[ DEZ POEMAS ]
FIGURAS DE MANEJO DA MEMÓRIA
Busco
um rosto retirado de duas mãos
Se
completam e desfazem
São
cavalos sobre o sal da terra
–
Silenciam.
Persigo
um rosto e pertence à noite
Em
ruínas que só as raposas conhecem.
Uma
lanterna aponta, em um quarto – unidas –
Vozes
úmidas conjuram os nomes de origem
Em
algum lugar do espaço
Correspondem-se,
sem razão,
Duas
feridas e um fruto mordido.
DEGREDO
Indexado
entre a língua e a pele
exilado
no corpo
como
massa informe
dispersa
o eco e a matéria.
Nomeio
dentre os selvagens
os mais modernos
do
outro lado da noite.
Fraturado
frente às costelas
manchado
entre uma cidade
desenha-se
um acidente biográfico.
Sem
rumo, vagam vagas,
sem
rumo
despenca
atado a um gosto na boca.
PRIMEIRA PEDRA
Crava
na origem da língua
Um
traço histórico da derrota
E
o silêncio de Adão.
O
tempo retrocede entre salas vazias
e
o rosto dos séculos.
Se
abismarão no tempo
Sem
nunca ouvir seu nome –
Uma
marca coberta de pó
Num
longo mergulho final.
Reparto
um corpo em dois pedaços
eles
navegam
sobre
um último olhar
sustentam
um gigantesco animal
sob
uma pele rasgada
o sol dividido
TRÁGICO
Sa tête sillonne la galaxie de l'absurde.
René Char
Digo:
Todo
rosto é trágico
Ainda
mais nessa cidade
onde
os dois pianos
que
ouço
confrontam
as janelas fechadas
e
a chuva que cai.
De
perto, todo rosto é trágico
Ainda
mais contra o vento
ansioso
pela liberdade
e
o confronto com outros rostos,
trágicos,
no trem.
Todo
rosto é trágico
Todo
rosto desenha nossa sobrevivência
De
dentro de um escafandro
Gritamos!
e
não nos ouvem.
Quando
visto de perto
Todo
rosto é trágico.
As
sementes crescem
no
estômago,
em
câmera lenta,
na
cama encostam
invadem
o espaço do sono
da
pequena morte
diagramam-se
em folhas,
flores,
frutas, fetos, fogos, facas...
Tendo
o esquecimento como ponto de partida
Meu
único atributo –
essa
linha na testa
de
quem se espantou demais.
Que
margens do medo
(dobras
do espelho)
bordam
a máscara
do
papel entre
um
lado
e
o final da palavra
silêncio?
BANQUE D'AFFAIRES
Aos
lugares não existentes
formaram
no hemisfério do corpo
um
círculo côncavo.
Num
labirinto de animálias congregaram distinções
como
o fruto de um jardim.
Nomearam
uma voz partida em pedaços
construída
sob uma cidade marinha,
–
um código cifrado.
A
casa era um relato, divícia
e
vestígio dos dias passados.
Há
os lugares não existentes...
e
a esses, disse: não pertences.
CRÔNICA
Com
a palma da mão
Às
costas de Eros
Meço
as horas
Em
eterna fuga
Segunda pele
Em
um corpo de gazela.
Espaço
geográfico
–
Entre os trópicos – hipnotizados
Na
voz de uma velha
O
dia dorme
Entre
as dobras do remorso
Sedimenta-se
o tempo
Na
linguagem das pedras
Triunfam
as heras.
TESTAMENTO
Nos
excessos do século
Assumo
o martírio
Como
morte cansada
Um
cometa tiranizo
Em
chuva de granizo
Sigo
e faço o rito
Como
número da sorte
O
oito infinito
A
nada reduzo a beleza
Consulto
o Livro,
Pasto
do tempo,
Em
grandes colheradas
Sorvo
o mundo;
Jogo
as cartas
Sou
a sombra de uma pantera encarcerada
Um
verso imundo
“ESCOPISMO”
contemplo
um corpo já morto
uma
estátua oca
um
artefato de carne
carrego
uma palavra ou duas
e
toda a memória do mundo
[ TRÊS PERGUNTAS ]
FM | Poesia, amor, liberdade – a tríade essencial
do Surrealismo. De que maneira ela faz parte de tua vida e se integra à tua criação?
LP | O Surrealismo, como movimento, é algo que
sempre me interessou muito. Mais em relação à atitude do que como trabalho artístico
em si, que admiro, mas que pinço alguns dos que mais me interessam. Em termos de
gosto pessoal, tenho no Dadaísmo uma fonte mais próxima. De qualquer forma, acredito
que essa tríade faz parte de todo fazer das grandes obras ou, melhor dizendo, do
bom fazer artístico. É parte integrante na busca pelo novo, o desconhecido etc.
Toda boa obra passa por este caminho.
FM | Dentro e fora do país, entre vivos e mortos,
independente até mesmo da poesia, não apenas citando os nomes, mas comentando os
motivos, poderias referir algumas afinidades tuas na criação artística?
LP | Falando em tríade, eu sempre comento que
tenho uma “santíssima trindade” de figuras que me interessam e com quem tenho certa
afinidade. Curiosamente apenas uma delas é um poeta, Rimbaud, os outros são Gauguin
e Nijinski. Estas são figuras que marcaram e marcam a minha forma de pensar arte
ou o meu fazer artístico num duplo movimento: a obra deles é, claro, uma forma de
aproximação e tem minha predileção, porém a vida desses artistas é material tão
fecundo para mim quanto a própria obra. Há uma relação deles terem transformado
a vida em material para a criação, mesmo que dois desses tenham recusado o fazer
artístico (um deliberadamente ou outro por “forças maiores”) e um outro que, de
fato, teve um comprometimento tão forte com o seu trabalho a ponto de largar tudo
para viver a sua obra.
O que me interessa é a relação paradoxal que
essas três figuras têm com a arte, e essa relação acaba permeando o meu fazer no
sentido em que a minha atitude, especificamente diante da poesia, está sempre em
uma constante mudança de posição, algumas vezes mais próximo à “loucura” de um,
outras vezes mais próximo à recusa do outro ou o exílio criador. É o paradoxal dessas
relações que acaba permeando a minha própria conexão com o meu trabalho.
FM | Tenho percebido que, sobretudo em poetas
nascidos a partir de 1980, há um renascimento na lírica brasileira, que é tanto
na densidade da escrita, quanto na definição de uma voz própria, quanto no sentido
de uma solidariedade explícita, sem que isto reflita a existência de um movimento.
O que observas a este respeito?
LP | Sim, concordo que há um renascimento dessa
lírica e que é claramente influenciada pelos meios de produção, que são, nesse sentido,
a ampla e irrestrita adaptação que essas gerações têm com a internet. A internet
trouxe a possibilidade de conhecer o que outros fazem, de divulgar o seu trabalho
e achar, inclusive, um “público” que se interesse pela sua voz. Além disso, a produção de livros se tornou algo
mais acessível, o que fez com que não só mais autores fossem conhecidos, como também
fossem publicados.
Como você comentou, não existe um movimento
propriamente dito, mas existem muitas afinidades entre alguns grupos de poetas,
tanto na obra de cada um quanto socialmente. O que quero dizer com isso é que há
grupos dentro desse espectro, cujos trabalhos têm proximidades entre si, seja na
forma, no tema etc., e também há grupos que estão juntos, porque têm afinidades
sociais, são amigos, por exemplo, e acabam formando uma editora, uma revista, produzindo
um evento etc.
A questão é que a consolidação desses grupos
acaba levando a um monopólio, no sentido em que, ao criar esse mercado próprio e
muito vívido e que passa por esse caminho de revista/editora/evento, faz com que
esses grupos já estabelecidos pautem o que é bom e o que não é, porém, as relações
pessoais se sobrepõem à qualidade. Claro que isso é algo que sempre aconteceu, porém
com a chegada de meios mais práticos de produção, que trouxeram consigo a criação
de um “mercado” próprio, o que antes era uma atitude de “sobrevivência”, hoje passa
mais como algo “arrivista”. Claro que essa máquina produtiva está na mão de todos,
podendo ser dividido esse monopólio, algo que vemos hoje, mas que resulta em outro
problema: atualmente, quase que diariamente surgem revistas, eventos e editoras
formados entre grupos novos onde não encontramos uma visão crítica. Todo mundo que
apresenta o seu trabalho para apreciação é aceito, mesmo que a visão artística do
“editor” (e aqui coloco propositalmente a palavra editor entre aspas) nem coadune
com aquilo que foi aceito. Isso faz com que não haja uma linguagem ou fio condutor
que possa definir essa ou aquela revista, por exemplo. O que resulta disso é o problema
de que muitos produzem e o que se troca entre a ampla maioria de escritores, editores
e críticos é o “Bom-bom”, que nada mais é do que um mar homogêneo em que parece
que tudo que está ali tem qualidade, o que não é o caso.
De qualquer forma, essa produção que surgiu
principalmente a partir dos anos 2000 e que se intensificou muito a partir da década
atual, criou um espaço muito interessante que acabou gerando um ambiente que se
fortalece cada vez mais e que é fecundo para o surgimento de novos poetas. O difícil
é garimpar aqueles que são bons (ou seus pares) dentro de um grupo tão vasto e heterogêneo.
Mas isso faz parte da diversão, até porque há muito coisa boa nesse meio.
[ FOLHA DE VIDA ]
Lucas Perito (São Paulo, 1985). Poeta.
É graduado em Comunicação em Multimeios pela PUC-SP. Escreveu livros ligados a história
e fotografia, fazendo os textos de acompanhamento para o livro fotográfico “Caminhos
da Mantiqueira” (2011) de Galileu Garcia Junior. Publicou seu primeiro livro de
poemas, 38 Movimentos, pela Lumme Editor
(2018). Tem poemas publicados em algumas revistas brasileiras, além de algumas revistas
de Portugal, Espanha, Galícia, Colômbia e Peru. Tem traduzido Charles Cros, David
Diop, James Wright, Amparo Osorio, Abdellatif Laâbi, María Emilia Cornejo, Jacques
Prevel, Hector de Saint-Denys Garneau, entre outros.
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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO
DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Anna Höch
(Alemanha, 1889-1978)
Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 128 | Fevereiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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