terça-feira, 1 de janeiro de 2019

TREM CARTHAGO: O FUTURO A TODA PROVA


Este é o capítulo infinito da peça Trem Carthago, escrita a quatro mãos por Floriano Martins e Zuca Sardan. O capítulo é uma conversa sem começo ou fim, que conta com a especial participação do poeta português Nicolau Saião.

FLORIANO Ouvi dizer que a nossa viagem seria finalizada com uma declaração de corpos da parte de seus feiticeiros. Onde? Sempre tivemos a ideia, naquele rojão sobre trilhos, de que o tempo não se converteria jamais em maleta metálica de oferta. Aos diabos menores a ideia de que tempo é dinheiro. Nosso trem partiu de um lugar inexistente no mapa e vislumbrava atender a uma realidade geográfica faturada por caprichos que até hoje desconhecemos as razões. Quem trouxe Lili Fong para nossa máquina e definiu os planos de rota? Alguém não acha que deveríamos falar disto antes que os pais dos mistérios cedam entrevista a um, ora, soube agora, a um português, justo a um português…

ZUCA Mas afinal… foi um português quem descobriu o Brasil!… Imagine só se fossem os espanhóis… Estaríamos todos de poncho, seguindo a procissão de Santo Azteco, e cantando boleros pra Maria Felix…

FLORIANO Ah quem sabe não foste tu, Zuca, a trazer Lili Fong a bordo! Ou aquele ouriço-cacheiro, o tal de Angino Venturis, de quem sempre desconfiei! Tivéssemos sido descobertos por espanhóis não seria garantia de que estaríamos hoje empanzinados de tanto comer farinha e menos ainda que já teríamos passado do Mobral. A realidade se equivoca sempre que faz planos para ela mesma. Quem diria que dos maxixes que deram no samba canção e na bossa nova nós acabaríamos chegando à música caipira e ao pagode!

ZUCA Friedrich Nietzsche sempre comprava bilhete de trem de ida-e-volta. É o Eterno Retorno. Quem trouxe pro trem a Lili Fong, suspeitam que foi o Frei Feijão, que se esforçava em catequizá-la, para que se livrasse dos pecados fenomenais, abandonasse as vãs fumaças do Budismo, e abraçasse a Fé Verdadeira pra salvação de sua alma imortal, o que serviria de estímulo pra catequese do Xibet. Quando ela já estava quase aderindo… tomou-se de súbita paixão pelo Presidente Xipong e pela Rebulição Gutural da China. O retratinho no frontispício do livrinho grená do Presidente de fardão abacate contra fundo abóbora tem um poder hypnótico, que mesmeriza o leitor e, mais ainda, a leitora, no caso a Lili Fong, numa fúria de fatal paixão cívica.

FLORIANO Fartos de tanto revender suvenires de barro nos Picos de Europa e na Serra da Meruoca, nossos heróis sem fronteiras pensaram em inventar um novo país, mesmo cientes de que a história nunca foi bem sucedida em tal empresa de fachada. Para tanto precisavam de um transporte transcontinental acima de qualquer suspeita. Nada melhor nessas horas do que a mala diplomática, esse acumulador orgiástico de pecados cívicos. Tudo funcionava muito bem no reino das mutretas, não fosse a velha usura sobre a qual tanto já havia alertado o poeta engaiolado dos cantos tortos. Inevitável. Enquanto uns faziam serão, outros perderam a receita de vista. Quando enfim desvelaram a senha da caixinha preta do desastre ecumênico, encontraram ali repousando parda eminência de um envelope sem lacre, contendo em letras gregas uma única frase: "O guardião saiu para pescar".

ZUCA – Nosso tramalhão é nietzscheano… o Eterno Retorno!… Nunca conseguiremos acabar a peça!… Nosso teatro é uma Máquina Infernal!… É o realejo perneta do Seu Mateus e seu macaquito que passa os bilhetinhos da sorte pras lindas caboclas da pracinha… Seu Mateus gira a manivela, gira a manivela sem parar e a música volta e revolta e nunca se acaba… E nunca se acaba…

FLORIANO Desde a primeira palavra que o roteiro aprendeu a caminhar através de todas as coisas. Eterno Retorno, Ouroboros, Moto Perpétuo, Ciranda-cirandinha… Nossas aves já nascem voando. Nossas sombras acasalam com miragens. A cada noite, antes de adentrar o véu dos sonhos, desfrutamos um chá de chaves elementares. Nossas letras estão destinadas a substituir. Nós somos o espírito da multiplicidade. O globo primordial que guarda a quintessência de todas as almas…

NICOLAU SAIÃO Começo com a expressão proverbial: "Quem somos, de onde viemos, para onde vamos?". Como é que vocês, poetas dobrados de entidades repletas de senso-de-humor, se posicionam ante esta proposição tão cheia de sugestões de diverso recorte?

ZUCA Boa pergunta, Nicolau… Quanto melhor a pergunta, mais difícil é de responder… Justamente dado o caótico trajeto do trem, já não sabemos mais se vamos pra Carthago, ou pro Popocatepel, e donde viemos, dado o caos do trajeto, já não sei mais exatamente donde, e me pergunto se o Floriano, mais jovem, e de melhor memória, mais catimbado, poderá nos responder, com maior precisão do que cá este desmemoriado velhote…

FLORIANO Com os seis sentidos bem afinados e sem que a posição seja ortodoxa, sob qualquer ângulo. O mundo, no que diz respeito à espécie humana, é uma casa de loucos, de modo que tempo e espaço são as duas arapucas mais tolas que existem, muito embora haja tolos suficientes no mundo para mantê-las em funcionamento.

NICOLAU SAIÃO Fala-se, frequentemente, de "máquina do mundo". Qual a vossa versão, ante esta ideia-chave, da "máquina-da-escrita" e como é que atuais poeticamente juntando uma à outra… ou vice-versa?

ZUCA A máquina-do-mundo nós já a encontramos funcionando antes que nossos antepassados da Pré-História soubessem fazer um saca-rolhas… ou que do primeiro ovo nascesse a primeira galinha, ou a primeira galinha botasse o primeiro ovo… Mas a Macaquinha Lucy já teria talvez inventado suas primeiras graças… bailando nos galhos da macieira, e inventando assim a Arte. E a Arte, por sua vez, criaria o Homem.

FLORIANO As nossas maquininhas desde cedo aprenderam a sair de casa faceiramente, ouvir o mundo, assim que integrar-se uma à outra é puro jazz. Sempre desconfiei que é indispensável ouvir o outro, aceitar as nuanças infinitas da existência, para que assim a vida alcance uma fluidez que acasale desafio e satisfação.

NICOLAU SAIÃO "Longos são os caminhos da vida…" diz a voz popular. É isto mesmo verdade ou apenas uma concepção imaginária, ou ilusória, na existência de um escritor desenquadrado como o vosso melhor estro nos indica?

ZUCA Os caminhos da vida fenomenal e da vida imaginada se entrecruzam e se alimentam um do outro. Sem a vida imaginada, a vida fenomenal seria meramente mecânica. E sem a vida fenomenal, a vida imaginada seria gratuita inanidade.

FLORIANO Mas o que não é ilusório em nossas vidas? A começar pelo próprio conceito de verdade, não é mesmo? Creio que esta consciência da ilusão é a combustão ideal para que nosso trem esteja em permanente movimento.

NICOLAU SAIÃO – Dizia o Outro que há os líquidos de fora e os de dentro… Os que nos banham, onde nos banhamos e os que nos banham o interior… Quais os líquidos de dentro que os meus manos mais estimam, ora com amor ora com alguma nostalgia e/ou também alegria (as festas… as fruições…) no dia ou na noitinha amável?

FLORIANO Os turcos, os japoneses. O hamame árabe e sua orgia de vapores. A fúria sutil de pétalas dos ofurôs. As infusões sem objetos medicinais. O ouro líquido da concupiscência. As páginas soltas, esvoaçantes, do mundo dos mitos.

ZUCA As águas de meu Mundo Interior são as Águas do Mytho… da minha visão mítica e totêmica do mundo… Um bosque maravilhoso onde me encontro com meus amigos e amigas, vivos e mortos, gnomos, figuras mythicas e históricas num tempo do Sempre Agora… me refastelo numa imensa banheira de bronze com as Três Damas belas, grandes e gordas, a Glória, a Fortuna e a Posteridade… Num banho de champanha Viúva Pivot, e as espumas do sabonete Araxá.

NICOLAU SAIÃO – E já que estamos em maré de festejos, o que melhor os pode acompanhar – acalentando iguarias?

ZUCA Feijão, arroz e farofa… Pastéis e Cerveja Caravaca… E pra sobremesa uvas de Baco e um vinho do Porto rosé… E pra completar, um palito e um café galão, ouvindo uma Fuga de Baco, no realejo roufenho de Seu Mateus.

FLORIANO Música, maestro. O espírito gozoso de todos os ritmos. Criar é viver e vice-versa. Tudo o que criamos e/ou vivemos é antes de tudo uma afirmação de ritmos, um bailado do espírito que se revela em todos os sentidos.

NICOLAU SAIÃO – Ouço um de vós (ou serão os dois?) a rir devagarinho… Até onde deixais ir esse pensamento maroto? Hein?

ZUCA Se não fosse a Santa Alegria, pra que serviria viver?… O choro é livre e tristezas não pagam dívidas… Como aconselhava Sócrates, qualquer prazer me diverte, mas… nem toda tristeza me faz chorar.

FLORIANO Não vamos a lugar nenhum sem humor. É um engano pensar que a tragédia seja a negação do riso. A tragédia é uma complexa forma de mistério de risos embaralhados, uma rede com suas tramas milenares. Ou, em uma análise mais apressada, a tragédia é o riso fora de lugar. A realidade é farsesca. Por isto o nosso trem se abre para as mais tresloucadas formas de percepção dessa matrona do apocalipse.

NICOLAU SAIÃO Às vezes há coisas e ritmos, conceitos aparentemente pequenos, que nos acompanham a vida inteira. Por exemplo: Do cerejo ao castanho bem me amanho; do castanho ao cerejo mal me vejo! Ou o som da sirene duma fábrica que todos os domingos, a serviço do município, apita às cinco da tarde. Não é isto verdade?

ZUCA Pois é. Há também o galo que canta pra que o Sol definitivamente desperte, e resolva se levantar. Já está velho o Sol, mas sempre de cabeleira ruiva, e sempre alerta, de olho na Lua. Mas… que vexame! Ele é o Rei dos Planetas!… Os demais estranham essa obsessão do Rei pela Lua, uma caprichosa, ora está gorda, ora está magra, ora está branca, ora está preta… Mas é justamente disso que o Sol gosta… Gosta que se enrosca… A lua sabe da paixão do Rei, e quando ele gruda nela em cega paixão, em pleno gozo, ela lhe diz: Ora pois, Rei podes ser pros teus planetas, mas pra mim tu és o meu galo carijó… o Sol geme e suspira… Ai, malvada!… E tu és minha galinha dangola!

FLORIANO A história é viciada em modelos, sempre se deixou fascinar por mimetismos de bom calibre. As artes e as liturgias, quanto mais populares, mais cativas dos bordões. Se as artes plásticas souberam desmontar os mecanismos do tempo, foi o teatro quem melhor revelou os truques do instante. No entanto, não devemos esquecer que em meio a uma densa floresta de símbolos, nada nos atrai mais do que a ressonância da arbitrariedade, cuja significação tem o aspecto de um mistério.

NICOLAU SAIÃO E aquela do Éluard, que disse um dia à amiga do Picasso que, no fundo e enquanto palestrante, o que mais gostaria era que o convidassem para uma em que não tivesse que falar com tema certo, mas deambular pelas recordações, pelos pequenos apontamentos de que se faz uma vida?!

ZUCA Ele tinha lá suas razões… Mas essa obsessão pelo tema não deve impedir a digressão… e as fintas estratégicas… El trabajo de la mano izquierda, como dizem os aficionados da tauromaquia, as belas verônicas… O mesmo encanto da esquiva pode se utilizar numa palestra seríssima… Os carrancudos talvez se irritem… Mas os verdadeiros amantes da Arte têm um culto pela fantasia… O ideal seria talvez um bom balanço entre o Rigor e a Fantasia.

FLORIANO Eu não chegaria a dizer que o tema acanha a imaginação. Até porque a liberdade não é um ganho e sim uma conquista, muito embora no fundo não passe de uma falácia. Agora, o Millôr Fernandes já havia deixado claro como uma faísca que “livre pensar é só pensar”. De modo que me atrai mais a ideia jazzística, de improvisação sobre um tema dado.

NICOLAU SAIÃO E agora, meus manos preferidos, neste momento, nesta horinha, não posso passar em branco o minuto (é uma maneira de falar) que fruí ao ver numa Agulha [Revista de Cultura] os deliciosos, suscitantes e encantadores bonecos do Zuca. Perdoem, mas este detalhe de humaníssimo recorte não o posso calar, ou estaria a atraiçoar a minha capacidade de me emocionar. Mano Flory, não vale bem um sursum corda?

FLORIANO Tanto quanto um nessun dorma, ou seja, Zuca sabe como poucos como nos deixar inquietos com seu traço instigante, com as agulhas flexíveis e profundas de sua pluma, cuja resultante satírica nos sugere buscar mais e mais ângulos em cada cena com que nos brinda.

ZUCA Meu bom Nicolau, teu velho mano está muito feliz pelas tuas palavras referentes às ztampas e bonecos do Zuca. É pra mim um grande privilégio ter em ti e no Floriano, dois artistas de alta sensibilidade e refinada percepção, um tal apreço pela minha arte de nacos-de-papel e museu-de-bolso. Gracias Miles. Evoééé… Baco!… Abraxas muchas!…

BOCARRA Alto lá! Isso aqui está parecendo uma sauna de periferia! Um rapapé com direito a sarapatel com pitada de faísca. Sei não! Até aqui ninguém falou de nós, os personagens da trama, sua razão de ser. Ninguém comenta sobre as artimanhas do poeta, os peitinhos da faquiresa, os tamancos da parteira, onde andará Lili Fong, o que planeja Dr. Barbão… Como é possível passar em linhas transparentes essa trupe de falastrões, esse bordel de muquiranas, essa carroça aloprada de ilusionistas… Parem as rotativas, precisamos apimentar a primeira plana. Sangue nas letras, o público exige sangue nas letras…

XIM – O lírico, o garçom, o maquinista, o entalado do papagaio, a bailarina, aquele tesão de domadora, ai meus cachos, aquela mulher…!

XUM – O reverendo, o mediador, o mata-mosquitos, o ouriço-cacheiro, o pai da presunção, o tal, o flibusteiro do rei, ai que horror, que trapo de gente…!

NICOLAU SAIÃO Ergueu o rosto e disse com ímpeto carinhoso: É que Lili Fong tem uma espécie de rival, pelo menos uma concorrente de se lhe tirar o chapéu: Maruska Falokrata, por alcunha a borboleta de Agosto! Sosthène levantou a mão e viu-se que estava entesado: Quando fores lá em casa não te esqueças de vestir cuecas de malha amarelas! Isso impedirá que te saiam malmequeres pelas orelhas! E ambos desataram a rir como se o diabo viesse sobre os seus passos.

ZUCA O Diabo tem seus dias de bom rapaz… E oferece seus prêmios, sobretudo os noturnos, que vêm em pacotes deslumbrantes… Os prêmios são as tentações?… Depende se Ele gosta do compadre… Se ele gosta, tudo bem… Mas se não gosta, a tentação, tão pronto se desembrulha o pacote, logo vira um pavoroso pesadelo. Agora, pra competir com Pai Gepeto da Mansão Celeste, também tem o Príncipe Plutone os seus eleitos… Trata-se de um caso de predestinação… E Depois??? O que vem depois, ninguém sabe… Dante esteve no Inferno, e contou horrores… Comentando o caso com nosso Repórter, o Príncipe disse: Ora, o Dante!… um ignorantaço… Só lhe mostrei a oficina com escravos proletas, e fundos de bairros miseráveis, e fábricas de lixo… Mas o divinal Hotel-Cassino Averno… ele nem sabe que existe… Ah-Rá-Rá-Rô- Rááááááááá!!!…

FLORIANO – Essa conversa se repete como um gravador engasgado com a tecla play, o Diabo se rindo pela bexiga, as calçolas de Lili Fong revoando acima do varal arrepiando o mormaço e dando os beiços para quem ouse dela duvidar. Aquele que leva a verdade aos lábios deve estar pronto para soletrar os mil nomes do fel. Uma paisagem bem passada nos deixa com os lençóis encardidos de tanto desejo amargado. As visões viram bagaços. Os horrores desconhecem suas vítimas. O destino passa correndo sem saber aonde ir. Quem de nós disfarçaria agora a voz que nunca escutou?

NICOLAU SAIÃO Na minha frente o quadrado lilás com pintinhas cinzentas; atrás de mim um pano adejando na frescura da manhã. Um pouco difusa, ao longe, uma voz que de repente proclamou como se estivesse com apetite de muitas coisas sublimes: E eis que os gafanhotos romperam a cantar!

ZUCA Trata-se de um caso raríssimo!… Os grilos, sim, gostam de cantar… E os vagalumes de alumiar… Já os gafanhotos!… São um bando de esfomeados, só pensam em devorar nossas plantações!!!… Mas agora que cismaram de cantar… que farão os grilos então? Perguntamos ao nosso Repórter, que nos esclareceu: Justamente, os Gafanhotos decidiram abraçar a vida artística!… E agora virão então… terríveis Pragas de Grilos!… Atacarão o Egito e a Mesopotâmia!… Até que… a deusa Ishtar resolva… dançar!… E então…

FLORIANO – Então a selva sairá para pescar piabas nos lodaçais de desencantadas mitologias. As enciclopédias serão editadas com páginas extras para anotações das pragas mais imprevisíveis. Vírus regurgitados pelos deuses que tostaram grilos falantes para uma festinha atrás do muro do Olimpo. Ishtar, morena rosa, / que antes de mim era toda prosa, / bem comida a deusa loba, / de repente se vestiu com outra estopa, / e me deixou, samba lê-lê, / com sete palmos de memória por saber… Tamborilei esse repente a noite inteira, a casa caindo, o roçado açoitado pelo fogo, as misérias indo e vindo, sem saber onde ficar.

NICOLAU SAIÃO Está muito frio para uma menina andar sem roupas pela rua, meu caro Bocarra. Era um rapaz alto, de olhos arregalados e com uma pequena porta aberta nas costas. Olhando-se por ela via-se uma ampla sala com duas largas janelas dando para um jardim onde pastavam cavalinhos. Quando estava cerrada, uma espécie de cicatriz como um rio estreito brilhava levemente na luz da tarde a crescer. Vocês sabem que música era a que se ouvia? Pois nem mais nem menos que a Toada para porquinhos indefesos, dos ingleses românticos! E tu, Bocarra, meu chapa donairoso, como foste parar à tropa?!

ZUCA – Confidenciou-me Dante que o Bocarra é um jornaleiro falastrão e façanhudo, e no mais um vão paspalho, só de bafo, e berros orgiásticos pra vender seus pasquins. Mas… completou o mestre, com amertume… Não conseguiu vender sequer um único exemplar da minha Divina Comédia!… Um paspalho analfabeto esse Bocarra!!!… Vai parar no Infeeeeernoooo!… Pra acalmar o Vate, eu lhe perguntei: Mas como podemos saber se o Bocarra vai cair mesmo no Inferno?… E Dante, com sádico brilho no olhar, lugubremente me retorquiu: Porque, com a total exclusividade que o Príncipe me ofereceu, sou eu quem escreve a História do Inferno!…

BOCARRA Este espertalhão a todos está a levar na meia boca. Tergiversa como uma putinha nova descendo escadas em salto alto. Ouviu de longe o nome de Lili Fong, porém o que saberá de seu romance malsinado com o imperador chinês?! Perguntem a ele, sobre qualquer um da trupe…

MARUSKA FALOKRATA – E como ousa o alentejano das Arábias dedilhar as sílabas de meu nome como se eu fora um pastel de feira!

FLORIANO – Saiotão, talvez seja a hora de indagares sobre dois ou três dos personagens de nossa trama, antes que provoques aqui uma celeuma geral e esse bando de loucos vire o trem e comece outra viagem. Está em tuas mãos acalmar a malucada…

NICOLAU SAIÃO – Reparem: em certas noites, logo após o crepúsculo, espalha-se como que uma leve música nos parques da povoação. Será ilusão dos nossos sentidos, ou melhor, desejo intemerato de maravilhas desconhecidas, mas que se intuem no mais íntimo de nós? Certa vez perguntei a Maurício Tavastabir o que pensava do que lhe expunha. E ele, com uma sombra doce no olhar, retorquiu:

MAURÍCIO TAVASTABIR – Algumas noites são agressivas ao telefone. Mesmo aquelas meninas fagueiras de botõezinhos em flor, cuja voz possui um frescor diurno. As noites com seus corpos à mão e sua melancólica acústica. Algumas delas escondem os espelhos atrás das cômodas.

ZUCA – Telefone tocando a sinete, Criado-Mudo batendo a gaveta, agita a noite pruma Tragédia Azteka… Nosso Trem Fantasma, mesmo encalhado e abandonado, nalgum recanto perdido duma estrada sem fim nem começo, é sempre o palco sagrado preferido pelas cruéis Deusas de Acapulco, pra perfazerem sua Dança Macabra.

FLORIANO – A imensidão do quarto sugere ao criado-mudo não dar um pio com a comadre. Gerânios começam a brotar de um copo vazio. A memória acode a tudo o que pensa ser fruto da imaginação. O rei está nu… E tem um guaxinim no bolso à esquerda de seu umbigo expatriado.

NICOLAU SAIÃO – O engendro… era formado por pedaços dispersos de corpos ligados – e não unidos! –, pelo ardil da eletricidade. Daí que o enamorado de Lili Fong ficasse de repente com uma cara de parvo que só visto! Ele nada conseguia saber… Saberia o que dizer, quando o extremo calor tivesse abandonado o percurso do dia que alguns dificilmente aguentavam?

ZUCA – Lili Fong é duma atroz persistência em sempre reaparecer. E tem o dom de criar uma paixão obsessiva, que agora então agita os esqueletos da plateia que, provocados pelos meneios dela, se pegam num pancrácio de ultra-tumba… Rola uma caveira aqui, um fêmur acolá…

FLORIANO – Vítor, Vítor, até hoje o bom pastor desconhece a origem da rabeca que lhe deixou vesgo. Errou na quantidade de sombra que pôs em seu Frankenstein. De sua garganta ecoavam rios espessos de equações aos tropeços. Há um momento na criação em que todas as frontes são tomadas por uma lodacenta identidade. Quem esteve aqui até agora? Quantos ainda virão?

NICOLAU SAIÃO – Olá, meu tão seguro comparsa de viagens! Olá, meu noitibó das florestas! Ergue o teu braço como se estivesses num aeroporto dos que abrem os horizontes dos sete pontos cardeais. Pega neste pano e agita-o na direção Norte, enquanto todavia olhas para o Sul. E registra: os meus dois confrades, amigos de aventuras e de estúrdias em ilhas de que não se conhece a descoberta, sentem de repente vontade de gritar baixinho! Capici?

ZUCA – Gritar baixinho pra Morte, o Capitão do Trem Fantasma, não nos ouvir e querer nos catar antes da hora… Oh, Morte, nosso Capitão!… O telefone está chamando, não ouves?… Certamente é Caronte pra te dizer de não recolheres passageiros por ora, nem sequer voluntários, porque sua barca está fazendo água…

FLORIANO – Nem todo fim sabe a quantas deve seu começo. Ante os conselhos da verdade o mundo é surdo como uma porta. A fantasia não larga mão de seus caprichos mais fugazes. Viver não necessita paraquedas, trata-se de ficar íntimo de todos os abismos e precipícios. Bota mais uma aqui…

XAVIER CHAVIGNY ⎼ Bota nada. Acabou. Já chega. C’est fini, bonitões. Vamos parar por aqui. Alguém quer fazer as malditas considerações finais? Quem se atreve?

NICOLAU SAIÃO – Atrevo-me com alguma doçura e certa dose de malandrice: de que forma aceitar indulgências perenes e solenes por detrás da nuca do Padre Santo? Este, que arrola certificados de mau comportamento como se fosse um buquemeiquer citadino, um dos que veem nas apostas a melhor forma de ganhar a suada vida, que engrola orações por detrás de vidros fumados, não faz mais que elevar aos altares avestruzes e girafas. Mas já santificadas pelo ergo sum da inspiração jesuítica. Já munidas de meias pretas nas íntimas parcelas de um cavanhaque delicado – enquanto São Pedro e São Paulo descascam amendoins para serem pelo menos tão sagazes como os mandris do deserto do Calaári. E depois disto que dizer mais do que "agarra aí no volante" ou, com a mão esquerda firmemente colocada no cangote de São Malaquias, rezar para que as cervejas tenham um sabor tão suave e arremelgado como uma hóstia de fina farinha de mandioca?


ZUCA – Realmente, seria esta uma bela modernização do culto: cerveja substitui água benta; empadas substituem as hóstias; e os pecados são esponjados com Sabão Baco. Boas sugestões, Nicolau. Bravo!… Com essas audaciosas inovações, talvez a Santa Madre ganhe alguns novos paroquianos, porque as igrejas estão ficando desertas, e são vendidas à prestação pra instalação de novas mesquitas. Mas o Paraíso mourisco tem belas Huris, Odaliscas belíssimas, pra receber os fiéis. E nós, em nosso Paradiso?… O que nos oferecem?… Aproveitemos então agora umas boas cervejas, e vamos comer as carpas do dia!…

FLORIANO – Cerveja? Sim, vamos logo resolver essa parada. Eu quero a minha bem gelada. Todas as minhas falas têm apenas um propósito: calar na hora certa. Não envelheçam nos lendo. Eu não direi mais nada.

ZUCAAlea jacta est. Faites vos jeux. Rien ne va plus. Uma só ficha no tapete, lançada no número treze. A Fábula se acabou. Levantai-vos, esqueletos!… Queremos aplausos!…



EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019

QUARTETO KOLAX é uma carroça de atores percorrendo os escombros da arte contemporânea com seu teatro automático. Seus integrantes são Anita Borgia, Dr. Flor, Pedro Kz e Zuca Sardan. As imagens que acompanham a edição, reconhecidas ou não, por efeito cênico, são estrategicamente anônimas.


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 125 | Janeiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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