terça-feira, 1 de janeiro de 2019

MESA QUADRADA NO SALON KOLAX



SALAMBÔ [entra dançando no ar, com música de tambores]: Alguém, por favor, me empresta um modelito de odalisca?

JORGE DE LIMA: Tu, como toda mulher, tens os lugares sombrios mais gostosos.

ZUCA: Mas… começo eu a Mesa Quadrada sem Madame Salpêtre?? Eia é a Medium poderosa que sabe controlar o encontro de Loucos com Espíritos!!!  O próprio Dr. Kardek, por sábia prudência, optou por uma Mesa… Redonda. A Mesa-Redonda atrai espíritos polidos, sem frestas ou arestas traiçoeiras e pontiagudas… Espíritos de casaca e comendas… Jamais soltariam um palavrão, diriam porcalhadas… Mas com a Mesa-Quadrada… vamos atrair dúbios personagens!… A começar… por nós mesmos… Mal ouso abrir a boca… Enfim… Coloquem um copo de água mineral Cambuquira sobre o rádio… está aberta a Sessão.

UNKAS: Mas esta é a gloriosa flama do desafio, dar passagem aos grumetes aventureiros, trombadinhas cósmicos, às visões mais alucinadas que pastoram nosso inconsciente. Somente as Mesas-Quadradas possuem quatro escândalos, um em cada ângulo morto, sim, porque os ângulos retos nada mais são do que ângulos mortos e nada
propicia maior escândalo do que a descoberta de um cadáver no leito em que nos deitamos cheios de vida. Sessão aberta, eu apresso o passo e sou o primeiro a por a cabeça fora da garrafa. Quem mais se habilita?

DALI: LAAHHH PAPP… ÔOU… AU… THÊEEÉÉH… LAAH… PAPE… ÔÔÔ… TÊ… DU-PAP…

MME. SALTPÊTRIÈRE: Esta aparição está engasgada! Alguém lhe dê uma tapa no perispírito! Como é que ele entrou aqui sem a ouija?

UNKAS: Das primeiras camas desembarcadas no Instituto se sabe que ao menos duas delas vinham da distante África e tinham na pele metálica um sem número de arranhões. À noite – a casa ainda sendo montada –, os arranhões gemiam sua incompreensível história. Os vigias da grande obra confabulavam entre si garantindo que tais gemidos se igualavam aos emitidos pelas rachaduras das caixas onde dormiam os espelhos.

DR. IGUANA: Serve bem o meu café, ao render funérea noite. / Sob a lua em reboliço em orgia com as nuvens / duas fêmeas se enroscavam no porão das malas pretas. / Dei a elas a morfina que sobrou de meu jantar.

MME. SALTPÊTRIÈRE [olhando o movimento das agulhas da ouija]: Tem outro aqui se manifestando… Deve estar precisando de ajuda… Venha, mon pauvre, minha criança perdida… Olha a agulha… Ó… Tê… Á… Erre… pode parar… I… Ó… pára agora, estou avisando!… Ésse… Ah, é assim mesmo, seu pulha mal-educado??

UNKAS: Histeria de espíritos… Era só o que faltava. São sempre assim, ou fazem mal ou fazem pouco… E uma fumaça zombeteira se encurva a dançar deformando o espectro que ocupa um canto da mesa.

 VICTOR HUGO: Das profundezas do oceano sinto os olhos do grande polvo se entreabrirem para  neles contemplarmos a legenda dos séculos miseráveis…

NEGA LUZIA: Tem uma coisa estranha saindo do meu copo de cangibrina!

UNKAS: O quaternário lampeja ora dentro ora fora do círculo que deu origem à mesa das ideias, ciente de que somente nele, em sua correspondência interna e externa de ângulos é que as ideias se realizam. Por isto a ordenação mística do mundo só se dá na fricção dos ângulos, quaisquer que sejam seus quatro elementos formadores. A primeira aparição avança de modo sinuoso, indo e vindo ao alcance de nossos olhos. Seguem-na outras três, sucedâneas de um mistério que muda de face, a cada ângulo reto. A terceira foi aquela que desposou o firmamento. A quarta é a mais perigosa e se suspeita que sua entrada em nosso plano seja para cumprir a missão de apagar a linha do horizonte. Alguém dá notícias da segunda aparição?

APARIÇÃO EXTRANUMERÁRIA: Segunda… não… Quinta… naaaaauuuuuuummm… Aiiiiii… Cara, como é difícil falar neste plano astraaaaaauuuuuuu… Quer dizer, neste plano astral. Ah, bom!

[Sobre a mesma a folha de papel ia estampando um recado, um ponto, um desafio] Quizumba-ê, tram! Tagoramundum, cachaça boa! Quizontiando, quarobão, belê-belê! Ribomba quermesse a quinta estrela, trolando a cerca… E o relógio-pêndulo em vez de badalar… solta uma tenebrosa sofoclada… Olê Olá Olalá… Adonde, Badalo?… Lalá, Baobá, Olalá

MIRÓ: Cadê a Salambô? Gostoooooosaaaaaa!

MME. SALTPÊTRIÈRE [põe uma mão na cintura, faz cara de pasmo e depois abana a cabeça]: Tá bom, para mim chega. Estes espíritos estão muito carnosos para o meu gosto. Vocês têm que sublimar, entenderam? Entenderam? [gritando] ENTENDEEEEERAM? [ninguém liga para Mme.] Ah, desisto. Estou levando a ouija, virem-se como puderem. Volto para os salões franceses, chiques, elegantes, nada dessa bagunça terceiro-mundista. Adieu!

UNKAS: Talvez o Rabino Querubibno tivesse algum interesse em desvendar o sumiço da tábua, porém o que me pinta o olhar são os papiros guardados em cada canto da mesa de onde se escutam os rumores impregnados de fantasmas. De quais dimensões eles retumbam como versículos possessos? Quem nos procura e por quais motivos desfiar a costura que separa vida e morte? Haverá uma doutrina oculta ou é pura danação? Em desses espíritos devemos confiar?


MME. SALTPÊTRIÈRE [volta correndo, com a ouija na cabeça]: Mas essa voz… Miró querido, é você? Meu ídolo! Miró, sou eu, Mme. Saltpêtrière, fale comigo, que saudade!

MIRÓ [aproxima-se, com Salambô correndo atrás dele]: Ay que bueno!… ay! que hace un tempón no veo a Madame Petri!… ay!  me muero!…

MME. SALTPÊTRIÈRE: Como fui grosseira com você, Joan! Desolée de mon comportement! Desolée! Você precisa de alguma coisa? Salô, você ainda quer o modelito de Odalisca? Prefere hollywoodiano ou cartaginês mesmo?

UNKAS: As palavras salpicam como se houvesse alguma interrupção na fiação de passagem de uma dimensão a outra. Salô emperequeta o olhar todo, como se estivesse por um fio de gozo…


SALAMBÔ: Eu quero, eu quero, o pincel de El-Palanquin e a quinta corda do Stradivarius. E um moço bem bonito que me faça gosto em ser sua odalisca.

UNKAS: Salô nem petisca, porém a conexão com os mortos parece não durar muito. Como uma grafia de raios começa a se desenhar um círculo no interior da mesa quadrada. Quem sabe os corpos serão fechados… Mas quem ficará de um lado, quem de outro?



EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019

QUARTETO KOLAX é uma carroça de atores percorrendo os escombros da arte contemporânea com seu teatro automático. Seus integrantes são Anita Borgia, Dr. Flor, Pedro Kz e Zuca Sardan. As imagens que acompanham a edição, reconhecidas ou não, por efeito cênico, são estrategicamente anônimas.


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 125 | Janeiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019





Nenhum comentário:

Postar um comentário