ANITA BORGIA: Azul é lindo demais,
Pedro. Depois de azul, vermelho escuro, tipo pitanga bem madura.
ZUCA SARDAN:
Pytanga, a cor oficial de nosso glorioso Lyceo!!!
DR. FLOR: Quando
as cores se misturam de que modo percebes o azul?
ZUCA SARDAN:
Ela pinta tudo de azul por cima, como fazia o Melarmek: L’AZUR!!! L’AZUR!!! L’AZUR!!!
ANITA BORGIA:
Pinto sim, mas só às vezes. Quando as cores se misturam é preciso olhar meio de
lado, para baixo, piscar duas vezes e aí a gente percebe o azul, que se apresenta
como um rastro na profundeza média da superfície.
DR. FLOR: Como sabes, o azul é a cor do pensamento,
graças à sua direta relação com o espaço e o céu claro. Qual o melhor contraponto
entre o azul e outra cor, quando buscas um equilíbrio para teu ser? E qual seria
essa outra cor? O alquimista Abraham le Juif narra o que se segue: O homem e a mulher de cor laranja sobre campo
azul celeste significam que o homem e a mulher não devem fixar sua esperança neste
mundo, pois o laranja assinala o desespero, e o fundo azul celeste a esperança do
céu. Tua segunda cor é o vermelho, que está relacionado com o sofrimento, o
amor e a sublimação. Como te deixas guiar por essa simbologia das cores?
ANITA BORGIA: Puxa, Dr. Flor, se as cores
me guiam eu não sei, elas que sabem. O azul se apresentou a mim na mais tenra infância
provavelmente, porque só me lembro dele lá, sem nunca não ter estado. O vermelho
escuro foi uma descoberta da vida bem muito adulta. Grudou em mim de repente. Durante
a juventude teve branco, muito branco, mas parece que branco não é cor… E quando
estou desequilibrada, fico olhando esta imagem aqui:
PEDRO KZ: https://m.youtube.com/watch?v=nD4ib9-laGY | Blau blau / Die Liebe ist blau / Blau ist der Meer /
der Meer auch blau ist
DR. FLOR: Considerando a passagem apócrifa
do Decálogo das Cores, como te saíste em teu curso de cromoterapia?
ANITA BORGIA: Me saí bastante bem e agora
conheço o decálogo completo, além dos textos apócrifos, como pudeste perceber. Devo
ter lido bem uma página e meia, que debati exaustivamente com os professores do
Lyceo Pitanga. É um conhecimento muito útil para a vida. Breve montarei consultório.
DR. FLOR: Dali dizia que a fase azul de Picasso
era fruto de um estágio profundamente depressivo,
no momento em que, em Paris, ele vivia com Max Jacob num quartinho, onde os dois
amigos partilhavam da mesma cama. O Dr. Nypopoulos, do Lyceo Pitanga, desprezava
essa versão, dizendo que o azul havia sido escolhido por Picasso por ser a cor de
uma imediata empatia com as peruas chiques de quem ele pretendia arrancar seus polpudos
quinhões.
ZUCA: Acho que
o Picasso, por via das dúvidas, dormiu no armário.
PEDRO KZ: [Breve interrupção
do diálogo para uma intervenção digressiva]
ou indagações sobre a localização problemática do azul
na relação bleu-blanc-rouge
invocando Malievitch e El Lissitzky para a mesa quadrada
do Kolax
Branco: ultra direita
Vermelho: povão sanguinário
Azul: ????
Em termos semafóricos,
é a cor que mais se aproxima aqui do verde (verde que abriria uma passagem no coração
revolucionário do vermelho). Quando a cor acolhedora irá tornar mais tépida a sublime
aspiração azulácea? Liberté? Fraternité? Égalité?
O azul não deveria estar
no meio? O branco no meio significa que a o lugar da transição é niilista e aristocrático?
ZUCA: O branco é das tetinhas
da Marianne pulando fora do decote no quadro de Delacroix. O vermelho é o da cara
do Padre Bernard ao ver as tetinhas fulgurantes. E o azul… é o do céu do Paraíso,
praticamente inatingível, por nossas almas. O que gera depressão nos crentes daqui
e dali.
ANITA BORGIA: Azul? Depressivo? Não, Dalí
não entendeu. Picasso já estava deprimido por ter de dividir aquela cama – ainda
por cima de solteiro – com o Max Jacob e por isso começou a pintar tudo em
azul, para dar um up na psiquê. Funcionou
e ele saiu para vender seus quadros assim, mais alto astral, e as peruas a-do-ra-ram
conversar com ele, e com as plumas delas no bolso Picasso pôde alugar um cafofo
melhorzinho.
ZUCA: E logo
Jacob chegou pressuroso pra dividir o cafofo, mas Picasso bateu-lhe a porta na fuça,
o que deixou o Max de esperanças esmaecidas.
DR. FLOR: Esmaecidas, as cores fogem para
onde? Há um inferno das cores?
ZUCA: Sim o Inferno
do Plutão, onde as cores são todas vermelhas bem vivas, e as demais… esmaecidas.
ANITA BORGIA: Há certa confusão relacionada
com este assunto, porque as cores esmaecidas não estão propriamente mortas, estão
só cansadas. Vão para um hospital, onde recebem transfusão de anilina.
ZUCA: E assim
se tornam todas azuis… e acabam elas todas indo pro céu onde os bem aventurados
ficam felizes, que seja lá tudo azul… azul… azul…
DR. FLOR: Hospital público? Há perigo de contágio,
infecção, loucura?
ANITA BORGIA: Há, sim, perigo de mistura de
tipos de cores. Um amarronzado final é o resultado para todas as que sofrem este
tipo de descuido.
DR. FLOR: É possível a existência de uma cor
louca, aquela que se revele à margem de toda ordem ou sistema? Dali deu ao Louco,
em seu tarô singular, a cor vermelha. Para muitos o personagem se assemelha ao Bobo.
Sir George Frazer recorda que são criaturas marcadas pela substituição nos sacrifícios
humanos. Mas o Louco não é propriamente um doente. O amarronzado orgíaco não lhe
cabe, porém não sei se também o vermelho. Qual te parece ser a verdadeira cor da
loucura?
ANITA BORGIA: A loucura, pelo menos no bom
sentido, que entendo ser a do Louco do tarô, é certamente multicolorida, como a
roupa do bobo, e caleidoscópica, pelo elemento surpresa.
DR. FLOR: Quando afinal chegamos ao fim de
uma cor?
ZUCA: Quando
voltamos a mergulhar num filme preto-e-branco, de preferência numa das magníficas
galhofas mudas do Charlie Chaplin.
ANITA BORGIA: Quando ela acaba.
EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO
DO SURREALISMO 1919-2019
QUARTETO
KOLAX é uma carroça de
atores percorrendo os escombros da arte contemporânea com seu teatro automático.
Seus integrantes são Anita Borgia, Dr. Flor, Pedro Kz e Zuca Sardan. As imagens
que acompanham a edição, reconhecidas ou não, por efeito cênico, são estrategicamente
anônimas.
Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 125 | Janeiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO
MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019
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