[ DEZ POEMAS
]
[NÃO PUDE ATERRAR-ME
NA NÉVOA]
Não pude aterrar-me na névoa, diante da
parede de vidro, no final do mundo.
Não o amava o suficiente.
Juntei lenha, empilhei as achas da
fogueira e aqueci as mãos.
Mas eu não sorria, não conseguia
abaixar a lança, quebrá-la, desistir de empunhar um galho de prata. Ofereci o
fogo a Deus, à família, aos amigos irreparáveis.
Mas no fundo do coração eu não estava
enternecida.
Senti que mentiria a uma legião de
filhos que geraria tendo em mãos um sapo incandescente.
Aos meus pés, um soldado caído que
cobri com uma túnica empoeirada.
Penso que qualquer substantivo nobre
vai correr à minha boca assim que ele murmurar a pergunta final.
Humilhada, omitirei os meus sonhos e
mencionarei os corais.
No dia seguinte, tornarei a omitir os
meus sonhos, tensionada pelo orgulho dos meus ossos tenros que perseguem as
próprias penas, como a uma dor insólita e milagrosa cintilando numa paisagem de
neve. A parede branca e erma do quarto não me açoitará quando eu regressar nua
e desenraizada como um adolescente adormecendo à sombra da árvore inominada,
leal ao rebanho, cego aos meus gestos,
surdo à minha voz,
escoando aos pouquinhos o sangue de uma
aleluia irredutível:
eis o mistério da crueldade.
NOSTALGIA DA ISLÂNDIA
A princípio voltei-me ao náufrago
E omiti as mãos. Eu nada podia fazer
quanto aos pães
E à graça. Eu nada podia contra o
exílio.
Os peixes nos meus olhos haviam sido
fisgados pela traição do voo
E o aquário não cederia nenhuma
embarcação.
Depois a minha voz tornou-se branca
E a claridade cegou as pombas
designadas a testemunhar a terra
Com seus ramos de oliveira ofertados às
viúvas
Nos portos do continente.
Por fim pus-me a ser água fictícia
A batizar os cadáveres das baleias
estendidos sobre a praia sem filhos,
Distraindo-me do Sol sob o qual
apodreciam
Que ancorava-se em meus peixes de
visões tardias
Desde o começo.
ORAÇÃO
Dói que não tenhas uma mão de osso e
sangue, uma mão de cânticos amarelos
Que Teu nome seja uma abóbada recoberta
de ninfas vestidas, que todas elas vistam cetim branco
Dói que Teus cabelos recaiam sobre mim
sem que o vácuo circundante do sol seja uma chaga
Que teus olhos não sejam armários e
cristaleiras em quartos escuros
Que sejam miragens de cardumes a
assegurar a minha carne como um espelho no sótão
És uma câmara, uma marquise sem muitas
colunas onde náufragos me entregam cestas de vime e minhas mãos se transfiguram
para um castelo inabitável de fios de ouro
Quando a minha voz for um castiçal a
estilhaçar meus lábios, sangrarei sob Ti como um cavalo negro Meu sangue será
uma orquídea esboçada nos azulejos
Ó lâmina de ar
Ó pensamento de bronze
Sei que me ouves
Mas minha pele arde no sítio das
brânquias
Os peixes se multiplicam sem que eu
sinta o gelado de suas escamas
E amo-Te no que tremula como um pardal
de fogo, um girino, um mamífero sem sexo
A lua refletia no coração de vidro das
águias.
Eras o rosto de menino que embebia a
neblina de terra lamacenta,
e eu te acalentava no fio da espada,
firme como um mastro,
suave como um lenço.
Corrias como um potro marcado pelo
refúgio primevo,
desconhecido pelo frio e a fome.
Quando a noite indagava por nós,
apressávamo-nos em dizer-lhe “Eis-nos aqui”,
como a garganta de um pássaro no ninho
à espera do alimento engendrado pelo
bico calcinado da mãe
que mira o sol no eixo do passado
invernal.
Abraçávamo-nos em cerimônia de
ressurreição dos mortos.
Tínhamo-nos a mão contínua criada pela
leoa que acariciávamos,
guiados pelos espasmos da corça na
escuridão do espelho.
As gralhas grasnavam de fúria frente ao
dorso intacto da terra lancinante,
doavam-nos duros e amados à sua
solidão.
Faziam da mãe balançando o berço o
corpo soerguido pela relva,
e depois a insígnia de seu silêncio
coroado.
Ó criatura de dorso aberto no alento
quente de Deus,
com o rosto coberto de pó e contorcido
em temor,
vinde a mim,
junto a vós me humilharei trespassada
pelos pássaros sem lugar,
jejuarei na névoa, tocada pelos sonhos
irreveláveis de Cristo adormecido na tempestade,
perderei os meus filhos para achá-los
esvaziados de sangue no último destino das mães sem peso.
Hão de nos rogar peixes com pulmões
indolores.
[QUANDO TRAÍ O MEU
TESOURO]
Quando traí o meu tesouro,
um anjo dilacerou-se para salvá-lo.
Encontrou-me agarrada à impiedade como
um homem perdoado agarra-se ao inferno.
E o negrume nos olhos do pássaro alçou
o bálsamo do tempo.
Certa vez perguntei ao anjo o que meu
sangue rogaria às estrelas.
Ele respondeu: Um crime que te
engrandeceste.
A semente já havia morrido então.
Mas não o bastante.
Bastaria a alguém um tronco edificado
contra a luz entregue ao esquecimento,
a monstruosa inocência dos tigres?
Tocaste o ouro do teu pesadelo quando a
salvação te batizou em crueldade?
Transforma-se em fantasia o consolo de
minha fúria,
e deflagra-se a miséria enorme.
LEITE E PERDÃO
Descobrem o reino da pedra com a força
de um leão negro em um leito de ouro,
mas o corpo fere-se na glória
irredutível da coroa sem o pelo castanho dos dorsos
onde os corvos se alimentam dos
embriões de sua mãe rubra
— antiga mãe rubra na cidade sem luzes
nutrindo seus sonhos com a esperança dos santos.
Leite e perdão.
Descobrem a guerra no sótão da casa.
Descobrem a fonte muito longe do grito
que aninha-se, trêmulo, no trono dos filhos de Eva.
Descobrem a infância encerrada no
coração.
A rainha perde-se no poço,
mas o seu rosto será beijado pelo
espírito quente das baleias
quando o verão levantar-se imortal dos
búzios
— ossos estilhaçando-se em rochas para
alimentar os abutres.
Leite e perdão.
Descobrem a casa encerrada em miragens
de lanças depostas para nunca mais perdê-las na senda.
Descobrem a hóstia no adeus das
crianças para engendrar o amor com a distância de suas mortes.
[O QUE TOCOU A MINHA
NUDEZ]
O que tocou a minha nudez como a uma
casa inextricável onde um cervo morre?
A terra se lembra da sombra de uma mão
sobre a relva?
Se aquele que caminha sobre a
superfície das águas renuncia ao ninho,
quem alcançará as luas ao largo de toda
a fonte?
Dura noite aberta aos anjos que
estancam o sangue peregrino de uma criança intocada.
Silêncio tão tangível quanto o sonho de
um animal que não respira.
E nunca pelo meu ventre uno a casa à
carne, a âncora à morte.
Mas perece a espada em um coração,
e os girassóis são límpidos como o
sacrifício.
O cisne ressuscita sua úlcera,
e a Primavera, alteia a coroa estéril,
a alegria vã?
[O CORAÇÃO PERTURBA O
VENTO]
O coração perturba o vento à procura de
uma súplica extraída da morte.
Naturalmente o tempo fará a violência
onde os sonhos aplacam a nudez de um homem.
E a misericórdia revelará a sordidez de
nossas consolações.
Mas a que se destina a espera amorosa
que no meu seio eu entrevejo quando um raio fulmina os peregrinos no interior
da solidão rubra?
Onde guardarei o meu nome, talismã da
tua entrega?
Entre os meus silencio em tua
inocência.
E assim eles conhecem a grande face da
minha violência.
Dou-lhes uma ametista para que nutram
de perdão o sono,
mas quando toco-lhes a alma a luz coroa
o meu útero no cumprimento suave dos seus votos de crueldade.
Da âncora que se arrasta eu revelo a
névoa.
Do sangue que se abunda eu revelo a
espera.
E, aterrorizada, lanço-me à liberdade
com que tu me puniste.
3.ª DOR DE MARIA
Por três dias, estive diante do espelho
herdado pela perda de vosso rosto.
Abriu-se para mim o coração de um
abutre, e pude gestar nele a mão ressequida pelo destino de vossas lágrimas.
Mas e os meus gritos, reconheceriam os
ossos inquebrantáveis do vosso rastro?
Restou-me somente a memória de um beijo
de criança para reconhecer a vossa pegada entre os elementos.
E então, ó solidão irrevelada, eu soube
que seria a vossa morada o exílio do meu ventre.
[PROCURO A CANDEIA NO
SILÊNCIO DE ONDE BEBO A SEIVA QUE FERE]
Procuro a candeia no silêncio de onde
bebo a seiva que fere.
Quem mede a altura do voo com a
distância de sua morte?
Quem lança as flores contra o
território estrangulado de seu próprio sangue?
Acordas sem regresso pois não perdoaste
o teu punho.
Ainda, é sob a miragem do fogo dos
homens que expurgo a espada do coração das águas:
eis o real dos sonhos, lágrima de
cisne.
Os corpos têm seu peso tocado pela
justiça,
jogados nas clareiras inextinguíveis da
floresta,
quando imploram o perdão aos carrosséis
no pórtico do deserto.
Assim crescem os peixes,
no eterno rastro de nossa ausência.
Despertam a morte peregrina no covil da
Primavera que trai e fecunda.
Vê como o pássaro regressa aos
rochedos,
como os rochedos acodem o pássaro,
como farto-me do lado de fora da casa
e do lado de dentro da casa até não
restar palavra.
[ TRÊS
PERGUNTAS ]
FM | Poesia, amor, liberdade – a tríade
essencial do Surrealismo. De que maneira ela faz parte de tua vida e se integra
à tua criação?
FB | Que pergunta difícil. Há sempre uma
falha na voz quando se fala de mistério, e a beleza (a própria substância do
mistério) é terrível em suas formas mais singelas. Acho que no final, só resta
eu, o quarto e algum esforço débil para honrar a minha familiaridade obscura
com a Natureza. Tentar me salvar, ao menos um pouco, do exílio de ser gente.
Tem um verso do Daniel Faria que respira por trás do véu de cada poema: “Como
reporás a terra/Arrastada para a boca?”
FM | Dentro e fora do país, entre vivos e
mortos, independente até mesmo da poesia, não apenas citando os nomes, mas
comentando os motivos, poderias referir algumas afinidades tuas na criação
artística?
FB | Nossa, acho que posso começar por
alguns livros do Velho e Novo Testamento que me mostraram o gosto do meu
próprio sangue. E então, tem Herberto Helder, Daniel Faria, Sylvia Plath,
Rilke, Simone Weil, T. S. Eliot, Leonard Cohen, Carminha Gouthier, minhas avós,
meus pais, meus amigos, André... São tantos, tantos os que eu agradeceria com o
coração na mão, e ainda seria insuficiente. Crescer foi também sobre aprender
como um poema, uma imagem presenteada, mesmo involuntariamente, pode salvar sua
vida ao te revelar como perdê-la. Entender que quem perde a vida, salvá-la-á
FM | Tenho percebido que, sobretudo em
poetas nascidos a partir de 1980, há um renascimento na lírica brasileira, que
é tanto na densidade da escrita, quanto na definição de uma voz própria, quanto
no sentido de uma solidariedade explícita, sem que isto reflita a existência de
um movimento. O que observas a este respeito?
FB | Não sei se poderia observar algo.
[ FOLHA DE
VIDA ]
Fernanda Boaventura
(Minas Gerais, 1998). Poeta. Publicou as plaquetes Ao fim de uma oração (2017) e Fac
me tecum pie flere (2918).
*****
EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO
DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidado: Enrique
de Santiago (Chile, 1961)
Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 126 | Janeiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO
MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019
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