terça-feira, 1 de janeiro de 2019

TABULA RASA DAS RECENSÕES



PRIMEIRA RECENSÃO [ZS]

No século 19, a photographia não conseguia produzir, para publicação em livro, uma boa imagem, em cores, de um quadro. Então, de ilustração aparecia um borrão escuro e, embaixo, vinha a RECENSÃO, que era uma nova forma literária: CONTAR um quadro!… com divagações pyrosóphicas sobre o autor, a escola a que pertence, simbolista, ou pontilhista, cubista, o sentido da Arte, etzzz etzzz etzzz













RECENSÃO DO EPISODIO PROPOSTO DA VIDA DE XÉZARE [PK]

(Sublime)
– Mas isso não é uma resenção, é uma crítica!
– Recensão não se escreve assim, analfabeto!







NO LEILÃO COM MAGRITTE [FM]

Duas noites adquiriram cópias de umas cartas surrealistas em um leilão impressionista na Antuérpia. Rabiscos ilegíveis não permitiam desvendar a origem daqueles manuscritos e seus autores. Dois minúsculos centauros encardidos pareciam indicar que as caligrafias cresceram na República Democrática do Tombo. A partir daí se ventilou a notícia que as noites não se conheciam antes daquela tarde no leilão de Lorna Obamba. Como as cartas estavam grudadas, seja pela antiguidade, seja por algum inconcebível pacto entre os signatários, o fato é que as duas noites acabaram vitimadas pela tinta de Magritte que pregou ambos os personagens em fundo lilás disfarçados de caçadores das letras perdidas. 


PINTAR AS HORAS [AB]

O pintor Adolphe Sax, homem recluso e difícil, nunca foi reconhecido pelos impressionistas como um precursor, superior a Turner na preocupação com a luz e anterior a Monet em pelo menos dez anos no exercício de pintar a mesma paisagem em diferentes momentos. Monet fingia que nem o conhecia; Manet, mais agressivo, virava a cara quando Adolphe passava, na maior falta de educação. Dois manés invejosos. Quando morreu, seus desconsiderados herdeiros tiraram suas obras das molduras e venderam as molduras. As telas foram para a lixeira, junto com os restos da salada de repolho. A cozinheira remexeu lá, viu que tinha uma tela grande com o gato da casa e como gostava muito do minino, ficou com a tela, que limpou das manchas de maionese e prendeu com pregos na parede, do lado do calendário. Graças ao neto dessa senhora, magnífico pintor de brocha gorda, temos uma descrição da obra: doze vezes o mesmo gato, pintado nas diferentes doze horas de luz do dia, de frente, acordado e alerta no mesmo lugar do jardim. O corpo do animal funde-se delicadamente com a grama, mas na medida em que nos aproximamos do focinho, a representação deixa o impressionismo para tornar-se mais e mais realista, até o clímax dos olhos com as variações das pupilas. O título da obra é “Relógio de sol”.


GONFALHOM KOLAX [ZS]




pzafpzafpzafpzapfpzafpzafpzafpzaf
precisamos do Gonfalhom Kolax
em azul-cobalto / vermelho-pytanga
Kolax é a Supina Recensão da Arte
No Século 21 será Tudo-ou-Nada
pzafpzafpzaspzafpzafpzafpzadpzaf








SALÃO DE NÁPOLES, SALA XXXV, POR PLÍNIO O VELHO [PK]

A pintura feita por Protógenes do herói Lalysus, representado como caçador, levou 7 anos para ficar pronta. Existe um cachorro, no quadro, que devia ser representado espumando de cansaço. Protógenes não se satisfez com a visibilidade de sua própria técnica: a espuma parecia ter sido pintada e não sair da boca do animal. Com o espírito inquieto e atormentado e querendo obter em sua pintura o verdadeiro e não o semelhante, ele apagou o pedaço inúmeras vezes e trocou de pincel sem conseguir ficar satisfeito. Finalmente ele se enfureceu contra essa arte excessivamente aparente e jogou sua esponja contra a parte do quadro que o insatisfazia. Ora, a esponja modificou as cores apagadas da maneira como ele desejava. É assim que, nessa pintura, o acaso produziu o efeito da natureza.
Pinturas de jogos de gladiadores; pinturas murais com paisagens onde passeiam personagens; cidades à beira do mar; pintor que agrada suas amantes pintando deusas com suas feições; tetos com caixas intercaladas (padrões decorativos); combates de cavalaria; cenas da Odisséia, Ilíada; mitos diversos; vitórias nos jogos olímpicos; representações teatrais; retratos de dançarinas, acrobatas e prestidigitadores célebres.
Grande pintura de sacrifício de bois pintado por Pausias (enquanto todos os pintores representam as coisas puxando para o branco as partes que querem realçar, fez o boi inteiramente de cor escura e deu relevo à sombra graças à sombra mesma).
Aristides de Tebas é pintor “psicológico”, que sabe exprimir os sentimentos humanos, assim como as paixões. Pintura de um bebê que, no cerco de uma cidade, se arrasta para o seio de sua mãe que agoniza por causa de um ferimento; vê-se que a mãe percebe e se aflige que, seu leite tendo secado, o filho mame o sangue.
Notícia de um quadro de Bularco “adquirido a preço de ouro”, pintura de Parrásio que custou ao imperador Tibério seis milhões de sestércios; o pintor Pânflio que ensinava pintura por 500 demários anuais, um Alexandre Magno pintado por Apeles por 20 talentos; uma Batalha contra os persas de Artistides de Tebas na qual cada figura valia 10 minas; um Ajax e uma Medéia de Timômaco de Bizâncio, adquiridos por César, que mandou construir especialmente para alojá-los um pequeno templo em Túsculo.


COLHEITA PREMONITÓRIA [FM]

Jean-François Millet atravessou o pátio dos séculos, com seus personagens meditando sob um céu de tinteiros. Forjou um abrigo de traços onde era revelado o destino de cada um de seus alunos. O mais primoroso dele também bebeu a loucura e a disciplina suculenta. Quando a noite recaiu sobre o caminho delineado, Salvador Dali reconheceu-se no cadáver delicioso de seu atelier invisível. Millet pronuncia ao contrário o nome de todos os mistérios. De suas telas as palavras saem em busca de sentidos que expressem em Dali a excentricidade de seu rigor.



RÉQUIEM PELO VERMELHO [AB]

Recensão de Natal

Vermelho, como todos sabem, é a segunda cor mais linda do universo. Natal, por sua parte, é a festa mais cafona. Esteticamente, o resultado é desastroso, ao ponto de ser inimaginável qualquer coisa mais brega. A música é tediosamente abestada. Os enfeites são cafonas. Os sininhos dlin-dlin-dlin irritantes e as luzinhas pisca-pisca-pisca insistentes e os presépios e as arvorezinhas em milhões de cópias, de arame, de plástico, de macarrão (“ah, olha que lindo, artesanal!” Saco!), vão levando qualquer pessoa sensata ao desejo de morder os dedos e arrancar os cabelos. E depois, tem a quantidade. Ninguém fica satisfeito com uma breguice pública, única e coletiva. Todo mundo quer também a sua, privada (em cada lar se repete o Ritual do Peru Empalado) e cada loja quer ser a mais grandiosa, a mais piscante, a mais musicante. Tudo isso sem falar do principal, os sentimentos. Os sentimentos, blearghhhh! Os mais cafonáceos. Os sentimentos são a coisa mais colossal do Natal. A mais perigosa. Dos sentimentos natalinos brotam sorrisos meio abestados, tolos, grandes e vazios, mendicantes de amor raso e presentes. Quanto mais presentes, melhor. Tais sentimentos são a base do ataque à formosíssima cor vermelha, escandalosa, revolucionária, ultrajante, apaixonada, arrebatadora. Nesse ataque, o carro chefe é um trenó levado por quatro renas cujos nomes ridículos me nego a relembrar, guiado por um velho caduco de barbas de algodão que se centuplica vestido de vermelho. Como o vermelho poderia resistir? Não pode, porque foi combinado com um verde garrafa que o encarcera e especialmente pelos dourados e prateados baratos da riqueza fingida do Natal. Aconselho a todos que se fechem em casa de imediato e organizem uma festa totêmica. Aí pelo menos estará preservada a alma do vermelho e a Multimilenar Celebração do Solstício, enfim, terá melhor sentido.


BRUNO DELARROSA [ZS]

Assim pois, a pintura abstrata é pra quem tem ideias complexas… Seria o caso de um gênio, Bruno Delarrosa, que pinta quadros abstratos (usa pincel de rabo de burro) místicos, enigmáticos, magistrais, em meteórico tempo ficou famoso, mas seu galerista se recusava a mostrar sua foto… “Delarrosa é um místico, e não quer cair no abysmo da fama e da vaidade mundana… Sua arte aspira à mais alta espiritualidade… Por isso… recusa-se a ser conhecido. Permanece na minha chácara, em contato com a Natureza.”



OS ACORDES ESFÉRICOS DE TOMMY [PK]

Hoje é possível ouvir Tommy do The Who na distância certa e formular de modo mais preciso sua recensão. Maravilhosa Ouverture. Incrível sucessão de temas imaginativos, Leitmotifs de entidades e cenas arquetipais que se respondem e complementam mutuamente (camping de escoteiros e seita esotérica, cobrança familiar natalina e máquina de pinball, sadomasoquismo de classe média e isolamento no éter das sensações). Guitarra base, baixo, bateria solam em surtos e estertores. Os vocais recuam como um recitativo de violinos. A indústria de empadas radiofônica ainda tenta diariamente nos empurrar pela goela The Wall, que desloca a ideia de Tommy e sua nota angustiada para um diapasão equivocado. O que nos leva a achar que nos degraus da escadaria que parte do caos indiferenciado e a ele retorna, a passagem que leva de Tommy a The Wall suscita a sensação direta da vertigem da espiral da entropia. De que maneira o gênio melódico que produziu a suíte sinfônica de Atom Heart Mother degenerou em repetitividade pueril? Quanto a Tommy, o filme que se inspirou no disco duplo do The Who não conseguiu estragá-lo, embora a transposição o mais das vezes complacente de seus acordes esféricos tenha contribuído para um abalo na ideia de progresso… Mas, do fundo das eras, surgem luzes de Faróis que se comunicam longínqua e imprevisivelmente uns com os outros: o Pink Floyd do Disco da Vaca, o “Tommy the Who”…


O TOQUE DA PERDA [FM]

Cansei de olhar as telas coladas na parede do museu do fogo. Por um tempo elas me pareceram efeito de combustão da própria existência humana. As obras sem título jamais serão as escolhidas. Truques acidentais da imagem. Como os papéis relidos de Guignard, os olhos postos na primeira nuvem tombada no punho fechado do incêndio. A cena evoca um baile de escadas e o canto orfeônico das árvores queimadas. Os gatos lambem a ferida das cinzas. Por trás do fogo a renascença tece novos fundos falsos. Eu queimaria mil vezes cada uma dessas telas, até que uma delas me ajudasse a mascar a flor do destino.






DIÁLOGO FRENTE A UM QUADRO [AB]

Circa 1670, o pintor madrilenho José Antolínez, criador desta  Asunción de la Magdalena e muito conhecido nos seus dias, pintou uma tela cujo personagem central é um vendedor de quadros, obra muito mais interessante que esta na nossa frente. Deve tê-la produzido por auto-ironia. Explico: um contemporâneo seu também pintor, Acisclo Antonio Palomino de Castro y Velasco, o descreve como um homem “não muito agradável”; também recebeu os epítetos mais diretos de “invejoso”, “sarcástico”, “fanfarrão”, “pretensioso” e “talentoso mas fútil”. Na biografia do mesmo Palomino lemos que Antolínez foi chamado para realizar umas poucas encomendas de certa importância, mas com uma personalidade assim... bem, as portas foram se fechando para ele, uma atrás da outra, tanto as da Corte quanto as da Igreja. Nesta situação, viu-se obrigado a pintar imagens devocionais para sobreviver. Em El vendedor de cuadros, vemos o comerciante no centro e em primeiro plano, oferecendo uma pintura da Virgem com o menino ao espectador. A cabeça ladeada, o olhar pidão, parece suplicar por uma esmola. O homem certamente mais parece um mendigo, com as roupas puídas, o chapéu velho, o gibão rasgado. Está em uma sala modesta. Em outro aposento, um pouco atrás do batente da porta aberta, o jovem pintor, humildemente vestido, olha expectante. Pode ter sido o próprio artista que se representou ali.
– Pois então. Apolodoro de Atenas conta sobre o encontro entre os Argonautas e as sereias: Orfeu, também um Argonauta, cantou mais docemente que elas, silenciando-as. Reduzidas ao silêncio, não podiam mais seduzir. Então morreram e transformaram-se em rochas. O guerreiro Odisseu foi menos cruel com elas que o poeta Orfeu.
– O que isso tem a ver com o quadro ai na nossa frente?
– Você estava falando do quadro?
– De um modo enviesado, sim.
– Eu também.


PANORAMA TEUTÃO [ZS]

Cena de costumes de Xamir Bazilik


O consagrado mestre Bazilik pinta seus quadros de cabeça para baixo… (*ou de cabeça para baixo o quadro?… e não ele, que depois proíbe que recoloquem seus quadros de cabeça pra cima).


O REI E A RAINHA [PK]




O ESTÔMAGO PENSANTE DE EMILIA PRIETO [FM]

Havia um salmo que só podia ser lido ao contrário. Como as lâminas visionárias de um antigo relógio que fazia o tempo recuar ao mais longínquo passado. Graças a ele soubemos que um dia existiu uma aldeia de ex-homens, com seus membros decepados e misturados ao ponto de haver ali uma única identidade. Tal síntese de ironia e simplificação bizarra confabulava em defesa de um mundo além das parábolas previsíveis das mitologias. Emilia Prieto escolheu para desenhar suas obras uma mulher-corpo composta de muitas linguagens, filha natural de fósseis e arcanjos. Cada vez que seu coração dormia guardava consigo uma linha com a qual um dia comporia um salmo que só podia ser lido ao contrário. Do tanque de seu íntimo as mulheres manipulavam as inúmeras formas de Deus, até que o símbolo conhecesse a verdadeira compaixão.




QUADRO DE PENÉLOPE TECENDO [AB]


No oco noturno uma mulher está sentada
em sutil teia de aranha
que se espalha sobre o nada

Cantando na infinita escuridão
tece um tecido infinito
sobre um infinito não


Encima o céu, embaixo o algar
E em todas partes, o mar...




ENGUEULADE AU NABOT BOSSU [ZS]

Marine antérieure, non signée


Le Capitaine Norval a puissament martelé à plusieurs reprises
sur le cahier de bord qu’il confirmerait la force du pouvoir legal
des antipodes pour explorer les pistes à la recherche de nouveaux types
de champignos halucinogènes à l'échelon lapon et pas d’autre.



O TABULEIRO [PK]




O TECIDO EXPOSTO DA LENDA [FM]


Eu criei no quintal os mais astuciosos mitos. Cada um tinha a sua capela onde sorteava o propósito das revoltas menos atraentes. De manhã as mensagens percorriam a margem ribeirinha que lutava contra as lendas urbanas. Como a saltitante arte moderna metida no roupão de suas performances, alguns mitos refletiam as mínimas emoções acidentadas que já não compreendiam a razão das manchas em suas roupas. Uma pilha de bonecas nuas explodia sobre a balsa que cruzava a risca indefinida do final da paisagem. A balsa traumática da história. Maya me chamou a atenção para o significado desses abrigos-objetos. Passamos a tarde pintarolando em uma tela grande. Vuvú, eu quero pescar uma camisa elegante. Seus nove anos adoravam as aparições narrativas do tempo rosnando ao fundo da paisagem que ela me ajudou a criar. Ainda é possível compartilhar a criação, enquanto a história de alimentar de miragens.




MANGAS EM CAMBOINHAS [AB]

Debaixo de um ipê laranja, sentados na mureta cinza de um terreno vazio, há uma família de negros: pai e mãe muito jovens, um menino e uma menina. Cada um veste uma bermuda colorida e uma camiseta de estampados vivos, em vermelhos, azuis, verdes, brancos; um do lado do outro, cada um chupa uma manga amarela. A expressão é de concentração e delícia. Encontram-se tão fora do mundo, com as sacolas de praia aos pés, tão alheios a tudo fora ou dentro do mundo deles, cada um totalmente concentrado na sua manga e na delícia da sua manga. A manga amarela colada nos lábios arroxeados; o suco escorrendo pelos braços negros e pingando nas roupas vermelhas, azuis, verdes, brancas, tudo acontecendo sobre a mureta de pedra cinza, debaixo do ipê laranja.



EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019

QUARTETO KOLAX é uma carroça de atores percorrendo os escombros da arte contemporânea com seu teatro automático. Seus integrantes são Anita Borgia, Dr. Flor, Pedro Kz e Zuca Sardan. As imagens que acompanham a edição, reconhecidas ou não, por efeito cênico, são estrategicamente anônimas.


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 125 | Janeiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019





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