segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

1995 VICTOR H. AZEVEDO


[ DEZ POEMAS ]

PACIÊNCIA
(CARTA DE LAETIZIA A PAUL HÈRBERT MUDADA À VONTADE DO ESCREVEDOR)

Estou triturada, contundida,
horripilantemente nimbosa.
Sinto-me como há dois mil anos, à beira
de um carcoma. Tudo calcina meus melodramas, me degrada.
Teus beijos fizeram meu coração panfletar
arrepios descaradamente.
Me descompassaram tanto!
Povoe-me,
pois esse amor jamais será hipotético.
Temos de nos eximir de qualquer reticência
decorativa e amordaçada. Gostaria
de te ver acamado a essa ideia, de saber
que minha imagem em vez de te furtar a cor
te reconcilia com a vontade de perder estas corcovas.
Tem de ser assim. Não podemos nos contorcer
para sempre nessas saudades lactantes,
pois o desassombro que peregrina por elas
é como um penhasco.
Trabalhe com os afogados, pensa em outra coisa.
Tu,
que é tão indomável, procure um pouco
de verão nos sorvetes de napolitano.
Estou com poucos créditos. Me sentia
com bastante coriza em relação aos meus projetos crucificados,
mas não posso me extraviar por nós dois!
Tenho carregado tudo comigo,
mas me sinto uma velha falésia,
não me coligue mais com teus êxtases,
que me fazem maldizer as minhas sonolências,
sem ver, no entanto,
que ainda não tomei banho hoje.


ENTREVISTA COM O POETA

A – Quais as cores da tua cidade?
B ­– Azul, verde e ferrugem.


CORIFEU DESEMPREGADO

O nababo estuda teologia, sentado no confessionário abandonado da Igreja Matriz de Nossa Senhora dos Alagados. Confabula ideias com as muriçocas, tentando assimilar o obituário de Maria Madalena com o de Marilyn Monroe, mas acaba por ter sua mente obnubilada por um homem com cara de cavalo que dança polca em sua consciência. O nababo conhece o homem, sabe de sua forte afiliação com os ateístas, tenta se desvencilhar dos passos da dança de compasso binário simples, mas o homem com cara de cavalo é um exímio dançarino, assim como um charlatão competente que, ao fim de cada compasso, murmurar alguma máxima ateia, como “a religião é um palimpsesto“ ou “não acredito em deus por que nunca o vi na fila do pão”, tentando persuadir o nababo a desistir de sua leitura e voltar-se para tarefas mais importantes como degolar galinhas poedeiras ou polir sua armadura de obsidiana, ou, quem sabe com sorte, convencê-lo a afiliar-se ao Partido Egrégio de Interesse Ateu.
“Será que arrisco escrever um edital de contratação pra ver se alguma alma sã e sabia consegue interpolar uma britadeira ou um viaduto no meu crânio e retirar esse chatonildo do meu juízo?”
No salão craniano do nababo esse pensamento reverbera, mas não há qualquer indício de amedrontamento vindo por parte do homem com cara de cavalo, o qual chamaremos a partir de agora de Homenzinho Ateu com Cara de Cavalo. O nababo então sai da igreja, decisivo com a ideia de desterrar o Homenzinho Ateu com Cara de Cavalo de sua cabeça, seja como for, não importando a metodologia que seria utilizada para tais fins. Ele atravessa trezes ruas demasiado alvadias para uma Segunda-Feira do Luto em Quarentena, adentra em casa, prepara uma fornada de pães recheados de mirtilo e prostra-se no lavabo, a enviar uma agulha em sua narina direita, tentando alcançar o Homenzinho Ateu com Cara de Cavalo em seu crânio, capando sua língua e deixando-o eunuco de fala. Contudo a agulha é muito pequena e o máximo de efetividade que ela causa sobre o Homenzinho Ateu com Cara de Cavalo – ou, pra encurtar mais ainda, chamemo-lo, de hora em hora, de Chatonildo — é assassinar um bicho de pé que residia sobre o mindinho do pé esquerdo do condenado.
O nababo, ainda que abalado pela coceira interna que a agulha causou em sua via respiratória, não desiste e põem a dedicar-se totalmente a tarefa de calar a boca do Chatonildo, cancelando toda a sua agenda de compromissos do dia, incluindo os serviços de massagem tailandesa e o brunch com o atual ministro do Carnaval Fora de Época, Luigi William Amanda Alves. O Chatonildo, vulgo Homenzinho Ateu com Cara de Cavalo, parece não ter carnê nenhum para pagar e começar a vergar o lombo do Nababo, com uma ladainha que diz mais ou menos:

Deus, nababo, me deu o verbo
Por isso verboso eu sou.
Deus, nabobo, me deu o verbo
Atanazar-te eu então vou.

O nababo, destrambelhado, com toda a sua compostura e pompa de autarquia municipalista já assanhada e apinhada de carrapichos, decide aderir a métodos tidos pela crítica especializada em expulsão de pessoinhas da cabeça como “demasiado pueris, chegando a atingir o cimo desse suflê de desespero”. Põem sua dentadura especial para quando se é necessário ser edaz, adquirindo uma carranca túrgida nas bochechas, e devora toda a anteriormente mencionada fornada de pães de mirtilo e também a bandeja que as sustentava, e logo após trucida um ecólogo que estava de visita em sua casa e havia passado na cozinha para tomar um copo d’água, ingerindo com requintes de troglodita, entre arrotos e ruídos glutões. O Chatonildo, sem entender nada desse ímpeto de atitudes tonitruantes, descalça os seus sapatinhos escarlates de dança e sai tropicando pelos salões cranianos do nababo, escancarando portas, invadindo alcovas e celeiros, investigando todo o á-é-i-ó-u que encontra, seja em canastras encrustadas de madrepérola ou bolos de milhos empoeirados ou em opúsculos custodiados por garranchos e traças, na tentativa de apaziguar os ânimos do hospedeiro cerebral.
Enquanto isso o abilolado nababo segue realizando sua carnificina, amuando eletrodomésticos, fazendo-os prantear miúdas faíscas de seus botões, musicando em uma ária os gritos de dor e súplica vindo dos seus lacaios anões que tentam escapar sem sucesso em seus velocípedes. Abduzindo e degustando de tudo com sua bocarra e seus quatrocentos e quarenta e quatro dentes caninos roubados à força sem anestesia da arcada dentária de lobos e ursos.
Já defecando de medo, o Chatonildo senta-se em um quartinho escuro da cabeça do Nababo, perto do occipício, e põem a chorar toda uma delegação de lágrimas arrependidas. Abriu todas as portas, portais e portões possíveis naquela cachola, e nenhuma delas o levou a uma justificativa plausível para aquele surto delirante do nabobo. Chegou apenas a conclusão de que não havia divindade de pronto-socorro que pudesse medicar aquele precipício de gente que havia se tornado o nababo. Então o Chatonildo, dantes chamado de Homenzinho Ateu com Cara de Cavalo, suspira um vento pulmonar demasiado triste, desenha nas costas de cada uma de suas mãos um crucifixo com a tintura do seu medo obrado, e se põem a orar murmúrios pra quem quer que o queira escutar, tornando-se assim o Homenzinho Agnóstico com Cara de Cavalo.

Ó, ‘cê ai, sei lá quem, sei lá aonde
Não sei onde mora nem onde se esconde
Mas rogo ajuda nessa hora carente
Pois não sei o que fazer com o demente —
Esse onde alugo a cuca e sou ocupante
Abestalhou-se de vez, esse tratante,
E virou de repente um genocida
Nunca vi algo tão horrendo nessa vida
Quanto o que vejo agora nesse instante
Peço socorro encarecidamente
Pois tudo isso me é mirabolante
E não sei até quando aguento essa mente
Ó, ‘cê ai, sei lá quem, sei lá aonde
Não sei onde mora nem onde se esconde
Nem sei se existe ou se é mera fábula
Mas me ajuda pelo amor nessa preula!

Consequentemente o Partido Egrégio de Interesse Ateu, ao captar em suas redes radioamadoras a oração psicotelefonada vinda do Chatonildo, acaba promulgando a cassação dos seus sapatinhos escarlates de dança e gerando um mandato, ordenando que o agora Homenzinho Agnóstico com Cara de Cavalo fizesse suas malas e partisse para a residência cefálica de qualquer agnóstico que lhe viesse a calhar.
Quando se conduzia para a saída mais próxima da cabeça do nababo, resolveu sussurrar uma despedida em seu ouvido, mas seu adeus nunca chegou ao destinatário, pois enquanto molhava seus lábios de Chatonildo, um pombo teleguiado por ninguém mais ninguém menos do que Deus surgiu rasgando as nuvens do céu e raptou o Homenzinho Agnóstico com Cara de Cavalo para algum lugar celestial onde a linguagem não é requisitada para se explicar o inexplicável.

NOTA: — A Segunda-Feira do Luto em Quarentena é o primeiro dia de uma festividade não-religiosa de características fúnebres, clementes e elegíacas, o Beijos de Imã, celebrada pelos crentes do Eletromagnetismo, residentes em N.S. dos A. e circunvizinhanças. Na Segunda-Feira Luto em Quarentena a população adepta do Eletromagnetismo arromba e invade casas, mansões e quitinetes da população tida por eles como Pagãos, hereges que desacreditam no Eletromagnetismo, e realizam diversas atividades recreativas, como por exemplo: retirar da posse dos Pagãos quaisquer talismã ou balangandã que desperte alteza neles para com os crentes, objetos como tamancos de acaju, vasos de floridas hemorroidas e vales-refeições; desalourar os que carregam louros verdejantes em seus cocurutos carecas; alquebrar a conta corrente dos sicários e sirigaitas, e, a mais importante delas,  que serve de título para A Segunda-Feira do Luto em Quarentena:  o encarceramento do Pagãos nas vias públicas, impedindo-os de regressarem as suas casas, e o luto obrigatório durante todo o dia, onde os Eletromagnetistas colorem os Pagãos com diversas tintas metálicas e cromadas, fazendo-os passar vergonha ao transcorrer do dia inteiro, faça chuva ou faça sol.


ENTRA UM TORNEIRO MECÂNICO E UM ARISTOCRATA NUM BAR...

essa pátria de praças abandonadas.

que serve somente de criadouro aos pombos & afagos furtados. os orquidários, entretanto, estão repletos de dicionaristas vibrando pelo novo teorema que vem saindo nos jograis, que os leva a crer que nossa língua é uma espécime de prima de segundo grau da língua nativa das víboras. sim, nossas bisavós estavam certas quando a isso. sim, nossa inevitável religião triplicou os requisitos quanto a escovação do paladar celeste. agora uma amiga minha doou um rim para uma capela feita de taipa e suor libidinoso e decidiu peregrinar por países glúteos, deixando todo seu cabelo em um baú e uma carta dizendo que havia finalmente se encontrado e precisava perder-se novamente.

essa pátria de pinacotecas desmatadas.

entrar nelas é como entrar na carcaça de algum cetáceo morto, é como observar o esqueleto de uma constelação. aonde deveriam haver pinturas existem arbustos surrealistas, folhas dadaístas, troncos expressionistas, raízes barrocas. fotossíntese quadrimensional. frutos com gosto de  endorfina. a tessitura desses dias não é bem o pedido de desculpas que os estudiosos vinham esperando, continuam os alagamentos nas ilhas de codeína mas cessaram as sessões de tortura aos albatrozes. enquanto isso um casebre se constrói sobre minha cabeça e uma úlcera floresce no fundo do meu umbigo.

essa pátria de jazidas graúdas.

recheadas de bijuterias e dinossauros de brinquedo. paredes  incrustadas de miçangas baratas, estegossauros de hortelã e amuletos órfãos. proibido garimpar sem o auxílio de uma infância de serrotes. avisos desapaixonados dizem para caminharmos com todo o cuidado para esquivar-se dos olhos de pitanga das mulheres solitárias. preciso investigar cautelosamente a topografia do teu peito, ver a correlação dele com meu sudário de catástrofes. talvez tenhamos nos conhecido numa dessas festas do subconsciente enquanto dormíamos. talvez, não sei. aeroportos são santuários aos descabidos. não tenho bagagem alguma para despachar dessa pátria. hoje é nosso penúltimo dia de vida.


MEMÓRIA À DERIVA SOBRE MOSCAS EM PUPILAS E CAIXAS DE PAPELÃO

Tem dias que viver é sanguinolento.
É imaginar um crânio de leão como objeto
ferino, retrato ósseo do que antes fora um rugido,
quando na verdade,
tal imagem nos remete à nossa própria sanha.
É abrir um sangradouro na rua habitual
e seguir pelo descaminho que culmina em nenhures.
É depredar o próprio sossego
afim de derrubar alvéolos cristalizados.
É devorar um sarcoma no pequeno almoço.

Tem dias que acordar é azedume.
É se pegar desprevenido em um povoado
onde a álgebra não existe, onde os numerais
não foram exportados e as coisas são contadas
entre “pouco”, “algum” e “muito”.

É ser propositalmente sucinto, quando,
em nosso âmago, há um labirinto
que cresce e cresce, sem apólice de seguro.
É prevalecer a regeneração das flechas de cupido.
É não ter a serotonina dinamitada de sal

e não entender que sim, seu cachorro está morto
e sim, não conseguir chorar é mais triste do que chorar.

Tem dias que existir é dormir coberto por mortalhas.


AVENIDA, AVENIDA

Estamos viúvos daquelas despedidas
Seculares e inditosas
Onde os braços eram guindastes
E o peito de cada camarada
era uma árvore condenada pela saudade.

Daquela época
Restou somente uma dormência
Engendrada nos coretos enciclopédias
e carros-fortes.

Estamos órfãos, desguarnecidos
porque todos andam a fugir dessa terra
Sem deixar recados na recepção.

Agora nada mais chega a abalar esta floresta
De cabelos crespos e frutas explosivas.
Não se ouvem mais hurras
Ou boiadas passeando pelo café
Ou indecisos tomando o bonde
Antes mesmo dos galos descobrirem-se
Proprietários das auroras ainda criança.

Ao cruzar essas ruas castradas
Vejo gente que aparenta ter acordado
Em uma cama acolchoada de pedras
e arrependimentos.

Mulheres feias 
Carregando no colo sua prole truncada
E de caligrafia tão paralítica.
Homens broncos 
Abarrotados até a borda
De um olhar genocida.
Até mesmo os pardais e os cães
Parecem estar tristes
Com a infestação de gaiolas e canis
Em meios as próteses dentárias.

Não sei se algum perfume, se algum salmo
Iria validar meus pés medianos
Sem que eu mordesse os prédios
Pensando que fossem pão.

E por entre os escombros e o relincho dos ignorantes
Sobra a sombra
Mas não o sopro.
Que varre a poeira do meu tronco
Que lustra os copos transparentes
Mas vazios
Aonde bebíamos néctar às sextas-feiras
E aonde entornávamos o medo
Em dias indefinidos.

Já não se pode mais dizer adeus
Sem que sejamos lúcidos demais
E algo comece a estrangular o destino.

O mesmo destino que antes tinha
Um revólver apontado
Para as nuvens que saiam do rebanho
E que agora anda curvo e descalço
Com unhas quilométricas
Sem saber que rumor usará
Como novo norte.


QUELONIOSAMENTE

aprendo a acordar
a língua arteriovenosa.


NÃO HÁ CRIAÇÃO NEM MORTE PERANTE A POESIA:

Há somente a eterna adolescência, a pirraça, a rapina.
É ouro que remenda o rosto de mármore de Apolo,
Figura tão devotada pelos extintos puros-sangues,
Junto aos seus florilégios e liras desatinadas.

Prefiro os iluminados sem sol, os mestiços
Que catam relâmpagos, punhos, adagas & caveiras
E os cimentam no crepúsculo de prédios abandonados,
E os explodem em museus de arte sacra,
E os almoçam com conhaque misturado a açucenas.

Deem coroas de cervo aos poetas raquíticos.
Aos que ainda carregam o credo de terem musas primogênitas,
Aos que ainda bradam ramerrões aos nulos,
E enfeitem seus cornos com espelhos retrovisores.

Quem sabe, qualquer dia desses, amanhã talvez,
Não encontremos um corpo na porta da nossa casa.
Um corpo sem sangue. Um corpo sem linguagem.
Um corpo sem corpo de texto, mas com uma linda aurora no rosto.


BRONCO

Me deram a alcunha de bruto, de invernal, de chulo.
Premiaram a minha pessoa com uma coroa de louros podres, serpeada de dentes de bicicleta,
espinhos roucos
& duplicatas de figurinhas já desbotadas por Kronos.

Pintaram um retrato meu de tempos outros,
e penduraram no pescoço de um baobá.
Não obstante a isso, no retrato meu rosto é um ovo
e meu cabelo, macarrão parafuso. De musgo
e reticências maquiaram meus olhos
e no reduto da boca
construíram um estábulo para minha cavalaria de brisas.

E agora essa correspondência invertebrada, entregue
por debaixo da minha porta, e que me cavouca o âmago
feito broca — endurecido silêncio, celestial diabólico —
e que derruba a sangria de uma tarde
nas minhas costas
e estropia meu sono hibernal.

Mas prefiro regressar à morada sem qualquer réplica.
Prefiro regar meu colchão de mijo
& contar as albugens das unhas.


CIDADE 19XX

À noite quando me deito
em Maputo
não preciso de rezar.
Já sou herói.

Carlos Cardoso

Manhã, quando me acordas em N. Sra. dos Alagados, teu silêncio é inefável. Levanto e digo Mãe, o café já tem açúcar? e digo Pai, encontrou alguma moldura abandonada no lixão? Pergunto ao papagaio se ele tem previsão do nascimento dos girassóis e beijo minha namorada como quem vive sem saber se é verão ou agiota aquele que bater na porta.

Manhã, quando me acordas em N. Sra. dos Alagados, vejo que gerações de carpas comem sementes de abóbora em teu ventre. Lavo as mãos e os pés e saio à rua com a dispensa militar no bolso. Atravesso o distrito sem ter assunto do que conversar com a paisagem. Escoro minha cabeça na janela e fabrico pequenos silêncios que o bramido do ônibus insiste em abocanhar, mastigar e engolir espalhafatosamente.

Manhã, quando me acordas em N. Sra. dos Alagados, acordo sabendo que não me queres nutrido de louvaminhas. Por isso não tenho Musa em meus contatos telefônicos e amo feito um cão que ama a sombra de uma árvore num dia quente. De repente me vem um gosto na boca de café e hortelã. Sangue e ferro às vezes. Depois um amargo de chão, uma viagem do tamanho da respiração de um mar.

Manhã, quando me acordas em N. Sra. dos Alagados, abro e fecho os olhos ainda deitado, e mando à merda os poetas caducos e mando à merda os relógios com sede e mando à merda a penumbra que anoitece sobre o peito. Lábios áridos de espelho e água outra que mana das tuas pernas. Passa do meio-dia e não fuzilaram ninguém em praça pública. A policial ronda de luzes vazias o quarteirão. Ouço falarem de um mitológico presidente esculpido em ouro de tolo. Querem eles crucificar o fogo, tingir de ideais a flor, rebocar abraços com uma betoneira. Não publico minhas saudades. Caminho às ordens do meu medo. Atravesso a rua e tu, Manhã, se embrulha no horizonte e mergulha no Longe.

Por isso, Coração, quando adormeço em N. Sra. dos Alagados, te devolvo ao meu peito e só então rezo secretamente para que amanhã a cidade amanheça perfeita desabitada.


[ TRÊS PERGUNTAS ]

FM | Poesia, amor, liberdade – a tríade essencial do Surrealismo. De que maneira ela faz parte de tua vida e se integra à tua criação?

VHA | Pergunta difícil essa. Difícil por ser abrangente.
Não gosto muito de usar a palavra poesia no meu cotidiano por ela me soar piegas, saturada demais pelos novos poetastros dessa época, que usam ela a torto e a direito.
Sinto o mesmo pela palavra amor.
Dito isso, prefiro falar sobre a palavra Surrealismo, e não sua tríade, já que essas três palavras hoje tem um significado tão encharcado de lugar-comum que eu me sentiria bobo por usar tais termos. Acho que o Surrealismo, a ideia que a palavra Surrealismo traz, se entranha na minha vida quando eu vejo que a vida pode ser mais fictícia, mais estapafúrdia que a própria ficção.

FM | Dentro e fora do país, entre vivos e mortos, independente até mesmo da poesia, não apenas citando os nomes, mas comentando os motivos, poderias referir algumas afinidades tuas na criação artística?

VHA | Jack Spicer, Haroldo de Campos, Antonio Pinto de Medeiros, Rothko.

FM | Tenho percebido que, sobretudo em poetas nascidos a partir de 1980, há um renascimento na lírica brasileira, que é tanto na densidade da escrita, quanto na definição de uma voz própria, quanto no sentido de uma solidariedade explícita, sem que isto reflita a existência de um movimento. O que observas a este respeito?

VHA | Acho que a contemporaneidade de certo modo esgotou a voz própria. Tudo parece colagem, remontagem. E não enxergo isso como algo ruim.
Sobre os outros assuntos não sei o que pensar.
Ando disperso quanto ao que meus colegas produzem faz algum tempo. Percebi que eu fazia poemas sem estudar nada sobre poesia. Chegou uma hora que me sentir muito fingidor e parei. Agora eu só leio. Vez por outra escrevo um ou outro verso, nada demais.

[FOLHA DE VIDA]

Victor H. Azevedo (Rio Grande do Norte 1995). Poeta. Publicou diversos zines de poesia, e no ano passado publicou a plaquete Cachorro Morto (2018, munganga edições). Planeja algum dia lançar um livro intitulado “quem nunca andou de ônibus não sabe o que é deserto”.


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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidado: Enrique de Santiago (Chile, 1961)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 126 | Janeiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019




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