sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

1985 LUCAS PERITO


[ DEZ POEMAS ]


FIGURAS DE MANEJO DA MEMÓRIA

Busco um rosto retirado de duas mãos
Se completam e desfazem
São cavalos sobre o sal da terra
– Silenciam.
Persigo um rosto e pertence à noite
Em ruínas que só as raposas conhecem.

Uma lanterna aponta, em um quarto – unidas –
Vozes úmidas conjuram os nomes de origem
Em algum lugar do espaço
Correspondem-se, sem razão,
Duas feridas e um fruto mordido.


DEGREDO

Indexado entre a língua e a pele
exilado no corpo
como massa informe
dispersa o eco e a matéria.
Nomeio dentre os selvagens
                                                  os mais modernos
do outro lado da noite.
Fraturado frente às costelas
manchado entre uma cidade
desenha-se um acidente biográfico.
Sem rumo, vagam vagas,
                                            sem rumo
despenca atado a um gosto na boca.


PRIMEIRA PEDRA

Crava na origem da língua
Um traço histórico da derrota
E o silêncio de Adão.
O tempo retrocede entre salas vazias
e o rosto dos séculos.
Se abismarão no tempo
Sem nunca ouvir seu nome –
Uma marca coberta de pó
Num longo mergulho final.


ANIMALESCO

Reparto um corpo em dois pedaços
eles navegam
sobre um último olhar
sustentam um gigantesco animal
sob uma pele rasgada
o sol dividido



TRÁGICO

Sa tête sillonne la galaxie de l'absurde.

René Char

Digo:
Todo rosto é trágico
Ainda mais nessa cidade
onde os dois pianos
que ouço
confrontam as janelas fechadas
e a chuva que cai.
De perto, todo rosto é trágico
Ainda mais contra o vento
ansioso pela liberdade
e o confronto com outros rostos,
trágicos, no trem.
Todo rosto é trágico
Todo rosto desenha nossa sobrevivência
De dentro de um escafandro
Gritamos!
e não nos ouvem.
Quando visto de perto
Todo rosto é trágico.

As sementes crescem
no estômago,
em câmera lenta,
na cama encostam
invadem o espaço do sono
da pequena morte
diagramam-se em folhas,
flores, frutas, fetos, fogos, facas...

Tendo o esquecimento como ponto de partida

Meu único atributo –
essa linha na testa
de quem se espantou demais.



OFÍCIO PARA UM OUVIDO

Que margens do medo
(dobras do espelho)
bordam a máscara
do papel entre
um lado
e o final da palavra
                                  silêncio?


BANQUE D'AFFAIRES

Aos lugares não existentes
formaram no hemisfério do corpo
um círculo côncavo.
Num labirinto de animálias congregaram distinções
como o fruto de um jardim.
Nomearam uma voz partida em pedaços
construída sob uma cidade marinha,
– um código cifrado.
A casa era um relato, divícia
e vestígio dos dias passados.  
Há os lugares não existentes...
e a esses, disse: não pertences.


CRÔNICA

Com a palma da mão
Às costas de Eros
Meço as horas
Em eterna fuga
                                   Segunda pele
Em um corpo de gazela.
Espaço geográfico
– Entre os trópicos – hipnotizados
Na voz de uma velha

O dia dorme

Entre as dobras do remorso
Sedimenta-se o tempo
Na linguagem das pedras
Triunfam as heras.


TESTAMENTO

Nos excessos do século
Assumo o martírio
Como morte cansada
Um cometa tiranizo
Em chuva de granizo
Sigo e faço o rito
Como número da sorte
O oito infinito

A nada reduzo a beleza
Consulto o Livro,
Pasto do tempo,
Em grandes colheradas
Sorvo o mundo;
Jogo as cartas
Sou a sombra de uma pantera encarcerada
Um verso imundo


“ESCOPISMO”

contemplo um corpo já morto
uma estátua oca
um artefato de carne
carrego uma palavra ou duas
e toda a memória do mundo


[ TRÊS PERGUNTAS ]

FM | Poesia, amor, liberdade – a tríade essencial do Surrealismo. De que maneira ela faz parte de tua vida e se integra à tua criação?

LP | O Surrealismo, como movimento, é algo que sempre me interessou muito. Mais em relação à atitude do que como trabalho artístico em si, que admiro, mas que pinço alguns dos que mais me interessam. Em termos de gosto pessoal, tenho no Dadaísmo uma fonte mais próxima. De qualquer forma, acredito que essa tríade faz parte de todo fazer das grandes obras ou, melhor dizendo, do bom fazer artístico. É parte integrante na busca pelo novo, o desconhecido etc. Toda boa obra passa por este caminho.

FM | Dentro e fora do país, entre vivos e mortos, independente até mesmo da poesia, não apenas citando os nomes, mas comentando os motivos, poderias referir algumas afinidades tuas na criação artística?

LP | Falando em tríade, eu sempre comento que tenho uma “santíssima trindade” de figuras que me interessam e com quem tenho certa afinidade. Curiosamente apenas uma delas é um poeta, Rimbaud, os outros são Gauguin e Nijinski. Estas são figuras que marcaram e marcam a minha forma de pensar arte ou o meu fazer artístico num duplo movimento: a obra deles é, claro, uma forma de aproximação e tem minha predileção, porém a vida desses artistas é material tão fecundo para mim quanto a própria obra. Há uma relação deles terem transformado a vida em material para a criação, mesmo que dois desses tenham recusado o fazer artístico (um deliberadamente ou outro por “forças maiores”) e um outro que, de fato, teve um comprometimento tão forte com o seu trabalho a ponto de largar tudo para viver a sua obra.
O que me interessa é a relação paradoxal que essas três figuras têm com a arte, e essa relação acaba permeando o meu fazer no sentido em que a minha atitude, especificamente diante da poesia, está sempre em uma constante mudança de posição, algumas vezes mais próximo à “loucura” de um, outras vezes mais próximo à recusa do outro ou o exílio criador. É o paradoxal dessas relações que acaba permeando a minha própria conexão com o meu trabalho.

FM | Tenho percebido que, sobretudo em poetas nascidos a partir de 1980, há um renascimento na lírica brasileira, que é tanto na densidade da escrita, quanto na definição de uma voz própria, quanto no sentido de uma solidariedade explícita, sem que isto reflita a existência de um movimento. O que observas a este respeito?

LP | Sim, concordo que há um renascimento dessa lírica e que é claramente influenciada pelos meios de produção, que são, nesse sentido, a ampla e irrestrita adaptação que essas gerações têm com a internet. A internet trouxe a possibilidade de conhecer o que outros fazem, de divulgar o seu trabalho e achar, inclusive, um “público” que se interesse pela sua voz.  Além disso, a produção de livros se tornou algo mais acessível, o que fez com que não só mais autores fossem conhecidos, como também fossem publicados.
Como você comentou, não existe um movimento propriamente dito, mas existem muitas afinidades entre alguns grupos de poetas, tanto na obra de cada um quanto socialmente. O que quero dizer com isso é que há grupos dentro desse espectro, cujos trabalhos têm proximidades entre si, seja na forma, no tema etc., e também há grupos que estão juntos, porque têm afinidades sociais, são amigos, por exemplo, e acabam formando uma editora, uma revista, produzindo um evento etc.
A questão é que a consolidação desses grupos acaba levando a um monopólio, no sentido em que, ao criar esse mercado próprio e muito vívido e que passa por esse caminho de revista/editora/evento, faz com que esses grupos já estabelecidos pautem o que é bom e o que não é, porém, as relações pessoais se sobrepõem à qualidade. Claro que isso é algo que sempre aconteceu, porém com a chegada de meios mais práticos de produção, que trouxeram consigo a criação de um “mercado” próprio, o que antes era uma atitude de “sobrevivência”, hoje passa mais como algo “arrivista”. Claro que essa máquina produtiva está na mão de todos, podendo ser dividido esse monopólio, algo que vemos hoje, mas que resulta em outro problema: atualmente, quase que diariamente surgem revistas, eventos e editoras formados entre grupos novos onde não encontramos uma visão crítica. Todo mundo que apresenta o seu trabalho para apreciação é aceito, mesmo que a visão artística do “editor” (e aqui coloco propositalmente a palavra editor entre aspas) nem coadune com aquilo que foi aceito. Isso faz com que não haja uma linguagem ou fio condutor que possa definir essa ou aquela revista, por exemplo. O que resulta disso é o problema de que muitos produzem e o que se troca entre a ampla maioria de escritores, editores e críticos é o “Bom-bom”, que nada mais é do que um mar homogêneo em que parece que tudo que está ali tem qualidade, o que não é o caso.
De qualquer forma, essa produção que surgiu principalmente a partir dos anos 2000 e que se intensificou muito a partir da década atual, criou um espaço muito interessante que acabou gerando um ambiente que se fortalece cada vez mais e que é fecundo para o surgimento de novos poetas. O difícil é garimpar aqueles que são bons (ou seus pares) dentro de um grupo tão vasto e heterogêneo. Mas isso faz parte da diversão, até porque há muito coisa boa nesse meio.


[ FOLHA DE VIDA ]

Lucas Perito (São Paulo, 1985). Poeta. É graduado em Comunicação em Multimeios pela PUC-SP. Escreveu livros ligados a história e fotografia, fazendo os textos de acompanhamento para o livro fotográfico “Caminhos da Mantiqueira” (2011) de Galileu Garcia Junior. Publicou seu primeiro livro de poemas, 38 Movimentos, pela Lumme Editor (2018). Tem poemas publicados em algumas revistas brasileiras, além de algumas revistas de Portugal, Espanha, Galícia, Colômbia e Peru. Tem traduzido Charles Cros, David Diop, James Wright, Amparo Osorio, Abdellatif Laâbi, María Emilia Cornejo, Jacques Prevel, Hector de Saint-Denys Garneau, entre outros.



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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Anna Höch (Alemanha, 1889-1978)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 128 | Fevereiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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