TORRE DO TOMBO,
VISTA AO ROMPER DA AURORA [ZS]
O mais belo azul é o dos rolos de anil das formosas
Tágides do Tejo, iluminadas pelo Sol Infante, ao romper da Aurora, soberbas desfilando,
de róis de roupa à cabeça, cantando belas mazelas de Camões, ante a Torre do Tombo,
de que o Cronista-Mor Zé Muraro, se debruça, duma ameia, e sua Musa pessoal, fiel
Clotilde, surge de outra, segurando a bandeja com uma taça de vinho verdelho, e
a garrafa de que no rótulo vê-se o escudo das Quinas (quantas?… quem acertar… ganha
uma caixa de dúzia de cascos da Cerveja Caravela cada uma no respectivo rótulo levando
o autógrafo de um dos Doze Pajens Lusitanos que foram à Corte de… (que Reino?… quem
acertar leva uma latinha de sardinha Sagres).
O AZUL TRANSFIGURADO DE ANTONIO BANDEIRA [FM]
Manhã
bem cedo dar uma mordida no céu. Deixar sangrar um pouco, para que o vermelho se
espalhe pelos vasos comunicantes do acaso. Algumas linhas dissecadas formarão um
mapa em que se misturam arbustos e fachadas, rede elétrica e contornos em movimento
perene. Quanto mais à distância se observa o resultado mais se distinguem as figuras
que circulam por um cenário que parece imaginário. A realidade transmite ao delírio
as noções secretas de fixidez e contrastes. O azul palpita em sua selva de relances
furta-cores, e extrai do ventre da abstração os truques da paisagem e da figura.
Os olhos da noite jamais serão os mesmos.
O CÉU E O COPO [AB]
O psicanalista sonolento escuta o sonho recorrente daquele
pintor paciente seu, amante de impossíveis. O sonho começa com ele frente à tela,
a paleta e os pincéis prontos para seguirem a mão, em um ateliê obsessivo – uma
cama desarrumada a meio metro do cavalete, esboços amassados jogados pelo chão.
Prepara a tela com fundo branco. É então quando vê, em 1936 e ali, um homem de ar
severo, vestido de gravata e paletó, caminhando irritado pelo lugar, rapidamente
e de um lado para o outro. O engravatado vira a cabeça volta e meia para a tela
e para o pintor, ao que fuzila com o olhar, bradando: “– ¿Cómo no te das cuenta?
¡Tiene que ser azul!” E o pintor sabe que o homem está falando de Deus, e Deus é
um copo d’agua. O homem argumenta em azul: “O céu não é a pele de Deus?”, ou então
fala de “un coagulado azul de lontananza, un vaso de tiempo que nos iza en sus azules
botareles de aire” e não deixa o pintor trabalhar. O ambiente do ateliê vai se tornando
mais e mais angustiante com uma série de vozes que começam a ecoar desde todos os
labirintos da História, todas dando razão ao engravatado. De
1854 escuta-se: “Mon âme dans sa nuit redit ta gamme immense; je frissonne à tes
bruits d’orage ou de clémence, vivant psaltérion; sur ma lyre, qu’émeut l’esprit
des Zoroastres, les sept notes jadis tombèrent des sept astres du bleu septentrion.”
“– ¿Ya ves?” – diz o homem,
com ar de vitória. E um índio nicaraguense com mãos de marquês confirma repetindo
simplesmente: “Azul…” “Azul…” E os tambores pré-históricos tocam a-zul, a-zul, a-zul…
Até que o próprio Deus fala palavras azuis com voz azul e o pintor não está mais
frente ao cavalete, mas deitado na cama e suando… E abre os olhos ao sentir uma
mão tocando a sua. É uma freira, bela e jovem, o ateliê mudou-se para 1671 e ela
explica, com muita seriedade, doçura e clareza, como o pintor pode usar o céu para
realizar sua obra. O pintor sorri ao perceber: no pensamento da freira, ele quer
escrever um poema e não pintar um quadro, mas já não lhe importa tanto. A escuta
explicar que é preciso deixar o Sol nascer, para que seus raios desenhem linhas
na folha imensa do céu até que feche “o giro que esculpira em ouro todo sobre azul
safira”. Com o céu assim pautado ele poderá escrever. “O sonho é cobre e azul”,
ela diz. “Agora acorda”. E ele acordava.
EXPÔ MANÉ-XANFLORRY [ZS]
Coluna
Scultural do Trator
Roxo
SOMBRA AZUL DAS RELÍQUIAS DESFIGURADAS [FM]
O das
nuvens refletidas no lago azul.
Os olhos
opacos caçam a luz mais e mais fugidia.
Ele pinta,
contudo.
O Cego
é nuvem dançante sobre o lago azul.
É nenúfar
embalado por um sopro.
É Ofélia
viva, coroada de nenúfares, banhando-se no lago azul.
O Cego
pinta com os olhos sem Sol.
O Cego
é o lago azul.
MODELO DESFIGURADO DA ATUALIDADE [FM]
projetando com frequência suas vivendas destinadas a encontros íntimos e a introspecção solar do mistério. Aos poucos a sombra descasca sua geografia interior e a contemplação das escadas no pasto nos faz cada vez mais errar os caminhos habituais. A atualidade predileta desponta na última janela da casa. Um albergue de superstições e mórbido erotismo. O grito anômalo do tempo cuja permanência é uma moléstia temperamental. Alguém me escute. Eu quero desenhar a sombra saindo do banho e a procedência orgíaca de seu crepúsculo nos salões de arte. Uma caixa de grafite e um enredo apanhado às pressas no gavetão de um colecionador. Eu quero. Se me ocorresse agora algum movimento, as linhas surgiriam como uma sociedade consagrada à metafísica. No entanto, a pintura perdeu movimento. A atualidade ocorre como um vício adernado. A sombra reflete apenas a usura do olhar.
BLUE CAVE [AB]
A primeira passagem está sobre as águas ocultas de Yerebatan.
É preciso seguir as retas colunas de mármore branco e cinza, branco e púrpura, caminhando
não sobre as pontes, mas sobre os peixes luminosos. No final do cansaço, encontra-se
a passagem aberta.
A segunda estava na Caverna
Azul, em um edifício abandonado em Londres, no feroz Peckham. Sendo tanta sua beleza,
a Caverna foi transferida com todo cuidado para o parque de esculturas de Yorkshire,
entre suaves colinas. Alguns dizem que a passagem mudou-se junto, irremediavelmente
apaixonada pelos cristais azuis. Outros afirmam que não, pois as passagens não se
mudam assim e à menor oscilação espacial simplesmente se fecham.
EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO
DO SURREALISMO 1919-2019
QUARTETO
KOLAX é uma carroça de
atores percorrendo os escombros da arte contemporânea com seu teatro automático.
Seus integrantes são Anita Borgia, Dr. Flor, Pedro Kz e Zuca Sardan. As imagens
que acompanham a edição, reconhecidas ou não, por efeito cênico, são estrategicamente
anônimas.
Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 125 | Janeiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO
MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019
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