De pedra ser.
Da pedra ter
o duro desejo de
durar.
Passem as legiões
com seus ossos expostos.
Chorem os velhos
com casacos de naftalina.
A nave branca chega
ao porto
e tinge de vinho
o azul do mar.
O maciço de rocha,
de costas para a
cidade
sete vezes destruída,
celebra o silêncio.
A pedra cala
o que nela dói.
FIAPOS
Para José Paulo Paes
Sei que sei
não sei bem o quê.
Saber não revelado,
ainda envolto em
membrana de placenta.
Lembro-me de que
preciso
lembrar de uma coisa
que não deveria ser
esquecida.
Lembrar de quê?
De um território
que se espraia
em sua mudez de azul?
De uma palavra soprada
em tempos de antes
de eu nascer,
que na tarefa de
viver
caiu no esquecimento?
Num lapso, às vezes,
parece que me lembro
e a lembrança passa
sem que fique registro.
A luz de Apolo
roça minha cabeça
sem que arrebatá-la
eu possa.
Por ela, esmolo.
Rendo sacrifícios.
Ignora-me.
Vai-se embora
com suas chispas.
Ficam fiapos,
cacos, esboços.
Logo, desmemoriado,
quedo-me cego
e abandonado.
Ao ferir
com a tesoura
a haste
da manga,
escorre
o líquido,
visco
oloroso
prenunciando
nas ventas
o doce gozo.
Antecipação
do paraíso
na tarde calorenta
do gelado
suco de manga
deslizando
na garganta.
O
GRITO
O porco guincha
e sob a pata dianteira
sai a golfada de sangue
que enche a bacia.
Horas depois,
pronto o chouriço,
comemos o sangue preto,
as tripas, o grito.
OSTRAS
A ostra
e a aspereza
de sua crosta.
O acúmulo
de craca
nas rugas
da carapaça.
O cheiro podre
de mangue
entranha-se nas digitais
e no tecido das narinas.
Lembram ao homem
seu invólucro de lama.
A ostra
é metade pedra,
calcárias escaras
brancas que se abrem
aos golpes da faca.
Por fora, objeto
coberto por perebas.
Por dentro, fêmea
líquida em leito
de nácar.
Trêmula rosa,
íntima e recém-nascida,
envolta em gosma.
A ostra
se fecha
e na sua
caixa tosca
purifica-se,
protege-se
do lodo.
Oculta,
eleva
sua carne
ao limite
da sólida
pérola.
SIMULACROS
Para Christina Menezes de Azevedo
Senhoras e senhores,
o circo já ergueu sua lona.
Vêm o prefeito, a
beldade, as mulheres da zona.
Todos se divertem
com o espetáculo do ilusório.
Está aberto o reino
do precário e do provisório.
Rufam todos os tambores,
abrem-se as cortinas.
Nossa trupe mambembe
exibe suas dores e sinas.
A orquestra toca
Bolero: o ritmo vai crescendo.
O fraque do maestro
tem no braço um remendo.
Eis Crystal Kimberley,
a rainha do strip-tease.
Saiu do sertão do
Sergipe, de nome Wandernise.
A mulher-rã, contorcionista
vinda do circo russo,
Depila pernas e sovacos,
mas se esquece do buço.
Com vocês, uma feroz
leoa da savana africana.
Barriga vazia, não
come gato há uma semana.
A pássara Tatiana,
trapezista bela e impávida,
Esconde do amante
domador que está grávida.
Anaïs, índia guarani,
que é exímia equilibrista,
Carece de vitaminas
e de ir urgente ao dentista.
Alegria da criançada,
o nosso palhaço Arrebita,
No trailer sujo,
teve macarrão e ovo na marmita.
De noiva, vai-se
casar uma anã, loira oxigenada.
Que graça! Puxam-lhe
o vestido e ela corre pelada.
Aplausos para o salto
mortal de sonho e pobreza.
Onde uns vêem o belo,
outros enxergam a tristeza.
Lembro-te mata,
tenda de folhas,
ninhal de minas,
casulo de sombras,
alcova de brotos,
renda de luzes,
vertigem de avencas,
friagem de sapos,
labirinto de cipós,
manto de limos,
frescor de cambraias,
grafias de cascas,
acridez de sumos,
açúcar de flores.
Recorro a todos os nomes
sem nunca recuperar
o frêmito de espanto,
o susto da criança
Inaugurando a mata.
ORAÇÃO NATURAL
Fique atento
ao ritmo,
aos movimentos
do peixe no anzol.
Fique atento
às falas
das pessoas
que só dizem
o necessário.
Fique atento
aos sulcos
de sal
de sua face.
Fique atento
aos frutos tardios
que pendem
da memória.
Fique atento
às raízes
que se trançam
em seu coração.
A atenção:
forma natural
de oração.
Que ela chegue sem clarins ou trombetas,
entre como facho de luz
pelas gretas da janela
e atravesse o quarto
na sua claridade.
Que ela chegue
inesperada,
como a chuva
na tarde calorenta
e faça subir o odor
de poeira molhada.
Que ela chegue
e se deite ao meu lado,
sem que a perceba.
Que me lave
com água de fonte
e me cubra
com o bálsamo branco
do silêncio.
DUREZA DO INSTANTE
Um tapete de goiabas
estende-se sobre a grama.
Os jacintos em bloco
ergueram suas flores.
Poderia ser este o lugar.
Este o tempo do repouso.
Mas a roda dentada nunca para.
Mói o caramujo envolto em formigas.
Mói o cão içado do poço por um balde.
Mói os fios de cabelo de Anita
que protegem os pés de rosa.
Mói as rosas.
(Em direção ao rio,
lá vai a mulher com a pedra no bolso.
Lá está ele na cama
com os tubos no nariz.)
Há perfumes de jacintos
e goiabas vermelhas de outono.
Cada instante tem sua polpa
e no centro o áspero caroço.
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Edição preparada
por Floriano Martins. Página ilustrada com obras de Arthur Boyd (Austrália, 1920-1999), artista convidado
da presente edição.
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Agulha Revista de Cultura
Número 122 | Novembro de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO
MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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