro


CANÇÃO DO AMIGO

O meu amigo via nos pardais
mais do que via a sombra passageira
Cingir-se a vida a mínimos plurais
para não ser dos ritos prisioneira
Por isso parecerem tão iguais
e o mundo não ser mais do que clareira
e ser a fome sempre mais voraz
porque é voraz a vida quando inteira

O meu amigo amava estes pardais
que agasalhava em fogo de lareira
E como são as coisas naturais
são naturais as coisas verdadeiras

Viver é uma estratégia de pardais
é se buscar nas perdas derradeiras


APENAS O QUE DOU NÃO É PERDIDO

A Floriano Martins

Apenas o que dou não é perdido
o que estiver à mesa será tudo
Brindemos ao convívio consentido
até que a solidão me torne mudo
Do que recolho faço bom partido
herbário de poções originais
Para quem tem a dor por aldeído
as ervas mais amargas são banais
Até perder me faz contentamento
pois o que sei e fiz trouxe da ausência
e refazer é meu melhor invento
Ao mais amado enfim dobrem os sinos
pois é viver ardil e inocência
e do que amamos somos assassinos


O AMOR PARTIU EM BUSCA DOS ESPELHOS

O amor partiu em busca dos espelhos
Narciso de seu ego de cristal
seguiu a rota avessa dos conselhos
e quase fez-se ícone de sal
Então o amor encomendou as sedas
por não poder encomendar as velas
e fez do mar um céu de labaredas
e fez do céu um mar de caravelas
Capturou o tempo por astúcia
reinventado magos surreais
que aprisionou em ursos de pelúcia
Um dia quis dar forma a seus mistérios
elaborou poemas musicais
e dividiu-se em quatro cantos sérios


VÉSPERAS

A vida não caldou a pera amarga
e o que era amargo fez-se feio e frio
e o frio se lançou como quem crava
seu último punhal contra o vazio

Para cingir o que era movimento
a pétalas avessas de rancor
a vida recusou dar fala ao vento
e fez da ira rio sem rumor
e fez a febre arder sem rebeldia
porquanto vivo o corpo em desamor
é ânsia que devora o que não cria

A quem faltar a vida em provisão
possa fazer conluio com a dor:
a dor tem seu consolo   a vida não 


A VOZ E O CANTO

Não sabe a ansiedade ser pequena
nem sabe ser estigma ou virtude
o quanto mais intensa mais é plena
o quando mais é plena mais é rude

Não sabe a ansiedade a que convenha
porque se lança a abismo que não mede
e faz-se fogo antes que seja lenha
e faz-se fonte antes que tenha sede

É ansioso o amor posto em cautela
mas à ansiedade tem de ser esquivo
porque não pode escravizar-se dela

Decerto o amor é mais não sendo tanto
pois se a ansiedade diz: "Aqui eu vivo"
o amor lhe contrapõe: "É onde canto"


ELEGIAS BRANCAS

1.

Não me traiu à palavra
ao ansioso desejo
em poemas radicais
anunciar tua gênese

pois nem a condição
de iguais e diferentes
levou-me a emudecer
a ira de teus dias

E no chão da aventura
amargaram teus frutos
(foi-se a inocência)

Voltei para o caos:
meu pomar é morada
da perversa beleza

2.

Em rudes invernos
íntimos e cúmplices
a avó e o tempo
trabalharam a lã

Por serem constantes
cumpriram novelos
de limpo enxoval
pelo prazer das mãos

E então se partiram
deixando na sala
este silêncio branco

e nos olhos do gato
a memória da chama
que não sopra o vento


TO DONNE

A Francisco Carvalho

Quando os lobos procuram seus pastores
na aciaria de seus territórios
incendeiam seus deuses protetores
para adotar emblemas transitórios

Se estranhas te parecem tais figuras
se estranho o amor que move estas matilhas
tamanha é a amplitude das clausuras
que a solidão carece de partilhas

Se teus sermões revelam-se profanos
a quem a morte é menos do que nome
é porque John não é pastor de Donne
mas lobo que se ilude nos espelhos

onde as escaras despem-se dos panos
(estigmas de lobos são vermelhos)


O ÚLTIMO DA TRIBO

O que fazer o último da tribo?
Reivindicar o luto do extermínio
ou inumar-se no fogo da saga?

Abandonar-se em segredo
em pomares escuros?
Ceifar o figo ao coalho da manhã?

Tatuar o sonho na pedra
para que ambos se lembrem
                                               sonho
                                               e pedra?

O que fazer o último da tribo?
Tornar-se a alegoria dos pajés
trocando a ira pela fúria a esmo?

                                               Ou matar a si mesmo?


*****

Edição preparada por Floriano Martins. Página ilustrada com obras de Arthur Boyd (Austrália, 1920-1999), artista convidado da presente edição.


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Agulha Revista de Cultura
Número 122 | Novembro de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES



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