segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

1998 FERNANDA BOAVENTURA


[ DEZ POEMAS ]


[NÃO PUDE ATERRAR-ME NA NÉVOA]

Não pude aterrar-me na névoa, diante da parede de vidro, no final do mundo.
Não o amava o suficiente.
Juntei lenha, empilhei as achas da fogueira e aqueci as mãos.
Mas eu não sorria, não conseguia abaixar a lança, quebrá-la, desistir de empunhar um galho de prata. Ofereci o fogo a Deus, à família, aos amigos irreparáveis.
Mas no fundo do coração eu não estava enternecida.
Senti que mentiria a uma legião de filhos que geraria tendo em mãos um sapo incandescente.
Aos meus pés, um soldado caído que cobri com uma túnica empoeirada.
Penso que qualquer substantivo nobre vai correr à minha boca assim que ele murmurar a pergunta final.
Humilhada, omitirei os meus sonhos e mencionarei os corais.
No dia seguinte, tornarei a omitir os meus sonhos, tensionada pelo orgulho dos meus ossos tenros que perseguem as próprias penas, como a uma dor insólita e milagrosa cintilando numa paisagem de neve. A parede branca e erma do quarto não me açoitará quando eu regressar nua e desenraizada como um adolescente adormecendo à sombra da árvore inominada,
leal ao rebanho, cego aos meus gestos,
surdo à minha voz,
escoando aos pouquinhos o sangue de uma aleluia irredutível:
eis o mistério da crueldade.


NOSTALGIA DA ISLÂNDIA

A princípio voltei-me ao náufrago
E omiti as mãos. Eu nada podia fazer quanto aos pães
E à graça. Eu nada podia contra o exílio.
Os peixes nos meus olhos haviam sido fisgados pela traição do voo
E o aquário não cederia nenhuma embarcação.

Depois a minha voz tornou-se branca
E a claridade cegou as pombas designadas a testemunhar a terra
Com seus ramos de oliveira ofertados às viúvas
Nos portos do continente.

Por fim pus-me a ser água fictícia
A batizar os cadáveres das baleias estendidos sobre a praia sem filhos,
Distraindo-me do Sol sob o qual apodreciam
Que ancorava-se em meus peixes de visões tardias
Desde o começo.


ORAÇÃO

Dói que não tenhas uma mão de osso e sangue, uma mão de cânticos amarelos
Que Teu nome seja uma abóbada recoberta de ninfas vestidas, que todas elas vistam cetim branco
Dói que Teus cabelos recaiam sobre mim sem que o vácuo circundante do sol seja uma chaga
Que teus olhos não sejam armários e cristaleiras em quartos escuros
Que sejam miragens de cardumes a assegurar a minha carne como um espelho no sótão
És uma câmara, uma marquise sem muitas colunas onde náufragos me entregam cestas de vime e minhas mãos se transfiguram para um castelo inabitável de fios de ouro
Quando a minha voz for um castiçal a estilhaçar meus lábios, sangrarei sob Ti como um cavalo negro Meu sangue será uma orquídea esboçada nos azulejos
Ó lâmina de ar
Ó pensamento de bronze
Sei que me ouves
Mas minha pele arde no sítio das brânquias
Os peixes se multiplicam sem que eu sinta o gelado de suas escamas
E amo-Te no que tremula como um pardal de fogo, um girino, um mamífero sem sexo


[A LUA REFLETIA NO CORAÇÃO DE VIDRO DAS ÁGUIAS]

A lua refletia no coração de vidro das águias.
Eras o rosto de menino que embebia a neblina de terra lamacenta,
e eu te acalentava no fio da espada, firme como um mastro,
suave como um lenço.
Corrias como um potro marcado pelo refúgio primevo,
desconhecido pelo frio e a fome.
Quando a noite indagava por nós, apressávamo-nos em dizer-lhe “Eis-nos aqui”,
como a garganta de um pássaro no ninho
à espera do alimento engendrado pelo bico calcinado da mãe
que mira o sol no eixo do passado invernal.
Abraçávamo-nos em cerimônia de ressurreição dos mortos.
Tínhamo-nos a mão contínua criada pela leoa que acariciávamos,
guiados pelos espasmos da corça na escuridão do espelho.
As gralhas grasnavam de fúria frente ao dorso intacto da terra lancinante,
doavam-nos duros e amados à sua solidão.
Faziam da mãe balançando o berço o corpo soerguido pela relva,
e depois a insígnia de seu silêncio coroado.
Ó criatura de dorso aberto no alento quente de Deus,
com o rosto coberto de pó e contorcido em temor,
vinde a mim,
junto a vós me humilharei trespassada pelos pássaros sem lugar,
jejuarei na névoa, tocada pelos sonhos irreveláveis de Cristo adormecido na tempestade,
perderei os meus filhos para achá-los esvaziados de sangue no último destino das mães sem peso.
Hão de nos rogar peixes com pulmões indolores.


[QUANDO TRAÍ O MEU TESOURO]

Quando traí o meu tesouro,
um anjo dilacerou-se para salvá-lo.
Encontrou-me agarrada à impiedade como um homem perdoado agarra-se ao inferno.
E o negrume nos olhos do pássaro alçou o bálsamo do tempo.
Certa vez perguntei ao anjo o que meu sangue rogaria às estrelas.
Ele respondeu: Um crime que te engrandeceste.
A semente já havia morrido então.
Mas não o bastante.
Bastaria a alguém um tronco edificado contra a luz entregue ao esquecimento,
a monstruosa inocência dos tigres?
Tocaste o ouro do teu pesadelo quando a salvação te batizou em crueldade?
Transforma-se em fantasia o consolo de minha fúria,
e deflagra-se a miséria enorme.


LEITE E PERDÃO

Descobrem o reino da pedra com a força de um leão negro em um leito de ouro,
mas o corpo fere-se na glória irredutível da coroa sem o pelo castanho dos dorsos
onde os corvos se alimentam dos embriões de sua mãe rubra
— antiga mãe rubra na cidade sem luzes nutrindo seus sonhos com a esperança dos santos.
Leite e perdão.
Descobrem a guerra no sótão da casa.
Descobrem a fonte muito longe do grito que aninha-se, trêmulo, no trono dos filhos de Eva.
Descobrem a infância encerrada no coração.
A rainha perde-se no poço,
mas o seu rosto será beijado pelo espírito quente das baleias
quando o verão levantar-se imortal dos búzios
— ossos estilhaçando-se em rochas para alimentar os abutres.
Leite e perdão.
Descobrem a casa encerrada em miragens de lanças depostas para nunca mais perdê-las na senda.
Descobrem a hóstia no adeus das crianças para engendrar o amor com a distância de suas mortes.




[O QUE TOCOU A MINHA NUDEZ]

O que tocou a minha nudez como a uma casa inextricável onde um cervo morre?
A terra se lembra da sombra de uma mão sobre a relva?
Se aquele que caminha sobre a superfície das águas renuncia ao ninho,
quem alcançará as luas ao largo de toda a fonte?
Dura noite aberta aos anjos que estancam o sangue peregrino de uma criança intocada.
Silêncio tão tangível quanto o sonho de um animal que não respira.
E nunca pelo meu ventre uno a casa à carne, a âncora à morte.
Mas perece a espada em um coração,
e os girassóis são límpidos como o sacrifício.
O cisne ressuscita sua úlcera,
e a Primavera, alteia a coroa estéril, a alegria vã?


[O CORAÇÃO PERTURBA O VENTO]

O coração perturba o vento à procura de uma súplica extraída da morte.
Naturalmente o tempo fará a violência onde os sonhos aplacam a nudez de um homem.
E a misericórdia revelará a sordidez de nossas consolações.
Mas a que se destina a espera amorosa que no meu seio eu entrevejo quando um raio fulmina os peregrinos no interior da solidão rubra?
Onde guardarei o meu nome, talismã da tua entrega?
Entre os meus silencio em tua inocência.
E assim eles conhecem a grande face da minha violência.
Dou-lhes uma ametista para que nutram de perdão o sono,
mas quando toco-lhes a alma a luz coroa o meu útero no cumprimento suave dos seus votos de crueldade.
Da âncora que se arrasta eu revelo a névoa.
Do sangue que se abunda eu revelo a espera.
E, aterrorizada, lanço-me à liberdade com que tu me puniste.


3.ª DOR DE MARIA

Por três dias, estive diante do espelho herdado pela perda de vosso rosto.
Abriu-se para mim o coração de um abutre, e pude gestar nele a mão ressequida pelo destino de vossas lágrimas.
Mas e os meus gritos, reconheceriam os ossos inquebrantáveis do vosso rastro?
Restou-me somente a memória de um beijo de criança para reconhecer a vossa pegada entre os elementos.
E então, ó solidão irrevelada, eu soube que seria a vossa morada o exílio do meu ventre.


[PROCURO A CANDEIA NO SILÊNCIO DE ONDE BEBO A SEIVA QUE FERE]

Procuro a candeia no silêncio de onde bebo a seiva que fere.
Quem mede a altura do voo com a distância de sua morte?
Quem lança as flores contra o território estrangulado de seu próprio sangue?
Acordas sem regresso pois não perdoaste o teu punho.
Ainda, é sob a miragem do fogo dos homens que expurgo a espada do coração das águas:
eis o real dos sonhos, lágrima de cisne.
Os corpos têm seu peso tocado pela justiça,
jogados nas clareiras inextinguíveis da floresta,
quando imploram o perdão aos carrosséis no pórtico do deserto.
Assim crescem os peixes,
no eterno rastro de nossa ausência.
Despertam a morte peregrina no covil da Primavera que trai e fecunda.
Vê como o pássaro regressa aos rochedos,
como os rochedos acodem o pássaro,
como farto-me do lado de fora da casa
e do lado de dentro da casa até não restar palavra.


[ TRÊS PERGUNTAS ]

FM | Poesia, amor, liberdade – a tríade essencial do Surrealismo. De que maneira ela faz parte de tua vida e se integra à tua criação?

FB | Que pergunta difícil. Há sempre uma falha na voz quando se fala de mistério, e a beleza (a própria substância do mistério) é terrível em suas formas mais singelas. Acho que no final, só resta eu, o quarto e algum esforço débil para honrar a minha familiaridade obscura com a Natureza. Tentar me salvar, ao menos um pouco, do exílio de ser gente. Tem um verso do Daniel Faria que respira por trás do véu de cada poema: “Como reporás a terra/Arrastada para a boca?” 

FM | Dentro e fora do país, entre vivos e mortos, independente até mesmo da poesia, não apenas citando os nomes, mas comentando os motivos, poderias referir algumas afinidades tuas na criação artística?

FB | Nossa, acho que posso começar por alguns livros do Velho e Novo Testamento que me mostraram o gosto do meu próprio sangue. E então, tem Herberto Helder, Daniel Faria, Sylvia Plath, Rilke, Simone Weil, T. S. Eliot, Leonard Cohen, Carminha Gouthier, minhas avós, meus pais, meus amigos, André... São tantos, tantos os que eu agradeceria com o coração na mão, e ainda seria insuficiente. Crescer foi também sobre aprender como um poema, uma imagem presenteada, mesmo involuntariamente, pode salvar sua vida ao te revelar como perdê-la. Entender que quem perde a vida, salvá-la-á

FM | Tenho percebido que, sobretudo em poetas nascidos a partir de 1980, há um renascimento na lírica brasileira, que é tanto na densidade da escrita, quanto na definição de uma voz própria, quanto no sentido de uma solidariedade explícita, sem que isto reflita a existência de um movimento. O que observas a este respeito?

FB | Não sei se poderia observar algo.


[ FOLHA DE VIDA ]

Fernanda Boaventura (Minas Gerais, 1998). Poeta. Publicou as plaquetes Ao fim de uma oração (2017) e Fac me tecum pie flere (2918).


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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidado: Enrique de Santiago (Chile, 1961)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 126 | Janeiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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