Este
é o capítulo infinito da peça Trem
Carthago, escrita a quatro mãos por Floriano
Martins e Zuca Sardan. O capítulo é uma conversa sem começo ou fim, que conta com
a especial participação do poeta português Nicolau Saião.
FLORIANO – Ouvi
dizer que a nossa viagem seria finalizada com uma declaração de corpos da parte
de seus feiticeiros. Onde? Sempre tivemos a ideia, naquele rojão sobre trilhos,
de que o tempo não se converteria jamais em maleta metálica de oferta. Aos diabos
menores a ideia de que tempo é dinheiro. Nosso trem partiu de um lugar inexistente
no mapa e vislumbrava atender a uma realidade geográfica faturada por caprichos
que até hoje desconhecemos as razões. Quem trouxe Lili Fong para nossa máquina e
definiu os planos de rota? Alguém não acha que deveríamos falar disto antes que
os pais dos mistérios cedam entrevista a um, ora, soube agora, a um português, justo
a um português…
ZUCA – Mas
afinal… foi um português quem descobriu o Brasil!… Imagine só se fossem os espanhóis…
Estaríamos todos de poncho, seguindo a procissão de Santo Azteco, e cantando boleros
pra Maria Felix…
FLORIANO – Ah
quem sabe não foste tu, Zuca, a trazer Lili Fong a bordo! Ou aquele ouriço-cacheiro,
o tal de Angino Venturis, de quem sempre desconfiei! Tivéssemos sido descobertos
por espanhóis não seria garantia de que estaríamos hoje empanzinados de tanto comer
farinha e menos ainda que já teríamos passado do Mobral. A realidade se equivoca
sempre que faz planos para ela mesma. Quem diria que dos maxixes que deram no samba
canção e na bossa nova nós acabaríamos chegando à música caipira e ao pagode!
ZUCA – Friedrich
Nietzsche sempre comprava bilhete de trem de ida-e-volta. É o Eterno Retorno. Quem
trouxe pro trem a Lili Fong, suspeitam que foi o Frei Feijão, que se esforçava em
catequizá-la, para que se livrasse dos pecados fenomenais, abandonasse as vãs fumaças
do Budismo, e abraçasse a Fé Verdadeira pra salvação de sua alma imortal, o que
serviria de estímulo pra catequese do Xibet. Quando ela já estava quase aderindo…
tomou-se de súbita paixão pelo Presidente Xipong e pela Rebulição Gutural da China.
O retratinho no frontispício do livrinho grená do Presidente de fardão abacate contra
fundo abóbora tem um poder hypnótico, que mesmeriza o leitor e, mais ainda, a leitora,
no caso a Lili Fong, numa fúria de fatal paixão cívica.
FLORIANO – Fartos
de tanto revender suvenires de barro nos Picos de Europa e na Serra da Meruoca,
nossos heróis sem fronteiras pensaram em inventar um novo país, mesmo cientes de
que a história nunca foi bem sucedida em tal empresa de fachada. Para tanto precisavam
de um transporte transcontinental acima de qualquer suspeita. Nada melhor nessas
horas do que a mala diplomática, esse acumulador orgiástico de pecados cívicos.
Tudo funcionava muito bem no reino das mutretas, não fosse a velha usura sobre a
qual tanto já havia alertado o poeta engaiolado dos cantos tortos. Inevitável. Enquanto
uns faziam serão, outros perderam a receita de vista. Quando enfim desvelaram a
senha da caixinha preta do desastre ecumênico, encontraram ali repousando parda
eminência de um envelope sem lacre, contendo em letras gregas uma única frase: "O
guardião saiu para pescar".
ZUCA – Nosso tramalhão é nietzscheano… o Eterno
Retorno!… Nunca conseguiremos acabar a peça!… Nosso teatro é uma Máquina Infernal!…
É o realejo perneta do Seu Mateus e seu macaquito que passa os bilhetinhos da sorte pras lindas caboclas
da pracinha… Seu Mateus gira a manivela, gira a manivela sem parar e a música volta
e revolta e nunca se acaba… E nunca se acaba…
FLORIANO – Desde
a primeira palavra que o roteiro aprendeu a caminhar através de todas as coisas.
Eterno Retorno, Ouroboros, Moto Perpétuo, Ciranda-cirandinha… Nossas aves já nascem
voando. Nossas sombras acasalam com miragens. A cada noite, antes de adentrar o
véu dos sonhos, desfrutamos um chá de chaves elementares. Nossas letras estão destinadas
a substituir. Nós somos o espírito da multiplicidade. O globo primordial que guarda
a quintessência de todas as almas…
NICOLAU
SAIÃO – Começo
com a expressão proverbial: "Quem somos, de onde viemos, para onde vamos?".
Como é que vocês, poetas dobrados de entidades repletas de senso-de-humor, se posicionam
ante esta proposição tão cheia de sugestões de diverso recorte?
ZUCA – Boa
pergunta, Nicolau… Quanto melhor a pergunta, mais difícil é de responder… Justamente
dado o caótico trajeto do trem, já não sabemos mais se vamos pra Carthago, ou pro
Popocatepel, e donde viemos, dado o caos do trajeto, já não sei mais exatamente
donde, e me pergunto se o Floriano, mais jovem, e de melhor memória, mais catimbado,
poderá nos responder, com maior precisão do que cá este desmemoriado velhote…
FLORIANO – Com os
seis sentidos bem afinados e sem que a posição
seja ortodoxa, sob qualquer ângulo. O mundo, no que diz respeito à espécie humana,
é uma casa de loucos, de modo que tempo e espaço são as duas arapucas mais tolas
que existem, muito embora haja tolos suficientes no mundo para mantê-las em funcionamento.
NICOLAU
SAIÃO – Fala-se,
frequentemente, de "máquina do mundo". Qual a vossa versão, ante esta
ideia-chave, da "máquina-da-escrita" e como é que atuais poeticamente
juntando uma à outra… ou vice-versa?
ZUCA – A
máquina-do-mundo nós já a encontramos funcionando antes que nossos antepassados
da Pré-História soubessem fazer um saca-rolhas… ou que do primeiro ovo nascesse
a primeira galinha, ou a primeira galinha botasse o primeiro ovo… Mas a Macaquinha
Lucy já teria talvez inventado suas primeiras graças… bailando nos galhos da macieira,
e inventando assim a Arte. E a Arte, por sua vez, criaria o Homem.
FLORIANO – As nossas
maquininhas desde cedo aprenderam a sair de casa faceiramente, ouvir o mundo, assim
que integrar-se uma à outra é puro jazz. Sempre desconfiei que é indispensável ouvir
o outro, aceitar as nuanças infinitas da existência, para que assim a vida alcance
uma fluidez que acasale desafio e satisfação.
NICOLAU
SAIÃO – "Longos
são os caminhos da vida…" diz a voz popular. É isto mesmo verdade ou apenas
uma concepção imaginária, ou ilusória, na existência de um escritor desenquadrado
como o vosso melhor estro nos indica?
ZUCA – Os
caminhos da vida fenomenal e da vida imaginada se entrecruzam e se alimentam um
do outro. Sem a vida imaginada, a vida fenomenal seria meramente mecânica. E sem
a vida fenomenal, a vida imaginada seria gratuita inanidade.
FLORIANO – Mas o
que não é ilusório em nossas vidas? A começar pelo próprio conceito de verdade,
não é mesmo? Creio que esta consciência da ilusão é a combustão ideal para que nosso
trem esteja em permanente movimento.
NICOLAU SAIÃO – Dizia o Outro que há os líquidos de fora e os de dentro… Os que nos banham,
onde nos banhamos e os que nos banham o interior… Quais os líquidos de dentro que
os meus manos mais estimam, ora com amor ora com alguma nostalgia e/ou também alegria
(as festas… as fruições…) no dia ou na noitinha amável?
FLORIANO – Os turcos,
os japoneses. O hamame árabe e sua orgia de vapores. A fúria sutil de pétalas dos
ofurôs. As infusões sem objetos medicinais. O ouro líquido da concupiscência. As
páginas soltas, esvoaçantes, do mundo dos mitos.
ZUCA – As
águas de meu Mundo Interior são as Águas do Mytho… da minha visão mítica e totêmica
do mundo… Um bosque maravilhoso onde me encontro com meus amigos e amigas, vivos
e mortos, gnomos, figuras mythicas e históricas num tempo do Sempre Agora… me refastelo
numa imensa banheira de bronze com as Três
Damas belas, grandes e gordas, a Glória, a Fortuna e a Posteridade… Num banho de
champanha Viúva Pivot, e as espumas do sabonete Araxá.
NICOLAU SAIÃO – E já que estamos em maré de festejos, o que melhor os pode acompanhar – acalentando iguarias?
ZUCA – Feijão,
arroz e farofa… Pastéis e Cerveja Caravaca… E pra sobremesa uvas de Baco e um vinho
do Porto rosé… E pra completar, um palito e um café galão, ouvindo uma Fuga de Baco,
no realejo roufenho de Seu Mateus.
FLORIANO – Música,
maestro. O espírito gozoso de todos os ritmos. Criar é viver e vice-versa. Tudo
o que criamos e/ou vivemos é antes de tudo uma afirmação de ritmos, um bailado do
espírito que se revela em todos os sentidos.
NICOLAU SAIÃO – Ouço um de vós (ou serão os dois?) a rir devagarinho… Até onde deixais
ir esse pensamento maroto? Hein?
ZUCA – Se
não fosse a Santa Alegria, pra que serviria viver?… O choro é livre e tristezas
não pagam dívidas… Como aconselhava Sócrates, qualquer prazer me diverte, mas… nem
toda tristeza me faz chorar.
FLORIANO – Não vamos
a lugar nenhum sem humor. É um engano pensar que a tragédia seja a negação do riso.
A tragédia é uma complexa forma de mistério de risos embaralhados, uma rede com
suas tramas milenares. Ou, em uma análise mais apressada, a tragédia é o riso fora
de lugar. A realidade é farsesca. Por isto o nosso trem se abre para as mais tresloucadas
formas de percepção dessa matrona do apocalipse.
NICOLAU
SAIÃO – Às vezes há coisas e ritmos, conceitos aparentemente
pequenos, que nos acompanham a vida inteira. Por exemplo: Do cerejo ao castanho
bem me amanho; do castanho ao cerejo mal me vejo! Ou o som da sirene duma fábrica
que todos os domingos, a serviço do município, apita às cinco da tarde. Não é isto
verdade?
ZUCA – Pois
é. Há também o galo que canta pra que o Sol definitivamente desperte, e resolva
se levantar. Já está velho o Sol, mas sempre de cabeleira ruiva, e sempre alerta,
de olho na Lua. Mas… que vexame! Ele é o Rei dos Planetas!… Os demais estranham
essa obsessão do Rei pela Lua, uma caprichosa, ora está gorda, ora está magra, ora
está branca, ora está preta… Mas é justamente disso que o Sol gosta… Gosta que se
enrosca… A lua sabe da paixão do Rei, e quando ele gruda nela em cega paixão, em
pleno gozo, ela lhe diz: Ora pois, Rei podes
ser pros teus planetas, mas pra mim tu és o meu galo carijó… o Sol geme e suspira…
Ai, malvada!… E tu és minha galinha dangola!…
NICOLAU
SAIÃO – E aquela do Éluard, que disse um dia à amiga do
Picasso que, no fundo e enquanto palestrante, o que mais gostaria era que o convidassem
para uma em que não tivesse que falar com tema certo, mas deambular pelas recordações,
pelos pequenos apontamentos de que se faz uma vida?!
ZUCA – Ele
tinha lá suas razões… Mas essa obsessão pelo tema não deve impedir a digressão…
e as fintas estratégicas… El trabajo de la
mano izquierda, como dizem os aficionados da tauromaquia, as belas verônicas…
O mesmo encanto da esquiva pode se utilizar numa palestra seríssima… Os carrancudos
talvez se irritem… Mas os verdadeiros amantes da Arte têm um culto pela fantasia…
O ideal seria talvez um bom balanço entre o Rigor e a Fantasia.
FLORIANO – Eu não
chegaria a dizer que o tema acanha a imaginação. Até porque a liberdade não é um
ganho e sim uma conquista, muito embora no fundo não passe de uma falácia. Agora,
o Millôr Fernandes já havia deixado claro como uma faísca que “livre pensar é só
pensar”. De modo que me atrai mais a ideia jazzística, de improvisação sobre um
tema dado.
NICOLAU
SAIÃO – E agora, meus manos preferidos, neste momento, nesta
horinha, não posso passar em branco o minuto (é uma maneira de falar) que fruí ao
ver numa Agulha [Revista de Cultura] os deliciosos, suscitantes e encantadores bonecos do Zuca. Perdoem, mas este detalhe
de humaníssimo recorte não o posso calar, ou estaria a atraiçoar a minha capacidade
de me emocionar. Mano Flory, não vale bem um sursum
corda?
FLORIANO – Tanto
quanto um nessun dorma, ou seja, Zuca
sabe como poucos como nos deixar inquietos com seu traço instigante, com as agulhas
flexíveis e profundas de sua pluma, cuja resultante satírica nos sugere buscar mais
e mais ângulos em cada cena com que nos brinda.
ZUCA – Meu
bom Nicolau, teu velho mano está muito feliz pelas tuas palavras referentes às ztampas
e bonecos do Zuca. É pra mim um grande privilégio ter em ti e no Floriano, dois
artistas de alta sensibilidade e refinada percepção, um tal apreço pela minha arte
de nacos-de-papel e museu-de-bolso. Gracias Miles. Evoééé… Baco!… Abraxas muchas!…
BOCARRA – Alto lá!
Isso aqui está parecendo uma sauna de periferia! Um rapapé com direito a sarapatel
com pitada de faísca. Sei não! Até aqui ninguém falou de nós, os personagens da
trama, sua razão de ser. Ninguém comenta sobre as artimanhas do poeta, os
peitinhos da faquiresa, os tamancos da parteira, onde andará Lili Fong, o que planeja
Dr. Barbão… Como é possível passar em linhas transparentes essa trupe de falastrões,
esse bordel de muquiranas, essa carroça aloprada de ilusionistas… Parem as rotativas,
precisamos apimentar a primeira plana. Sangue nas letras, o público exige sangue
nas letras…
XIM – O lírico, o garçom, o maquinista, o entalado
do papagaio, a bailarina, aquele tesão de domadora, ai meus cachos, aquela mulher…!
XUM – O reverendo, o mediador, o mata-mosquitos,
o ouriço-cacheiro, o pai da presunção, o tal, o flibusteiro do rei, ai que horror,
que trapo de gente…!
NICOLAU
SAIÃO – Ergueu o rosto e disse com ímpeto carinhoso: É que Lili Fong tem uma espécie de rival, pelo
menos uma concorrente de se lhe tirar o chapéu: Maruska Falokrata, por alcunha a
borboleta de Agosto! Sosthène levantou
a mão e viu-se que estava entesado: Quando
fores lá em casa não te esqueças de vestir cuecas de malha amarelas! Isso impedirá
que te saiam malmequeres pelas orelhas! E ambos desataram a rir como se o diabo
viesse sobre os seus passos.
FLORIANO – Essa conversa se repete como um gravador
engasgado com a tecla play, o Diabo se rindo pela bexiga, as calçolas de Lili Fong
revoando acima do varal arrepiando o mormaço e dando os beiços para quem ouse dela
duvidar. Aquele que leva a verdade aos lábios deve estar pronto para soletrar os
mil nomes do fel. Uma paisagem bem passada nos deixa com os lençóis encardidos de
tanto desejo amargado. As visões viram bagaços. Os horrores desconhecem suas vítimas.
O destino passa correndo sem saber aonde ir. Quem de nós disfarçaria agora a voz
que nunca escutou?
NICOLAU SAIÃO – Na
minha frente o quadrado lilás com pintinhas cinzentas; atrás de mim um pano adejando
na frescura da manhã. Um pouco difusa, ao longe, uma voz que de repente proclamou
como se estivesse com apetite de muitas coisas sublimes: E eis que os gafanhotos romperam a cantar!
ZUCA – Trata-se de um caso
raríssimo!… Os grilos, sim, gostam de cantar… E os vagalumes de alumiar… Já os gafanhotos!…
São um bando de esfomeados, só pensam em devorar nossas plantações!!!… Mas agora
que cismaram de cantar… que farão os grilos então? Perguntamos ao nosso Repórter,
que nos esclareceu: Justamente, os Gafanhotos
decidiram abraçar a vida artística!… E agora virão então… terríveis Pragas de
Grilos!… Atacarão o Egito e a Mesopotâmia!… Até que… a deusa Ishtar resolva… dançar!…
E então…
FLORIANO – Então a selva sairá para pescar piabas
nos lodaçais de desencantadas mitologias. As enciclopédias serão editadas com páginas
extras para anotações das pragas mais imprevisíveis. Vírus regurgitados pelos deuses
que tostaram grilos falantes para uma festinha atrás do muro do Olimpo. Ishtar, morena rosa, / que antes de mim era toda
prosa, / bem comida a deusa loba, / de repente se vestiu com outra estopa, / e me
deixou, samba lê-lê, / com sete palmos de memória por saber… Tamborilei esse
repente a noite inteira, a casa caindo, o roçado açoitado pelo fogo, as misérias
indo e vindo, sem saber onde ficar.
NICOLAU SAIÃO – Está
muito frio para uma menina andar sem roupas pela rua, meu caro Bocarra. Era um rapaz
alto, de olhos arregalados e com uma pequena porta aberta nas costas. Olhando-se
por ela via-se uma ampla sala com duas largas janelas dando para um jardim onde
pastavam cavalinhos. Quando estava cerrada, uma espécie de cicatriz como um rio
estreito brilhava levemente na luz da tarde a crescer. Vocês sabem que música era
a que se ouvia? Pois nem mais nem menos que a Toada para porquinhos indefesos, dos ingleses românticos! E tu, Bocarra,
meu chapa donairoso, como foste parar à tropa?!
ZUCA – Confidenciou-me Dante que o Bocarra é um jornaleiro falastrão
e façanhudo, e no mais um vão paspalho, só de bafo, e berros orgiásticos pra vender
seus pasquins. Mas… completou o mestre, com amertume… Não conseguiu vender sequer um
único exemplar da minha Divina Comédia!…
Um paspalho analfabeto esse Bocarra!!!… Vai parar no Infeeeeernoooo!… Pra acalmar
o Vate, eu lhe perguntei: Mas como podemos saber se o Bocarra vai cair mesmo no
Inferno?… E Dante, com sádico brilho no olhar, lugubremente me retorquiu: Porque, com a total exclusividade que o Príncipe
me ofereceu, sou eu quem escreve a História do Inferno!…
BOCARRA – Este espertalhão
a todos está a levar na meia boca. Tergiversa como uma putinha nova descendo escadas
em salto alto. Ouviu de longe o nome de Lili Fong, porém o que saberá de seu romance
malsinado com o imperador chinês?! Perguntem a ele, sobre qualquer um da trupe…
MARUSKA FALOKRATA – E como ousa o alentejano das Arábias dedilhar
as sílabas de meu nome como se eu fora um pastel de feira!
FLORIANO – Saiotão, talvez seja a hora de indagares
sobre dois ou três dos personagens de nossa trama, antes que provoques aqui uma
celeuma geral e esse bando de loucos vire o trem e comece outra viagem. Está em
tuas mãos acalmar a malucada…
NICOLAU
SAIÃO –
Reparem: em certas noites, logo após o crepúsculo, espalha-se como que uma leve
música nos parques da povoação. Será ilusão dos nossos sentidos, ou melhor, desejo
intemerato de maravilhas desconhecidas, mas que se intuem no mais íntimo de nós?
Certa vez perguntei a Maurício Tavastabir o que pensava do que lhe expunha. E ele,
com uma sombra doce no olhar, retorquiu:
MAURÍCIO
TAVASTABIR –
Algumas noites são agressivas ao telefone. Mesmo aquelas meninas fagueiras de botõezinhos
em flor, cuja voz possui um frescor diurno. As noites com seus corpos à mão e sua
melancólica acústica. Algumas delas escondem os espelhos atrás das cômodas.
ZUCA – Telefone tocando a sinete, Criado-Mudo batendo a gaveta, agita
a noite pruma Tragédia Azteka… Nosso Trem Fantasma, mesmo encalhado e abandonado,
nalgum recanto perdido duma estrada sem fim nem começo, é sempre o palco sagrado preferido pelas cruéis
Deusas de Acapulco, pra perfazerem sua Dança Macabra.
FLORIANO – A imensidão do quarto sugere ao criado-mudo
não dar um pio com a comadre. Gerânios começam a brotar de um copo vazio. A memória
acode a tudo o que pensa ser fruto da imaginação. O rei está nu… E tem um guaxinim
no bolso à esquerda de seu umbigo expatriado.
NICOLAU
SAIÃO –
O engendro… era formado por pedaços dispersos de corpos ligados – e não unidos!
–, pelo ardil da eletricidade. Daí que o enamorado de Lili Fong ficasse de repente
com uma cara de parvo que só visto! Ele nada conseguia saber… Saberia o que dizer,
quando o extremo calor tivesse abandonado o percurso do dia que alguns dificilmente
aguentavam?
ZUCA – Lili Fong é duma atroz persistência em sempre reaparecer.
E tem o dom de criar uma paixão obsessiva, que agora então agita os esqueletos da
plateia que, provocados pelos meneios dela, se pegam num pancrácio de ultra-tumba…
Rola uma caveira aqui, um fêmur acolá…
FLORIANO – Vítor, Vítor, até hoje o bom pastor desconhece
a origem da rabeca que lhe deixou vesgo. Errou na quantidade de sombra que pôs em
seu Frankenstein. De sua garganta ecoavam rios espessos de equações aos tropeços.
Há um momento na criação em que todas as frontes são tomadas por uma lodacenta identidade.
Quem esteve aqui até agora? Quantos ainda virão?
NICOLAU
SAIÃO –
Olá, meu tão seguro comparsa de viagens! Olá, meu noitibó das florestas! Ergue o
teu braço como se estivesses num aeroporto dos que abrem os horizontes dos sete
pontos cardeais. Pega neste pano e agita-o na direção Norte, enquanto todavia olhas
para o Sul. E registra: os meus dois confrades, amigos de aventuras e de estúrdias
em ilhas de que não se conhece a descoberta, sentem de repente vontade de gritar
baixinho! Capici?
ZUCA – Gritar baixinho pra Morte, o Capitão do Trem Fantasma, não
nos ouvir e querer nos catar antes da hora… Oh, Morte, nosso Capitão!… O telefone
está chamando, não ouves?… Certamente é Caronte pra te dizer de não recolheres
passageiros por ora, nem sequer voluntários, porque sua barca está fazendo água…
FLORIANO – Nem todo fim sabe a quantas deve seu começo.
Ante os conselhos da verdade o mundo é surdo como uma porta. A fantasia não larga
mão de seus caprichos mais fugazes. Viver não necessita paraquedas, trata-se de
ficar íntimo de todos os abismos e precipícios. Bota mais uma aqui…
XAVIER CHAVIGNY ⎼ Bota nada. Acabou. Já chega. C’est fini, bonitões. Vamos parar por aqui.
Alguém quer fazer as malditas considerações finais? Quem se atreve?
NICOLAU
SAIÃO – Atrevo-me com
alguma doçura e certa dose de malandrice: de que forma aceitar indulgências perenes
e solenes por detrás da nuca do Padre Santo? Este, que arrola certificados de mau
comportamento como se fosse um buquemeiquer citadino, um dos que veem nas apostas
a melhor forma de ganhar a suada vida, que engrola orações por detrás de vidros
fumados, não faz mais que elevar aos altares avestruzes e girafas. Mas já santificadas
pelo ergo sum da inspiração jesuítica. Já munidas de meias
pretas nas íntimas parcelas de um cavanhaque delicado – enquanto São Pedro e São
Paulo descascam amendoins para serem pelo menos tão sagazes como os mandris do deserto
do Calaári. E depois disto que dizer mais do que "agarra aí no volante" ou, com a mão esquerda firmemente colocada
no cangote de São Malaquias, rezar para que as cervejas tenham um sabor tão suave
e arremelgado como uma hóstia de fina farinha de mandioca?
ZUCA – Realmente, seria esta uma bela modernização
do culto: cerveja substitui água benta; empadas substituem as hóstias; e os pecados
são esponjados com Sabão Baco. Boas sugestões, Nicolau. Bravo!… Com essas audaciosas inovações,
talvez a Santa Madre ganhe alguns novos paroquianos, porque as igrejas estão ficando
desertas, e são vendidas à prestação pra instalação de novas mesquitas. Mas o Paraíso
mourisco tem belas Huris, Odaliscas belíssimas, pra receber os fiéis. E nós, em
nosso Paradiso?… O que nos oferecem?…
Aproveitemos então agora umas boas cervejas, e vamos comer as carpas do dia!…
FLORIANO – Cerveja? Sim, vamos logo resolver essa
parada. Eu quero a minha bem gelada. Todas as minhas falas têm apenas um propósito:
calar na hora certa. Não envelheçam nos lendo. Eu não direi mais nada.
ZUCA – Alea jacta est. Faites vos jeux. Rien ne va plus. Uma só ficha no tapete, lançada no número
treze. A Fábula se acabou. Levantai-vos, esqueletos!… Queremos aplausos!…
EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO
DO SURREALISMO 1919-2019
QUARTETO
KOLAX é uma carroça de
atores percorrendo os escombros da arte contemporânea com seu teatro automático.
Seus integrantes são Anita Borgia, Dr. Flor, Pedro Kz e Zuca Sardan. As imagens
que acompanham a edição, reconhecidas ou não, por efeito cênico, são estrategicamente
anônimas.
Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 125 | Janeiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO
MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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