terça-feira, 1 de janeiro de 2019

AS TÁBUAS RELAXADAS DA FOLIA


[cinco créditos automáticos de Zuca Sardan e Floriano Martins]


1. A CABEÇA MORDIDA MAIS PRÓXIMA

Dom Prócimus Sextante vinha pela calçada farolando alegremente:

Così, tutto bene…
Andiamo alla Trattoria…
a Xésare lo que xé
di Xéééé… zare

Reza a lenda que César gritava à noite perambulando pelo quintal: Onde está o que dizem ser meu! Onde está o que dizem ser meu! 
Sua mulher Augusta disse à filha: “Não repares, Papai hoje bebeu.”
Augusta mirava pela janela, e arfava o busto… preocupada, entristecida, disse pra sua filha: “Não repares, Pompília, teu papai turbado qual um Pissopata bebeu, por causa duma puta turca, a Clopata…”
De longe se nota que César tinha ao menos essa parecença com o Bretão Andriático, a
língua bem presa quando se trata de qualquer outro idioma. Daí as leis que ninguém entendia.
E o ostracismo de Delico e Cirico condenados a comer calamares em Palermo…
E as baionetas aturdidas com tantas espadas perdidas.
Não só espadas, mas também empadas perdidas…
As empadas eram apenas aludidas…
Mal eram aludidas… e já foram devoradas…
Por caprichosas dentadas que delas fizeram a espada de Dámocles moderna.
Dámocles, para o banquete seguinte, veio com elmo prussiano, que tem o pequeno para-raios no topo.
Pôs o elmo na mesa, de boca para cima, e exigiu que em sua taça improvisada fosse servido o melhor ponche da região… somente ébrio ele alcançava o equilíbrio que lhe tornou o mais famoso dos reis.
Com sua ponta para-raios, o elmo ficou plantado na mesa, pregado com um murro de Dámocles… não houve jeito de tirá-lo… Dámocles teve de alçar a mesa, pra que o vinho vertesse do elmo à sua boca… e depois, levou a mesa suspensa na cabeça até o carpinteiro mais próximo.


2. CAIPIROSKA LENDÁRIA

Minha serra da Boa Esperança, meu trenzinho caipira, a fumazza do trenzinho é do charuto puro Exu do Nestor Viralobos… Viralobos s’escondeu uma noite em Corumbá com o pajé que empalhava curiós e sabiás. Nestor fez de uma vareta mágica sua varinha orquestral, e dela começaram a saltar todos os bichos da floresta. Sempre que indagado, o pajé dizia não lembrar-se de nada daquilo. Talvez Viralobos lhe tenha dito: “SE contares pra alguém que tenho vareta mágica, te enfio o charuto Exu aceso no cu”. O pajé aposentou-se com fraudulento alzeimer, porém com o cu preservado, que passou a divagar em tonitruantes sons sobre os efeitos da magia sonora. E assim, tornou-se o pajé um genial pioneiro, pra toda a Latinamérica, da música eletrônica.


3. DISSABORES DA REPÚBLICA

A Noite começa quando você chega…

(E ela – a República – sorrindo respondeu; “o meu coração já era teu” e rebolou uma feroz lambada, no Bar Fossa… Deus sempre está do lado dos Grandes Batalhões.)

O eunuco Jeovários, secretamente ansiando por misterioso milagre, rogou à sua ama que lhe desse o lenço fungado ora purificado, sem lhe contar que dele aprontaria uma tanga que, por piedade divina, lhe trouxesse de volta, imaculados, os seus saudosos bagos perdidos.
Os bagos se foram, a mala de viagem foi encontrada vazia no banheiro da rodoviária. Já ninguém arrisca palpite sobre o miolo da tanga do eunuco.
A tanga de Jeovários está carregada de ondas hertezianas… O jornaleiro perneta foi utilizar mijatório e caiu fulminado. A polícia isolou o banheiro e chamou Doutor Pilatos para vir examinar.
Pilatos olhou por tudo quanto é lado, sem encontrar o ninho das ondas. Mandou buscar seus óleos reveladores e os espalhou pela casa inteira, sem esquecer a ferrugem dos grifos e os buracos onde se escondem as baratas. De um modo ou de outro, Pilatos triunfaria – como era de seu talante – sobre o enigma do morto perneta.
Terminada sua ação… Pilatos lavou as mãos com o sabonete italiano Avanti, o preferido do Rei Alberto, e sussurrou pro Estafeta: “E agora, meu bom rapaz, traga-me a Salomé…” E o Estafeta sorrindo respondeu: “Tio dela era o Herodes…”
Albertinho Piemontana tanto se deu bem com a linha italiana de beleza, o sabonete em especial, que tratou de vasculhar a memória e dali extrair umas frases latinas: Ah come mi piacciono le onde che il sapone fa sulla mia pelle, schiuma, schiuma, schiuma, questo sapone è la mia feccia. E após dois cascudos na careca do estafeta voltou a exigir: Porta la ragazza vera a me.
Estafeta foi buscar a Salomé num saco. “Entra no saco, boneca, não temos tempo a perder… vou te levar pro Rei de Zanzibar…” Salomé estala os dedos, aparece o Eunuco Gigante… Salomé dá uma reboladinha e diz… “Bolias, corta a cabeça desse rapaz e bota na bandeja, que já vai chegando a hora de eu dançar pro Herodes…”
A bandeja esperneava dizendo que havia sido outro o trato, outra a cabeça e com recheio de frutinhas sazonais, daí a espera pela estação benfazeja. Porém os tratos rasparam os pelos do corpo inteiro e já não havia quem os traduzisse em confiança.
Aproveitando tais hesitações, o Estafeta se escafedeu e trouxe uma sibilina mensagem pro Pilatos: “esadof, ues otup onroc”. Doutor Pilatos pigarreou e mandou  o Estafeta Aspirino prestíssimo trazer a Bruxa Airuxula (nariguda, mas gostosa) pra deschifrar a xarada talvez de Creta que estava escrita com tinta rosa no rótulo de uma ânfora de vinho falerno (ou de Palermo).
“É mais fácil tirar o chifre do macaco, do que aparar seu rabo irrequieto”, savotou a conversa a intrometida piranha do Bar Fossa.
“Mas macaco não tem chifre”, retrucou o experiente ornitorrinco, numa mesa de canto.
“Pois bem - explicou a piranha – por isto mesmo. Em Creta, com tinta rosa, são pintados os primeiros sorrisos de todos os bebês. Quando crescem eles então decidem se era mesmo riso ou choro satírico. Talvez por isto o surrealismo na Grécia seja o mais rico em todo o planeta.”
Na Grécia sim, mas, sobretudo, em Creta. O Príncipe Minotauro estimula o comércio, a marinha de cabotagem, as artes circenses, dramáticas e plásticas.
E as crianças nascem já com 20 anos… Porém com o direito de escolher, muito em breve, a idade que querem ter.
Direito de escolher a idade e o sexo.
Mas não espalhem, caso contrário serão banidos da escola todos os poetas surrealistas. Precisamos manter a maior discrição de nossa identidade, como o fazem, com astúcia divina, os deuses gregos.


4. A CORTE DAS CARTAS MARCADAS

Anúbis, o meirinho da Corte das Corujas, disse que três vezes o gado de ouro pastaria em suas terras até que os mendigos do mundo se reunissem em torno de um último banquete. No quartinho dos fundos da mansão onde as corujas deliberavam o passado da humanidade Anúbis guardava em suas paredes a história daquela matança.
Para o banquete dos mendigos, porém, Anúbis, sábio e prudente, exibiu uma lata de biscoitos que traziam sua imagem de perfil e asas abertas. E para beber, centenas de garrafas de água do Nilo… Os mendigos, no entanto, não ficaram satisfeitos…
“Queremos carne! Queremos carne!”
Anúbis soltou um belíssimo assovio, e acorreram centenas de crocodilos que devoraram todos os mendigos. O sumo-sacerdote Corjova, após as genuflexões de praxe, pleno de místico respeito, murmurou:
“Belíssima parábola mímica, Santo Anúbis… perfeita sinergia nas mordidas dos crocodilos!… E qual seria sua santa mensagem?…”
Anúbis palitou com elegância o bico com a unha e revelou:
“A ação sublime precede sua própria razão de ser”.
Soube-se depois que Corjova foi excomungado por práticas sodomitas, denunciado por um dos pajens que se recusou a ter tatuado na nádega direita o perfil de um crocodilo. Anúbis já velhinho, recordando os bons tempos em que atuava como meirinho na Corte das Corujas, ainda bebia sua preferida, a água do Nilo, e lamentava que os mendigos tenham dado à própria fome um perfil político. O evento acabou convertendo a luta de classes em luta de raças.


5. A SÚBITA CHEGADA A LUGAR NENHUM

O rolinho pródigo já está conosco, a caravana já deu água aos camelos e preparou os relâmpagos para as noites de Cabíria e Montenegro.
Deus Íbis já deu os rodopios rituais, de roleta do Egypto… há uns hieróglifos distribuídos em círculo, à volta de Íbis, quando ele cair em transe, seu bico mostrará o número vencedor, À sua volta, os Sacerdotes Corujas fazem suas apostas.
Os desertos se prontificam a aceitar o resultado, seja ele qual for. Os desertos são as sombras bem pastadas de tudo quanto nos falta. Anja, uma ingrata cameleira, coxa desde a infância, ao cair do primeiro camelo, que lhe pisou o pé, acrescentou ao sacolão dos hieróglifos três cópias do número três, assim aumentando as possibilidades do transe do Deus Íbis nos levar ao Terceiro Deserto de Aruamba, onde o tempo agigantou a lenda de que ali dorme um anão com três metros de altura.
A Caravana põe-se a caminho… 44 camelos com sua tendinha na corcova e todo o conforto moderno, água quente e fria, ventilador, radinho de pilha, tapetim…
e almofadas para três peregrinos, indo o cameleiro de fora, como de costume, sujeito ao frio e aos ventos uivantes… Uma escritora, que tinha duas irmãs, todas duas também escritoras, mas não tão boas quanto ela, escreveu uma adaptação desta cena, mas dispensou os camelos, e os substituiu por uma pirambeira na Escócia. Fez um sucesso danado, seu relato virou um besticela. Poderíamos mover-lhe uma ação judicial, por este plágio descarado, mas… para que atazanar a pobre mocita, que é meio nevrosada?… A caravana entrementes entrou por um oásis, mas a cachorrada não soltou sequer um latido. O cameleiro chefe, escolado, parou de chofre o comboio, segundo o velho princípio: Se a cachorrada não late… a caravana estaca.
Sabe-se que a cachorrada manteve um silêncio cúmplice das duas outras irmãs, enciumadas com o sucesso da espertinha do trio. Uma cena adaptada, para caber de todo na assinatura de quem a adaptou, precisa ser tão intensamente modificada ao ponto de se tornar impossível reconhecer a origem. Acontece que a garapeira, ao acrescentar em sua cena nova versão do anão gigante de Aruamba, manteve em sua algibeira distraída uma veste de fina seda com a qual era impossível resistir ao clima dos ventos uivantes. Os cães perceberam a troça e reagiram à altura. Que novo rumo dar a essa viagem?
Sheik Barbera, porém, tem suas manhas… Abre um pouco as bordas de sua tenda, e sem descer do camelo, lança um colossal pernil de porco à beira da estrada. Tão
colossal que não dá para um só cão levar na boca, e logo se juntam outros, começam uma briga furiosa, uivos, rosnados e…  latidos a granel. Automaticamente, a caravana
põe-se em marcha… Sheik Barbera liga o radinho de pilha e ouve-se a voz do Anão de três metros, sendo entrevistado pra Rádio Jazira pelo cronista Aladim: “Mas como lá podes ser anão, Xaluka, se tens três metros de altura?…” “Sou anão, Seu Aladim, porque tenho as pernas curtíssimas, bem mais curtas que as tuas… E os anões são definidos pelo talhe diminuto de suas pernas… O resto da altura não interessa, na classificação oficial do regulamento municipal.”
Barbera se sentiu ridicularmente diminuído diante da tirada de Xaluka. Discou três vezes o número de seu alterego e do lado de lá, da linha e do continente, se ouvia a voz ainda sonolenta de William Hanna, que, ao ouvir os resmungos do sócio, não vacilou e foi logo dizendo que tudo não passava de um vazamento de roteiro, algum espião dentro do estúdio deve ter recebido boa propina para rapinar o script. “Barbera, trate de voltar o mais rápido para casa e não conte a ninguém sobre mudança tão súbita de destino. Aqui nós refaremos os últimos capítulos de nossa fábula.”


EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019

QUARTETO KOLAX é uma carroça de atores percorrendo os escombros da arte contemporânea com seu teatro automático. Seus integrantes são Anita Borgia, Dr. Flor, Pedro Kz e Zuca Sardan. As imagens que acompanham a edição, reconhecidas ou não, por efeito cênico, são estrategicamente anônimas.


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 125 | Janeiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019





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