[ DEZ POEMAS ]
ONDE
O SILÊNCIO
a mulher na água brota braços
onde no peito
raízes líquidas a fazem árvore lacrimae
chora o corpo pedindo sede a cada
músculo
areias
ancestrais escorrendo a garganta dentro
nos seios, a gravidade invertida retorce
amores convexos onde tudo quer rasgar sóis
arco-íris obscuros cantam em sua boca
cantilena espectral,
onde o silêncio é braço soberano
onde o silêncio é dor que se cala
onde o silêncio
OS
FOGOS
minha voz grita
a distância que seus cabelos
cantam fogos ateados.
o grito bate nos cabelos,
voz de fogo ardendo púrpura em sua
boca que guarda esse meu grito oco.
longe.
o desespero queima as idades,
meu grito estancado no vento
onde seus cabelos deitam
carícias que minha voz guarda silêncios.
— seus cabelos de rosáceas mudas.
grito o desespero oblíquo de não tocar-me
os seus cabelos que não
me batem luzes líquidas
a sua boca que guarda
em mim o seu silêncio
— grito que seus cabelos em minha boca
sepultam
o que de ti me calo
OUTONO
MORTO
cantasse o pássaro à boca do outono
e o húmus anunciado a morte nos ossos
toda voz teria morada em si um suicídio
uma morte é lentamente nos cantos
onde as axilas são côncavos de uma língua
morta na garganta de uma musa crespa
existida fora da pele que avança dedos
espetados em lágrimas cor de amianto
cujo rosto se enfesta de cansaço e tédio
esfarrapado na neblina agora quase
o bico do outono era neblina nos cantos
rangidos de folhas abertas ao fosso
mamilos de cem línguas apodrecidas
ao relento ontem quando
três bolivianas teciam moiras disfarçadas
em galpões de Lao-Tsé e os rostos todos
felizes enquanto tudo era já festejado
fora das moedas de celofane
a velha rancheira cantava grave com tabaco
podre na garganta un
dolor picante
debaixo das línguas pervertidas
a língua guardava teias orvalhadas
amanhecidas de bolor na boca
cujos lábios desenhavam um Ó inaugural
abençoando as nuvens roxas de cianureto
o rosto que guardava a boca era húmus seco
e havia morrido cem anos antes
de que se pudesse apodrecer sequer já
debaixo de um velho caroço o outono
mora em fumaças perplexas de horas
onde todo sal se consome em fígado e prata
onde todos os azuis são amores recusados de Dafne
a um deus manco e cagado de rumores de ossos
quando a dança é tronco e feridas lá onde
a voz do outono é tabaco grave
toda vida azul cerzida por três bolivianas moiras
tecendo ossos
bocas mofadas de tédio guardadas no rosto de uma ferida
aberta para o fosso e para os destinos
de onde quem lá quase
pudera.
há uma vocação dentro do nome.
e cada grito são flores saídas dos lábios
quando a noite ainda é aceno.
há uma vocação. e os ventos
nos mexem o alfabeto segredado
no mais fundo acima da terra.
era noite. e os nomes evocavam a vida.
a morte era ainda a criança vindoura
que gritava sua luz rupestre.
as mãos trabalhavam no nome a sua vocação.
mãos femininas designando o desejo,
pairando sobre as cabeças consteladas.
há uma vocação dentro do nome. e todas as letras,
guardadas ao fundo de outras vozes,
evocam cores segredadas no infinito
A
LÍNGUA NÔMADE
se eu falasse a língua dos atravessadores de desertos
se eu falasse toda a areia caída de seus ombros,
se eu falasse ainda a paisagem árida de seus dentes
a paisagem pura dos animais esfaimados
se eu falasse os animais assentados na saliva seca
se eu falasse de dentro da sede dos que morrem sob a lua
se eu falasse os dias habitados na pele da serpente
encerrados nas urnas que guardam as faltas todas
se eu falasse as estrelas pendidas nas pontas dos dedos
se eu falasse o sangue sustentado na costela ausente
se eu falasse a mulher o homem a criança e o centro da adaga
se eu falasse as falésias mudas pendidas na garganta
se eu falasse a voz das flores de sua saia
fazendo ventos em meu desejo
se eu falasse voz corpo o que quer que seja
se eu falasse a delicadeza deitada no mês de julho
se eu falasse as flores cobertas de fogo
se eu falasse os acentos inaugurais de um sorriso
se eu falasse o nome guardado em mim esta noite
se eu falasse
se eu falasse a verdadeira letra que iniciasse o verbo
se eu falasse os números quebrados em teus lábios rotos
se eu falasse o sim o não o nunca o agora
se eu falasse então isso assim lá onde
se eu falasse quando
se eu falasse quente o segredo da sopa
se eu falasse a mágoa acesa nos joelhos
se eu falasse as pedras que choram o chão
se eu falasse durma a grama de seu azul turbante
se eu falasse irilisili
se eu falasse anijiriraã
pisiriliá irujna keresê
khraô sirilitili keresaranaã
se eu falasse
se eu falasse.
FELICIDADE
esta noite eu tive um sonho
seu corpo saía do meu
como uma cadela ressurrecta
saía de mim como um rabo
feliz em minha inocência canina
saía como quatro patas ciscando
chão de areia fixa
fora de mim, velava meu corpo
(onde eu estava?)
teu nome não me dizia nada
o seu latido guardava o meu em segredo
o cio a deixava inquieta
suspensa entre quatro dentes
meu corpo - uma massa fixa
sem qualquer resposta
um sonho apenas
você sorria de rabo solto
sentada na relva feito quem
abro os olhos
corpo ausente
continuo rindo - desperto -
rabo solto sem relva
Amei o porco guardado nos olhos da mulher.
Era janeiro e a nascente de tudo era fora das chuvas. Amei o porco e ele amava a
traça no homem em mim. Vivíamos de desespero e água, e o esquecimento nos nutria
a fome. Era janeiro e como não haveria de ser se o sol queimava as águas guardadas
no verão? Era um rosto num olhar e ao novo já era outro o mesmo rosto. E eu era
traça, pulga, ranúnculos e fibras. E ainda assim, água, amei o porco nos olhos da
mulher guardado.
[POR
DUAS VEZES GRITEI]
Por duas vezes gritei e o que saia de minha
boca eram raízes extremas. Duas vezes, não mais que duas. Da primeira, sete aves
visitaram-me os lábios e com a certeza de quem assassina, comi-as todas. Farto,
sentei as raízes em minha desolação. Não podia mais ser grito, não podia – queria
apenas o silêncio perpétuo dos ânus venais. Isso foi há muito tempo, quando ainda
os deuses nasciam com os pés atados à terra e as árvores eram tecidas de carnes
mortas infantis. Da segunda, padeço ainda hoje das raízes saídas do sexo e do sonho
impossível dos voos de pássaros dos quais sinto toda a fome.
[ELE
COMIA SABUGOS MORTOS NA ESTRADA]
Ele comia sabugos mortos na estrada. Em
sua imundice, ele mastigava aquela matéria seca e árida de areia e saliva. Um coelho,
puro e limpo em sua brancura, prostra-se indiferente ao lado daquela podridão humana.
O homem, diante da bola branca pulsante, tomado por uma compaixão quase satânica,
oferece-lhe um de seus sabugos. O bicho indiferente distancia-se num salto, sutil
pluma de galinha que reza. O homem sente-se ultrajado, diminuído à última unha que
lhe resta nos dedos, a cada sabugo morto caído sobre a terra. Num rompante, certo
de sua miséria, exato em sua redenção, o homem consome a pureza no coelho com uma
mordida certeira que lhe parte cabeça e corpo.
[UM
PEIXE]
Um peixe nada em todo o esquecimento. De
que lodo é matéria a memória?
[ TRÊS PERGUNTAS ]
FM | Poesia, amor, liberdade – a tríade essencial
do Surrealismo. De que maneira ela faz parte de tua vida e se integra à tua criação?
DC | Não consigo conceber essa tríade desconectada
uma da outra. É como se elas fossem uma o alicerce da outra. Qualquer uma delas
que se ausentar, tudo desmorona. A poesia foi/é em minha vida uma via para sair
do “caminho da roça”, a qual pude fugir da roda que me colocaria em um lugar já
desenhado há muito. A poesia me deu a possibilidade do verbo, mas com uma força
expressiva da qual nunca soube ser capaz. O que me despoja de qualquer responsabilidade
ou culpa sobre uma provável mentalidade que oscilasse entre a culpa e o dever, nossa
herança cristã. E a liberdade aqui se faz pelo verbo. Desse despojamento é que o
amor pôde, de fato, se inaugurar num corpo que enfim se vê capaz disso. Sempre na
busca de ser um animal selvagem incapturável. E a partir daí, todo o ato de criação
— e vida, agora percebo que talvez não faça distinção dessas duas instâncias —,
é sempre uma tentativa de chegar a um limite que beira à garatuja, onde o ruído
ainda pode ser harmônico, no limite onde o terrível ainda guarda a possibilidade
de beleza. Onde a imagem significa, ainda que no silêncio ou num alfabeto todo aquebrantado.
FM | Dentro e fora do país, entre vivos e mortos,
independente até mesmo da poesia, não apenas citando os nomes, mas comentando os
motivos, poderias referir algumas afinidades tuas na criação artística?
DC | Desde meu interesse inicial por literatura,
o que sempre me chamou a atenção, nela e mesmo em outras manifestações artísticas
foram as imagens. Sentia isso em livros que lia e em filmes que assistia e, apesar
de minha total incompreensão (claro, hoje sei que no sentido 'racional') eu era
tomado por uma espécie de êxtase. Posso dizer que na juventude essa sensação se
dava principalmente em audições de Pink Floyd — a música “Echoes” me deixa com essa
sensação até hoje! —, filmes de David Lynch (um de seus últimos, Império dos sonhos é um primor nesse sentido.
Mas é em Clarice Lispector que reconheço o disparador. Tudo reduzido em uma única
sentença: “um clímax a cada frase”. Está lá, em Na hora da estrela. Escrevo até hoje perseguindo esse mandamento. Sempre
que lia uma frase que não entendia, era como se um soco saísse do livro em direção
à minha boca. É linda a imagem do tigre ferido em Água viva. Tudo o que vem depois são vasos comunicantes que se desdobram
dessa sentença mágica. Sem saber, almejando essa piscadela que me foi dada, criava
imagens. E só pude saber disso, que o que eu fazia eram imagens, em oficinas do
Claudio Willer, ao abordar o tipo de poesia que iria nos apresentar. Nesta época
já me encantava com Herberto Helder, que hoje é o poeta que tenho mais em conta
e algumas imagens às vezes me surgem repentinamente à cabeça. “uma vara canta branco
/ uma cidade canta luzes”... A imagem talvez tenha se tornado mais potente para
mim ao entrar em contato com a dança, mais especificamente com o Butoh de Kazuo
Ohno, em que a palavra discursiva e linear perdeu sua importância de vez para gestos
que resultavam em beleza convulsiva. Basta vermos alguns vídeos de sua dança, ou
mesmo fotografias desse imenso dançarino. Um corpo que expressa tudo o que a morte
pode significar e ainda assim transmitir uma beleza pungente.
FM | Tenho percebido que, sobretudo em poetas
nascidos a partir de 1980, há um renascimento na lírica brasileira, que é tanto
na densidade da escrita, quanto na definição de uma voz própria, quanto no sentido
de uma solidariedade explícita, sem que isto reflita a existência de um movimento.
O que observas a este respeito?
DC | Ao menos pensando nas pessoas com quem
compartilho a poesia (escrita ou afetuosamente), percebo que há uma aproximação
por afinidade e essa afinidade é menos estética do que cúmplice. Além de compartilharmos
da mesma constelação poética, os poemas são apresentados antes mesmo dos autores
ou obras. Os poemas surgem como que respondendo a alguma necessidade secreta, em
forma de questão, que tenta se responder dentro da impossibilidade de seu esgotamento.
Penso que essas trocas acabam por dar densidade e estofo ao fundo da criação por
ela se alimentar desses diálogos e contrabandos, que se faz numa espécie de conspiração
secreta. Claro, além do bando, há os lugares onde se faz possível o cruzamento dos
membros dessa imensa alcateia. Às vezes o próprio meio virtual cumpre esse papel
de nova analogia, mas na esfera pessoal creio que, apesar da crise, as livrarias
ainda são pontos luminosos (e por livraria digo a de livreiros que amam os livros,
não mega empreendimentos que não acessam a sensibilidade de um leitor mais curioso).
Ultimamente, me encontro com amigos que conheci recentemente, e que são tremendos
artistas, na Livraria Loplop, no bairro de Pompeia em São Paulo, do querido Alex
Januário. Desde a primeira vez que Elvio Fernandes e eu fomos conhecer esse pequeno
paraíso temos estado constantemente por lá, seja buscando livros, trocando ideias
ou principalmente, pela cumplicidade que há ali. Penso que essa solidariedade se
faz real sob a tenda da amizade.
[ FOLHA DE VIDA ]
Diogo Cardoso (São Paulo, 1983). Poeta.
Mestrando em literatura brasileira pela Universidade de São Paulo. Sem lugar
a voz (Dobradura, 2016) é seu primeiro livro.
*****
EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO
DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Anna Höch
(Alemanha, 1889-1978)
Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 128 | Fevereiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO
MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019
Nenhum comentário:
Postar um comentário