[ DEZ POEMAS ]
AZUL INAUGURAL
O óbvio tem folhas
de chumbo — o vento
me respira como faca.
Na pimenteira do novo
me queimo
por dentro.
Quero na boca
o óleo árido
das palavras
que não sangraram.
As rosas solitárias
do ocaso em busca
do odor do sol.
O meu vazio traduzido
em pássaros
póstumos.
Descobrir as rodas
do invento é a maçã
do Éden para
os poetas.
MOINHOS DE VENTO
Raquel chorava seus filhos trucidados
— eu choro os livros
não nascidos.
São pêndulos os anjos que quedam.
Na essência que me conflagra
minha metafísica estreita
os êxtases que escapam
dos molares de moinhos.
A incompletude irrompe
uma absurdidade incômoda.
Quero que sejam transcendentais
os acidentes.
Sublimo com água ácida
o eclipse que espelha
minha ascese de tarde.
Em pólvora e fogo guardei-me
nos sabres metálicos da noite.
No meu pouco tenho o limo
que safira a
gema celeste.
LÍRIO E FOGO
Cigarra
desengasga fogos
da garganta.
Ventos avessos
compõem mistérios
parindo ondas.
No intervalo do primeiro
haicai para o segundo
minha cabeça
é um espanto
de dúvidas.
1. O ser é tudo que foge.
1.1 Sou
Buda exilado no chão da alma:
vaga-lumes na caverna.
1.2 Sou
Sócrates bebendo
a morte: dentro de mim os dragões.
1.3 Uma
vez sonhei que era Aristóteles:
virtude no meio da loucura.
2. A ordem veste uma camisa
de linho e chumbo.
2.1 Fechaduras
no oceano — peixes nas
nuvens: em ardores quero um
porto inseguro.
2.2 O barco
tem bússolas e horizontes:
na orgia dos conflitos enfio o pênis no destino.
2.3 A identidade
não escuta o silêncio,
devoro o nada: o absurdo
é de tirar o fôlego.
3. As
dúvidas parecem um cavalo-marinho
3.1 O que
seria o escuro do ser humano?
Algo além de um banquete para
vermes e larvas.
3.2 Gosto
dos mistérios, são perguntas sem
respostas: labirintos do inefável.
3.3 Todo
suspiro do ordinário é Divino:
as chuvas, as cinzas da tarde
e o calor da amante.
Apêndice para o poema nunca
é tarde.
URGÊNCIAS
Uma chave
dentro
de um copo.
A ferida
acende-se em átomos.
A ausência espanta.
Uma cama
no meio do mar
varre uma pátria
de roupas sujas.
TEOLOGIA NEGATIVA
Nas maçãs do mistério um louco
morde a sombra
do sol.
Sob o peso
da solidão
é o meu número.
Hoje a comarca não me compra.
Uso sapatos
de chumbo para o vento
não me roubar.
Mostro a imensa substância
das noites escuras
de San Juan de La Cruz.
Na fuga
do hospício etéreo
a realidade se salva em porta:
arranha-céu.
NOITES ENSOLARADAS
Do poema, romperam-se as romãs.
No coro dos granizos,
fugiram as sibilas.
Íamos habitar a abóbada celeste,
mas a nave não atravessou
a noite do Hades.
Nossa odisseia era para ser maior
que o mar de
Homero.
AB INITIO
Nau da
existência,
a substância
salina.
Como sagrado é
o teu sexo,
salgada,
a tua língua.
Segredos de dunas,
os seus olhos
sob a lua: lumes.
Que se pólen
em acácia
lembram
um livro
fecundo.
Não sei se sou
apolíneo
ou dionisíaco:
gosto de Afrodite.
Acreditem
— aqui todos
os deuses cabem.
As ladeiras têm silhuetas
de artes plásticas —
entre letras e artesanatos
o amor é bento.
Em Olinda tudo calha
— uma baleia levita
na Rua do Amparo.
HOMO INCURVATUS
Retorno de um sonho com a
nona sinfonia na cabeça.
O peso da manhã coloca uma
lápide
[no esplendor das estrelas.
É um crepúsculo o mistério
que me encerra.
Fibras de aço deliram as
entranhas dos deuses.
Falsete (inglório) de um
banquete no escuro —
a harpa e o pássaro — amolo
o absurdo.
No caniço, uma liberdade
titânica:
a dúvida completa os cardumes
do fogo.
Poderes em contingência metálica
—
[o Estado é um cão bipolar
sua termodinâmica encurva
minha alma.
A voz de uma criança uma
oitava mais alta:
extático, derrubo o muro
da separação.
Com andarilhos, aprendi a
arrancar pedras de temporais
pilho ventos de um campo
de girassóis
corto serpentes na imensidão
do vácuo.
Descalço algemas — para a
pátria sou cético.
Em essência a fumaça do incenso
é o perfume de Deus
o deserto — solidão das pétalas
—
grafa
minhas digitais na loteria da viagem.
[ TRÊS PERGUNTAS ]
FM | Poesia, amor, liberdade – a tríade essencial
do Surrealismo. De que maneira ela faz parte de tua vida e se integra à tua criação?
TL | A tríade surrealista diz muito para os
meus interesses poéticos. Sempre procuro dialogar com o mundo e adentrar a fealdade
do real. Assim como questionar o projeto falido da racionalidade instrumental, em
que a lógica é utilizada como meio para justificar o poder de uma pequena elite
tecnológica e bélica. Acredito que é da luta contra a violência e a exploração que
emerge a tríade, pois ela nunca é opaca e é sempre um devir. A poesia (sempre minoritária
como lembrava Roberto Piva), estando distante do status quo oferece elementos para criticar o próprio estado das coisas
existentes. Justamente quando nossa liberdade é parqueada, e as minorias são dizimadas,
é que a tríade surrealista se torna um convite para sair do piloto automático e
fugir do óbvio. Nessa direção, a procura do inusitado a partir de conceitos diferentes,
no mesmo verso ou estrofe, sempre foi a maneira que encontrei para gerar o espanto
e fugir da ditadura do real, principalmente em tempos do bestialmente correto e
de um fascismo crescente no Brasil.
FM | Dentro e fora do país, entre vivos e mortos,
independente até mesmo da poesia, não apenas citando os nomes, mas comentando os
motivos, poderias referir algumas afinidades tuas na criação artística?
TL | Gosto muito da poesia do Manoel de Barros,
de modo especial sua criação de imagens e seu neologismo, assim como a sinestesia
de seus versos. O poeta Armando Freitas uma vez falou que sempre se encontra quando
lê Drummond. Parafraseando o Armando, eu digo: quando estou perdido sempre me encontro
quando leio o Barros. Baudelaire e Rimbaud foram muito importantes para minha poesia.
Com o primeiro abracei o papel do poeta de revelar a realidade com toda a sua fealdade
e fugacidade, e com o segundo a alquimia do verbo como a transposição dos sentidos.
Gosto também dos poetas chilenos Pablo Neruda e Vicente Huidobro. O Neruda escreveu
a trilogia das Residências, com todos
os elementos surrealistas que muito me agradaram, e uma vez por ano releio Residência na terra II. Já o Altazor, do Huidobro, é um livro que sempre
me acompanha.
FM | Tenho percebido que, sobretudo em poetas
nascidos a partir de 1980, há um renascimento na lírica brasileira, que é tanto
na densidade da escrita, quanto na definição de uma voz própria, quanto no sentido
de uma solidariedade explícita, sem que isto reflita a existência de um movimento.
O que observas a este respeito?
TL | Estamos em tempos implumes e de intolerância
em que as minorias são ameaçadas. Há um discurso totalitário que já não é mais disfarçado,
lembrando Herbert Marcuse, estamos inseridos numa sociedade unidimensional onde
qualquer discurso divergente é retaliado e ridicularizado, e, quando foge da lógica
dominante, é considerado insólito. Isso desperta
na nova geração uma vontade de mudança e transcendência. Aquele nó na garganta quando
as palavras falham ou a sensação de que somos muito mais do que o nosso papel social
nos provoca. Com o poema damos nossa resposta de uma vida que muitas vezes encontra-se
estilhaçada. Assim, a poesia surge no seu verdadeiro potencial subversivo, pois
a arte tem como função transfigurar a realidade, fazer o ausente aparecer.
[ FOLHA DE VIDA ]
Tito Leite (Ceará, 1980).
É poeta e monge, mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. Tem experiência na área de ensino de Filosofia, com ênfase em Filosofia Política,
Ética, Filosofia da Ciência e da Tecnologia. Autor do livro de poemas Digitais do Caos (Selo edith, 2016).
*****
EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO
DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Anna Höch
(Alemanha, 1889-1978)
Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 128 | Fevereiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO
MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019
Nenhum comentário:
Postar um comentário