[ DEZ POEMAS ]
PACIÊNCIA
(CARTA DE LAETIZIA A PAUL HÈRBERT
MUDADA À VONTADE DO ESCREVEDOR)
Estou triturada, contundida,
horripilantemente nimbosa.
Sinto-me como há dois mil anos, à beira
de um carcoma. Tudo calcina meus
melodramas, me degrada.
Teus beijos fizeram meu coração
panfletar
arrepios descaradamente.
Me descompassaram tanto!
Povoe-me,
pois esse amor jamais será hipotético.
Temos de nos eximir de qualquer
reticência
decorativa e amordaçada. Gostaria
de te ver acamado a essa ideia, de
saber
que minha imagem em vez de te furtar a
cor
te reconcilia com a vontade de perder
estas corcovas.
Tem de ser assim. Não podemos nos
contorcer
para sempre nessas saudades lactantes,
pois o desassombro que peregrina por
elas
é como um penhasco.
Trabalhe com os afogados, pensa em
outra coisa.
Tu,
que é tão indomável, procure um pouco
de verão nos sorvetes de napolitano.
Estou com poucos créditos. Me sentia
com bastante coriza em relação aos meus
projetos crucificados,
mas não posso me extraviar por nós
dois!
Tenho carregado tudo comigo,
mas me sinto uma velha falésia,
não me coligue mais com teus êxtases,
que me fazem maldizer as minhas
sonolências,
sem ver, no entanto,
que ainda não tomei banho hoje.
ENTREVISTA
COM O POETA
A –
Quais as cores da tua cidade?
B –
Azul, verde e ferrugem.
CORIFEU
DESEMPREGADO
O nababo estuda teologia, sentado no
confessionário abandonado da Igreja Matriz de Nossa Senhora dos Alagados.
Confabula ideias com as muriçocas, tentando assimilar o obituário de Maria
Madalena com o de Marilyn Monroe, mas acaba por ter sua mente obnubilada por um
homem com cara de cavalo que dança polca em sua consciência. O nababo conhece o
homem, sabe de sua forte afiliação com os ateístas, tenta se desvencilhar dos
passos da dança de compasso binário simples, mas o homem com cara de cavalo é
um exímio dançarino, assim como um charlatão competente que, ao fim de cada
compasso, murmurar alguma máxima ateia, como “a religião é um palimpsesto“ ou
“não acredito em deus por que nunca o vi na fila do pão”, tentando persuadir o
nababo a desistir de sua leitura e voltar-se para tarefas mais importantes como
degolar galinhas poedeiras ou polir sua armadura de obsidiana, ou, quem sabe
com sorte, convencê-lo a afiliar-se ao Partido Egrégio de Interesse Ateu.
“Será que arrisco escrever um edital de
contratação pra ver se alguma alma sã e sabia consegue interpolar uma
britadeira ou um viaduto no meu crânio e retirar esse chatonildo do meu juízo?”
No salão craniano do nababo esse
pensamento reverbera, mas não há qualquer indício de amedrontamento vindo por
parte do homem com cara de cavalo, o qual chamaremos a partir de agora de
Homenzinho Ateu com Cara de Cavalo. O nababo então sai da igreja, decisivo com
a ideia de desterrar o Homenzinho Ateu com Cara de Cavalo de sua cabeça, seja
como for, não importando a metodologia que seria utilizada para tais fins. Ele
atravessa trezes ruas demasiado alvadias para uma Segunda-Feira do Luto em
Quarentena, adentra em casa, prepara uma fornada de pães recheados de mirtilo e
prostra-se no lavabo, a enviar uma agulha em sua narina direita, tentando
alcançar o Homenzinho Ateu com Cara de Cavalo em seu crânio, capando sua língua
e deixando-o eunuco de fala. Contudo a agulha é muito pequena e o máximo de
efetividade que ela causa sobre o Homenzinho Ateu com Cara de Cavalo – ou, pra
encurtar mais ainda, chamemo-lo, de hora em hora, de Chatonildo — é assassinar
um bicho de pé que residia sobre o mindinho do pé esquerdo do condenado.
O nababo, ainda que abalado pela
coceira interna que a agulha causou em sua via respiratória, não desiste e põem
a dedicar-se totalmente a tarefa de calar a boca do Chatonildo, cancelando toda
a sua agenda de compromissos do dia, incluindo os serviços de massagem
tailandesa e o brunch com o atual
ministro do Carnaval Fora de Época, Luigi William Amanda Alves. O Chatonildo,
vulgo Homenzinho Ateu com Cara de Cavalo, parece não ter carnê nenhum para
pagar e começar a vergar o lombo do Nababo, com uma ladainha que diz mais ou
menos:
Por isso verboso eu sou.
Deus, nabobo, me deu o verbo
Atanazar-te eu então vou.
O nababo, destrambelhado, com toda a
sua compostura e pompa de autarquia municipalista já assanhada e apinhada de
carrapichos, decide aderir a métodos tidos pela crítica especializada em
expulsão de pessoinhas da cabeça como “demasiado pueris, chegando a atingir o
cimo desse suflê de desespero”. Põem sua dentadura especial para quando se é
necessário ser edaz, adquirindo uma carranca túrgida nas bochechas, e devora
toda a anteriormente mencionada fornada de pães de mirtilo e também a bandeja
que as sustentava, e logo após trucida um ecólogo que estava de visita em sua
casa e havia passado na cozinha para tomar um copo d’água, ingerindo com
requintes de troglodita, entre arrotos e ruídos glutões. O Chatonildo, sem
entender nada desse ímpeto de atitudes tonitruantes, descalça os seus
sapatinhos escarlates de dança e sai tropicando pelos salões cranianos do
nababo, escancarando portas, invadindo alcovas e celeiros, investigando todo o
á-é-i-ó-u que encontra, seja em canastras encrustadas de madrepérola ou bolos
de milhos empoeirados ou em opúsculos custodiados por garranchos e traças, na
tentativa de apaziguar os ânimos do hospedeiro cerebral.
Enquanto isso o abilolado nababo segue
realizando sua carnificina, amuando eletrodomésticos, fazendo-os prantear
miúdas faíscas de seus botões, musicando em uma ária os gritos de dor e súplica
vindo dos seus lacaios anões que tentam escapar sem sucesso em seus
velocípedes. Abduzindo e degustando de tudo com sua bocarra e seus quatrocentos
e quarenta e quatro dentes caninos roubados à força sem anestesia da arcada
dentária de lobos e ursos.
Já defecando de medo, o Chatonildo
senta-se em um quartinho escuro da cabeça do Nababo, perto do occipício, e põem
a chorar toda uma delegação de lágrimas arrependidas. Abriu todas as portas,
portais e portões possíveis naquela cachola, e nenhuma delas o levou a uma
justificativa plausível para aquele surto delirante do nabobo. Chegou apenas a
conclusão de que não havia divindade de pronto-socorro que pudesse medicar
aquele precipício de gente que havia se tornado o nababo. Então o Chatonildo,
dantes chamado de Homenzinho Ateu com Cara de Cavalo, suspira um vento pulmonar
demasiado triste, desenha nas costas de cada uma de suas mãos um crucifixo com
a tintura do seu medo obrado, e se põem a orar murmúrios pra quem quer que o
queira escutar, tornando-se assim o Homenzinho Agnóstico com Cara de Cavalo.
Ó, ‘cê ai, sei lá quem, sei lá aonde
Não sei onde mora nem onde se esconde
Mas rogo ajuda nessa hora carente
Pois não sei o que fazer com o demente
—
Esse onde alugo a cuca e sou ocupante
Abestalhou-se de vez, esse tratante,
E virou de repente um genocida
Nunca vi algo tão horrendo nessa vida
Quanto o que vejo agora nesse instante
Peço socorro encarecidamente
Pois tudo isso me é mirabolante
E não sei até quando aguento essa mente
Ó, ‘cê ai, sei lá quem, sei lá aonde
Não sei onde mora nem onde se esconde
Nem sei se existe ou se é mera fábula
Mas me ajuda pelo amor nessa preula!
Consequentemente o Partido Egrégio de
Interesse Ateu, ao captar em suas redes radioamadoras a oração psicotelefonada
vinda do Chatonildo, acaba promulgando a cassação dos seus sapatinhos
escarlates de dança e gerando um mandato, ordenando que o agora Homenzinho
Agnóstico com Cara de Cavalo fizesse suas malas e partisse para a residência
cefálica de qualquer agnóstico que lhe viesse a calhar.
Quando se conduzia para a saída mais
próxima da cabeça do nababo, resolveu sussurrar uma despedida em seu ouvido,
mas seu adeus nunca chegou ao destinatário, pois enquanto molhava seus lábios
de Chatonildo, um pombo teleguiado por ninguém mais ninguém menos do que Deus
surgiu rasgando as nuvens do céu e raptou o Homenzinho Agnóstico com Cara de
Cavalo para algum lugar celestial onde a linguagem não é requisitada para se
explicar o inexplicável.
NOTA: — A Segunda-Feira do Luto em Quarentena é o primeiro dia de uma
festividade não-religiosa de características fúnebres, clementes e elegíacas, o
Beijos de Imã, celebrada pelos crentes do Eletromagnetismo, residentes em N.S.
dos A. e circunvizinhanças. Na Segunda-Feira Luto em Quarentena a população
adepta do Eletromagnetismo arromba e invade casas, mansões e quitinetes da
população tida por eles como Pagãos, hereges que desacreditam no
Eletromagnetismo, e realizam diversas atividades recreativas, como por exemplo:
retirar da posse dos Pagãos quaisquer talismã ou balangandã que desperte alteza
neles para com os crentes, objetos como tamancos de acaju, vasos de floridas
hemorroidas e vales-refeições; desalourar os que carregam louros verdejantes em
seus cocurutos carecas; alquebrar a conta corrente dos sicários e sirigaitas,
e, a mais importante delas, que serve de
título para A Segunda-Feira do Luto em Quarentena: o encarceramento do Pagãos nas vias públicas,
impedindo-os de regressarem as suas casas, e o luto obrigatório durante todo o
dia, onde os Eletromagnetistas colorem os Pagãos com diversas tintas metálicas
e cromadas, fazendo-os passar vergonha ao transcorrer do dia inteiro, faça
chuva ou faça sol.
ENTRA
UM TORNEIRO MECÂNICO E UM ARISTOCRATA NUM BAR...
essa pátria de praças abandonadas.
que serve somente de criadouro aos
pombos & afagos furtados. os orquidários, entretanto, estão repletos de
dicionaristas vibrando pelo novo teorema que vem saindo nos jograis, que os
leva a crer que nossa língua é uma espécime de prima de segundo grau da língua
nativa das víboras. sim, nossas bisavós estavam certas quando a isso. sim,
nossa inevitável religião triplicou os requisitos quanto a escovação do paladar
celeste. agora uma amiga minha doou um rim para uma capela feita de taipa e
suor libidinoso e decidiu peregrinar por países glúteos, deixando todo seu
cabelo em um baú e uma carta dizendo que havia finalmente se encontrado e precisava
perder-se novamente.
essa pátria de pinacotecas desmatadas.
entrar nelas é como entrar na carcaça
de algum cetáceo morto, é como observar o esqueleto de uma constelação. aonde
deveriam haver pinturas existem arbustos surrealistas, folhas dadaístas,
troncos expressionistas, raízes barrocas. fotossíntese quadrimensional. frutos
com gosto de endorfina. a tessitura
desses dias não é bem o pedido de desculpas que os estudiosos vinham esperando,
continuam os alagamentos nas ilhas de codeína mas cessaram as sessões de
tortura aos albatrozes. enquanto isso um casebre se constrói sobre minha cabeça
e uma úlcera floresce no fundo do meu umbigo.
recheadas de bijuterias e dinossauros
de brinquedo. paredes incrustadas de
miçangas baratas, estegossauros de hortelã e amuletos órfãos. proibido garimpar
sem o auxílio de uma infância de serrotes. avisos desapaixonados dizem para
caminharmos com todo o cuidado para esquivar-se dos olhos de pitanga das
mulheres solitárias. preciso investigar cautelosamente a topografia do teu
peito, ver a correlação dele com meu sudário de catástrofes. talvez tenhamos
nos conhecido numa dessas festas do subconsciente enquanto dormíamos. talvez,
não sei. aeroportos são santuários aos descabidos. não tenho bagagem alguma
para despachar dessa pátria. hoje é nosso penúltimo dia de vida.
MEMÓRIA
À DERIVA SOBRE MOSCAS EM PUPILAS E CAIXAS DE PAPELÃO
Tem dias que viver é sanguinolento.
É imaginar um crânio de leão como
objeto
ferino, retrato ósseo do que antes fora
um rugido,
quando na verdade,
tal imagem nos remete à nossa própria
sanha.
É abrir um sangradouro na rua habitual
e seguir pelo descaminho que culmina em
nenhures.
É depredar o próprio sossego
afim de derrubar alvéolos
cristalizados.
É devorar um sarcoma no pequeno almoço.
Tem dias que acordar é azedume.
É se pegar desprevenido em um povoado
onde a álgebra não existe, onde os
numerais
não foram exportados e as coisas são
contadas
entre “pouco”, “algum” e “muito”.
É ser propositalmente sucinto, quando,
em nosso âmago, há um labirinto
que cresce e cresce, sem apólice de
seguro.
É prevalecer a regeneração das flechas
de cupido.
É não ter a serotonina dinamitada de
sal
e não entender que sim, seu cachorro
está morto
e sim, não conseguir chorar é mais
triste do que chorar.
Tem dias que existir é dormir coberto
por mortalhas.
AVENIDA, AVENIDA
Estamos viúvos daquelas
despedidas
Seculares e inditosas
Onde os braços eram
guindastes
E o peito de cada
camarada
era uma árvore condenada
pela saudade.
Daquela época
Restou somente uma
dormência
Engendrada nos coretos enciclopédias
e
carros-fortes.
Estamos órfãos,
desguarnecidos
porque todos andam a
fugir dessa terra
Sem deixar recados na
recepção.
Agora nada mais chega a
abalar esta floresta
De cabelos crespos e
frutas explosivas.
Não se ouvem mais hurras
Ou boiadas passeando
pelo café
Ou indecisos tomando o
bonde
Antes mesmo dos galos
descobrirem-se
Proprietários das
auroras ainda criança.
Ao cruzar essas ruas castradas
Vejo gente que aparenta
ter acordado
Em uma cama acolchoada de pedras
e arrependimentos.
Mulheres feias
Carregando no colo sua
prole truncada
E de caligrafia tão
paralítica.
Homens broncos
Abarrotados até a borda
De um olhar genocida.
Até mesmo os pardais e
os cães
Parecem estar tristes
Com a infestação de
gaiolas e canis
Em meios as próteses
dentárias.
Não sei se algum
perfume, se algum salmo
Iria validar meus pés
medianos
Sem que eu mordesse os
prédios
Pensando que fossem pão.
E por entre os escombros e o relincho
dos ignorantes
Sobra a sombra
Mas não o sopro.
Que varre a poeira do meu tronco
Que lustra os copos transparentes
Mas vazios
Aonde bebíamos néctar às sextas-feiras
E aonde entornávamos o medo
Em dias indefinidos.
Já não se pode mais dizer adeus
Sem que sejamos lúcidos demais
E algo comece a estrangular o destino.
O mesmo destino que antes tinha
Um revólver apontado
Para as nuvens que saiam do rebanho
E que agora anda curvo e descalço
Com unhas quilométricas
Sem saber que rumor usará
Como novo norte.
QUELONIOSAMENTE
aprendo a acordar
a língua arteriovenosa.
NÃO
HÁ CRIAÇÃO NEM MORTE PERANTE A POESIA:
Há somente a eterna adolescência, a
pirraça, a rapina.
É ouro que remenda o rosto de mármore de Apolo,
Figura tão devotada pelos extintos
puros-sangues,
Junto aos seus florilégios e liras
desatinadas.
Prefiro os iluminados sem sol, os
mestiços
Que catam relâmpagos, punhos, adagas
& caveiras
E os cimentam no crepúsculo de prédios
abandonados,
E os explodem em museus de arte sacra,
E os almoçam com conhaque misturado a
açucenas.
Deem coroas de cervo aos poetas
raquíticos.
Aos que ainda carregam o credo de terem
musas primogênitas,
Aos que ainda bradam ramerrões aos
nulos,
E enfeitem seus cornos com espelhos
retrovisores.
Quem sabe, qualquer dia desses, amanhã
talvez,
Não encontremos um corpo na porta da
nossa casa.
Um corpo sem sangue. Um corpo sem
linguagem.
Um corpo sem corpo de texto, mas com
uma linda aurora no rosto.
BRONCO
Me deram a alcunha de bruto, de
invernal, de chulo.
Premiaram a minha pessoa com uma coroa
de louros podres, serpeada de dentes de bicicleta,
espinhos roucos
& duplicatas de figurinhas já
desbotadas por Kronos.
Pintaram um retrato meu de tempos
outros,
e penduraram no pescoço de um baobá.
Não obstante a isso, no retrato meu
rosto é um ovo
e meu cabelo, macarrão parafuso. De
musgo
e reticências maquiaram meus olhos
e no reduto da boca
construíram um estábulo para minha
cavalaria de brisas.
E agora essa correspondência
invertebrada, entregue
por debaixo da minha porta, e que me
cavouca o âmago
feito broca — endurecido silêncio,
celestial diabólico —
e que derruba a sangria de uma tarde
nas minhas costas
e estropia meu sono hibernal.
Mas prefiro regressar à morada sem
qualquer réplica.
Prefiro regar meu colchão de mijo
& contar as albugens das unhas.
CIDADE
19XX
À
noite quando me deito
em
Maputo
não
preciso de rezar.
Já
sou herói.
Carlos Cardoso
Manhã, quando me acordas em N. Sra. dos
Alagados, teu silêncio é inefável. Levanto e digo Mãe, o café já tem açúcar? e
digo Pai, encontrou alguma moldura abandonada no lixão? Pergunto ao papagaio se
ele tem previsão do nascimento dos girassóis e beijo minha namorada como quem
vive sem saber se é verão ou agiota aquele que bater na porta.
Manhã, quando me acordas em N. Sra. dos
Alagados, vejo que gerações de carpas comem sementes de abóbora em teu ventre.
Lavo as mãos e os pés e saio à rua com a dispensa militar no bolso. Atravesso o
distrito sem ter assunto do que conversar com a paisagem. Escoro minha cabeça
na janela e fabrico pequenos silêncios que o bramido do ônibus insiste em
abocanhar, mastigar e engolir espalhafatosamente.
Manhã, quando me acordas em N. Sra. dos
Alagados, acordo sabendo que não me queres nutrido de louvaminhas. Por isso não
tenho Musa em meus contatos telefônicos e amo feito um cão que ama a sombra de
uma árvore num dia quente. De repente me vem um gosto na boca de café e
hortelã. Sangue e ferro às vezes. Depois um amargo de chão, uma viagem do
tamanho da respiração de um mar.
Manhã, quando me acordas em N. Sra. dos
Alagados, abro e fecho os olhos ainda deitado, e mando à merda os poetas
caducos e mando à merda os relógios com sede e mando à merda a penumbra que anoitece
sobre o peito. Lábios áridos de espelho e água outra que mana das tuas pernas.
Passa do meio-dia e não fuzilaram ninguém em praça pública. A policial ronda de
luzes vazias o quarteirão. Ouço falarem de um mitológico presidente esculpido
em ouro de tolo. Querem eles crucificar o fogo, tingir de ideais a flor,
rebocar abraços com uma betoneira. Não publico minhas saudades. Caminho às
ordens do meu medo. Atravesso a rua e tu, Manhã, se embrulha no horizonte e
mergulha no Longe.
Por isso, Coração, quando adormeço em
N. Sra. dos Alagados, te devolvo ao meu peito e só então rezo secretamente para
que amanhã a cidade amanheça perfeita desabitada.
[ TRÊS PERGUNTAS ]
FM | Poesia, amor, liberdade – a tríade
essencial do Surrealismo. De que maneira ela faz parte de tua vida e se integra
à tua criação?
VHA | Pergunta difícil essa. Difícil por ser
abrangente.
Não
gosto muito de usar a palavra poesia no meu cotidiano por ela me soar piegas,
saturada demais pelos novos poetastros dessa época, que usam ela a torto e a
direito.
Sinto
o mesmo pela palavra amor.
Dito
isso, prefiro falar sobre a palavra Surrealismo, e não sua tríade, já que essas
três palavras hoje tem um significado tão encharcado de lugar-comum que eu me
sentiria bobo por usar tais termos. Acho que o Surrealismo, a ideia que a
palavra Surrealismo traz, se entranha na minha vida quando eu vejo que a vida
pode ser mais fictícia, mais estapafúrdia que a própria ficção.
FM | Dentro e fora do país, entre vivos e
mortos, independente até mesmo da poesia, não apenas citando os nomes, mas
comentando os motivos, poderias referir algumas afinidades tuas na criação
artística?
VHA | Jack Spicer, Haroldo de Campos,
Antonio Pinto de Medeiros, Rothko.
FM | Tenho percebido que, sobretudo em
poetas nascidos a partir de 1980, há um renascimento na lírica brasileira, que
é tanto na densidade da escrita, quanto na definição de uma voz própria, quanto
no sentido de uma solidariedade explícita, sem que isto reflita a existência de
um movimento. O que observas a este respeito?
VHA | Acho que a contemporaneidade de certo
modo esgotou a voz própria. Tudo parece colagem, remontagem. E não enxergo isso
como algo ruim.
Sobre
os outros assuntos não sei o que pensar.
Ando
disperso quanto ao que meus colegas produzem faz algum tempo. Percebi que eu
fazia poemas sem estudar nada sobre poesia. Chegou uma hora que me sentir muito
fingidor e parei. Agora eu só leio. Vez por outra escrevo um ou outro verso,
nada demais.
[FOLHA DE VIDA]
Victor H. Azevedo (Rio Grande do Norte
1995). Poeta. Publicou diversos zines de poesia, e no ano passado publicou a
plaquete Cachorro Morto (2018,
munganga edições). Planeja algum dia lançar um livro intitulado “quem nunca
andou de ônibus não sabe o que é deserto”.
*****
EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO
1919-2019
Artista convidado: Enrique de Santiago
(Chile, 1961)
Agulha
Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número
126 | Janeiro de 2019
editor
geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor
assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo
& design | FLORIANO MARTINS
revisão
de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC
Edições © 2019
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