[ DEZ POEMAS ]
[A
GENTE QUE ENTENDE DO QUE SE ALIMENTA UM URUBU]
A gente que entende do que se alimenta
um urubu
cresce
com medo de que as gavetas da casa acordem
reviradas
e não mais se consiga encontrar
por
exemplo um
cachecol
mamãe
guardava a chaves sua dor de peixe bruto
um
odor incamuflável
aos
quinze anos
fui
doutrinada a esconder até mesmo
algo
como o rio de neruda
o
tempo passou
me
juntei a grupos de estudo a explorar a
relação
entre punhos e cadeados entre
o
quinto dia útil do mês e aquele amor
que
eu pensei ora planar alto ora pousar sobre
uma
estrutura urbana
qualquer
vivi
a não alçar voos
tudo
pelos baixos beiços me convidava
qualquer
ideia de bico me punha a pêsames
aprendi
cedo demais que edith piaf se enganara:
as
aves, como os cães, não discriminam as cores
ouça
com atenção
de
tanto ver em tudo
um
bicho de sete cabeças,
perto
dos 20
prodigiosamente
me empreguei como funcionária pública de instintos
habilitada
a enxergar de longe
qualquer
crustáceo que habitasse
a
solidão de uma concha
papai
não ligou muito
tudo
associado a esconderijos continuou cheirando
ao
meu quarto.
caso
o coração batesse
apenas
uma vez ao
dia
seria
possível
passar
alguns
instantes
na
ilusão de
acordar
escovar os dentes apertar
os
cintos
sem
perceber
que
há horas
se
morrera
crescer
em uma
casa
onde a dinâmica dos
animais
se parecia com
aquilo que fazem os camaleões
aquilo que fazem os camaleões
me
ensinou algo sobre
camuflar-se
para ataque sobre
uma
constante guerra colorida
nenhum
lugar para
se
pôr os pés me ensinou
uma
coisa ou outra sobre
biologia
eu nunca
entendi
as libélulas
essa
coisa bonita que para no ar
sobrevivi
para contar
a
lenda do miocárdio porém
ainda
com muito medo
de
que num acaso ele palpite
por
qualquer coisa
pouca
[EU
TE AMO PORQUE VOCÊ]
eu
te amo porque você
nunca
usaria uma palavra onde ninguém mais
usaria
porque
uma
águia não conhece o termo
ave
de rapina e assim pode ser por
uma
média de 20 anos algo
exatamente
igual a um passarinho
porque
o
menor gesto dos meus braços é pior
que
os seus cílios
te
amo porque
desmembrando
qualquer homem
me
perdi no panteão da palavra quimera
achei
curiosíssimo estampar um brasão
seduzida
fui pelas sobrancelhas de sabão neutro
e
ainda assim
nada
fazia bolhas
nada
havia no mundo que fosse
tão
importante
quanto
quando inventamos o nome
do
que parecia ser o oitavo dia,
tem
mais presença em nós
tudo
aquilo que não existe.
[ENTRE
EU E VOCÊ]
entre
eu e você
os
feromônios já não têm mais coragem de pular de paraquedas
essa
coisa de esperança nasce com a boca no pé e me coloca na
posição
do caminho de santiago
vivo
a calejar meus lábios
nada
mais seguro que abolir os freios
é
preciso que o beijo seja como a oferta de um atalho
escrevi
pra te contar que hoje em dia ninguém anda de pajero
ainda
que no final das contas
tudo
se torne frágil como
ouriçar
um deserto
não
levantarei cabeça alguma de
despedida
não voltarei à bíblia serei
pra
sempre a primeira mulher
para
quem não contaste sobre o verão
pra
sempre escura nos lugares errados
⅓ criatura, nunca o suficiente para
alimentar
um bezerro
sutil
como confundir luto com a noite
que
vem, te alegra de sermos somente nós, grãos
e
não uma avenida principal, somente cristais
cresceremos
queimados
me
vigiará em cabeceira, há sempre surpresa
em
pensar que antigamente
todo
mundo admitia
que
logo pela noite viria o frio
hoje
em dia sabemos, é engraçado
seremos
talvez para sempre inconstantes e arenosos
mas
jamais áridos
nos
amaremos de jeito desolado e encharcado
como
os lençóis
desse
país brasil
nessa de se
dar com os olhos
você compete
com o ar e conjuga
nada mais que
o índice de um livro de poesia; não fosse essa sua mania de comer pelas
beiradas, uma fala de S e
a impressão de
que primeiramente
pavimentamos
plutão e logo em seguida
processamos
netuno, vê se me entende,
não existissem
os astros do estrogênio
regidos pela
córnea que provoca o cio
da braguilha
da cidade que eu visto, a
ideia de um
flerte como a gestão da crise
dos mísseis em
cuba, não fosse nada disso,
mas um grito,
agudo e palíndromo, ou seja,
seu nome
honrando os instrumentos de sopro,
amanhã mesmo
nossas bocas se errariam
e minha glote
te ensinaria
o que fazem e
onde vivem
as
professorinhas
sem
magistrado.
conversa
do tempo em que ainda não julgávamos importante o uso de bloqueador solar
sabes
muito
se fala sobre ser o sol na vida de alguém
intrometido
ícaro
deporia não considerar muito boa ideia diria um astro é um fuzil
raios!
UV
mutação
alguma DNA, escute lá, não ouses seja nada mais
que
o escuro deitado entre dois corpos
achei
cafona arder pelo outro
amo
das 9 ao meio dia
raras
exceções às quatro.
[SOLUÇÃO]
assumir
teu gosto por ciências
ouvir
atenta ao fato de que limões dão mais
sumo
após alguns
segundos
no microondas
encontrar
motivos pra clamar a
são
josé inspiração a tal plano maligno
manter-me
por dias na casa de pólvora
carregando
somente um fósforo
entre
as pernas.
[TEM
PARTES DA MULHER QUE O HOMEM NUNCA TOCARÁ]
tem
partes da mulher que o homem nunca tocará
o
terceiro olho os
ossos
do ofício a
garganta
extra o cabresto jugular
essas
coisas & entre outras
a
virilha de dentro
[COMPARO
SEUS DENTES COM QUALQUER]
comparo
seus dentes com qualquer
objeto
branco também
no
cômodo
rezo
pedindo tentar te enxergar
o
sinônimo de sinônimo
a
primeira
frase
neutra de uma língua
chamo
de um jeito você fala de outro
não
tem saída há sempre
uma
tendência de
substituir
o céu por uma cor
você
de noite me pergunta o quanto
te
aproximo de um deus
respondo
que ainda na igreja sem pedestal
não
ouso entrar
sem
antes me pôr de joelhos
[
TRÊS PERGUNTAS ]
FM | Poesia, amor,
liberdade – a tríade essencial do Surrealismo. De que maneira ela faz parte de
tua vida e se integra à tua criação?
IE | Acho que o
surrealismo é, em si, não uma fuga da realidade, mas um realce dela em cores
mais fortes. O amor, na minha vida, faz isso: não aceita nenhuma cena que se
preste a uma explicação racional de qualquer tipo. Não aceita nenhum tom
pastel, e a poesia nasce justamente dessa não aceitação do ambiente natural e
fácil, dessa luz que só mostra uma parte da cidade. A poesia só existe porque
odiamos meios termos, porque a gente não dá conta do limite do aceitável e
precisa contrariá-lo. Esses dias um amigo meu me contou que tinha a estranha
tarefa de escrever sobre algo que ama odiar, para um trabalho na faculdade. E
ficou espantado quando eu disse que amar o ódio a algo é poderosíssimo.
Liberdade pra mim é ter um lugar onde eu posso transformar o corriqueiro
naquilo que as tintas fizeram depois que veio a fotografia: dar o troco, falar
mais alto, pra que as pessoas ouçam também. Porque eu não aguento o banal. Aí
eu escrevo.
FM | Dentro e fora
do país, entre vivos e mortos, independente até mesmo da poesia, não apenas
citando os nomes, mas comentando os motivos, poderias referir algumas
afinidades tuas na criação artística?
IE | Quando eu
tinha 15 anos, eu ganhei dos meus pais a obra completa do Manoel de Barros. Eu
não sei ou não consigo dizer uma frase que resuma tudo o que acontece até hoje
vindo desse homem, mas sei, por causa disso, que “uma palavra abriu o roupão
pra mim”. E quando alguém te diz que uma palavra quer que você a seja, você
entende que esse mundo aqui você
então passou a não querer mais dominar. E isso é sério, é importante. Gosto
também da Hilda Hilst, acho tudo muito corajoso, tento redescobrir a cada dia,
é coisa pra uma vida. Talvez não seja exatamente uma afinidade, isso seria
muita presunção. Mas gosto demais dela. E a Sophia de Mello Breyner Andresen
tem me ensinado sobre o tempo. Não sei, são muitas pessoas, muitos
contemporâneos também, a lista iria até amanhã.
FM | Tenho
percebido que, sobretudo em poetas nascidos a partir de 1980, há um
renascimento na lírica brasileira, que é tanto na densidade da escrita, quanto
na definição de uma voz própria, quanto no sentido de uma solidariedade
explícita, sem que isto reflita a existência de um movimento. O que observas a
este respeito?
IE | Acho que
muitos escritores contemporâneos se sentem desperdiçados pela crítica e isso
cria um ciclo eterno porque não se permite espaço a quem não é lido e ao mesmo
tempo não se lê quem não está dentro desse espaço. Mas, enquanto isso acontece,
também estamos reinventando nossas formas de circulação, nossas formas de
burlar esse meio em que vários poetas não estão sendo lidos por questões muito
pouco a ver com suas literaturas. Isso é a cara desse pessoal que anda sendo
garimpado por aí e achando novos jeitos de jogar contra essa indústria doida
que a gente já sabe que virou a cultura. Esse sentimento de quem já entendeu o
comércio e a repetição por trás do que chamam de poesia, lírica, e quer fazer
algo. A pouca esperança que a gente tinha de que algo mudasse acabou, mas ainda
não é tempo de ficar parado. É uma coisa de quem tem e quer usar o tempo
prestando atenção no que tem algum valor. E são tantos, nossa, tantos artistas
incríveis conseguindo se estabelecer que eu fico até sem saber o que dizer
sobre a coragem dos poetas com quem eu hoje convivo e os quais felizmente tenho
a chance de ler.
[ FOLHA DE VIDA ]
Isadora
Egler (Brasília, 1999). Poeta. Possui textos publicados em revistas físicas e
virtuais e, em 2018, foi vencedora do terceiro lugar do Prêmio Off Flip na
categoria poesia.
*****
EDIÇÃO
COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista
convidado: Enrique de Santiago (Chile, 1961)
Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 126 | Janeiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS
| floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES
| mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO
MARTINS
revisão de textos & difusão
| FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019
Nenhum comentário:
Postar um comentário