sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

1980 TITO LEITE


[ DEZ POEMAS ]

AZUL INAUGURAL

O óbvio tem folhas
de chumbo — o vento
me respira como faca.

Na pimenteira do novo
me queimo
por dentro.

Quero na boca
o óleo árido
das palavras
que não sangraram.

As rosas solitárias
do ocaso em busca
do odor do sol.

O meu vazio traduzido
em pássaros
póstumos.

Descobrir as rodas
do invento é a maçã
do Éden para
os poetas.


MOINHOS DE VENTO

Raquel chorava seus filhos trucidados
— eu choro os livros
não nascidos.

São pêndulos os anjos que quedam.

Na essência que me conflagra
minha metafísica estreita
os êxtases que escapam
dos molares de moinhos.

A incompletude irrompe
uma absurdidade incômoda.

Quero que sejam transcendentais
os acidentes.

Sublimo com água ácida
o eclipse que espelha
minha ascese de tarde.

Em pólvora e fogo guardei-me
nos sabres metálicos da noite.
No meu pouco tenho o limo
que safira a gema celeste.


LÍRIO E FOGO

Cigarra
desengasga fogos
da garganta.

Ventos avessos
compõem mistérios
parindo ondas.

No intervalo do primeiro
haicai para o segundo
minha cabeça
é um espanto
de dúvidas.


TRACTATUS ILOGICO-POETICUS


1. O ser é tudo que foge.

1.1 Sou Buda exilado no chão da alma:
      vaga-lumes na caverna.

1.2 Sou Sócrates bebendo
      a morte: dentro de mim os dragões.

1.3 Uma vez sonhei que era Aristóteles:
      virtude no meio da loucura.

2. A ordem veste uma camisa de linho e chumbo.

2.1 Fechaduras no oceano — peixes nas
      nuvens: em ardores quero um
      porto inseguro.

2.2 O barco tem bússolas e horizontes:
      na orgia dos conflitos enfio o pênis no destino.

2.3 A identidade não escuta o silêncio,
     devoro o nada: o absurdo
     é de tirar o fôlego.

3. As dúvidas parecem um cavalo-marinho

3.1 O que seria o escuro do ser humano?
      Algo além de um banquete para
      vermes e larvas.

3.2 Gosto dos mistérios, são perguntas sem
      respostas: labirintos do inefável.
     
3.3 Todo suspiro do ordinário é Divino:
      as chuvas, as cinzas da tarde
      e o calor da amante.

Apêndice para o poema nunca é tarde.


URGÊNCIAS

Uma chave
dentro
de um copo.

A ferida
acende-se em átomos.

A ausência espanta.

Uma cama
no meio do mar
varre uma pátria
de roupas sujas.


TEOLOGIA NEGATIVA

Nas maçãs do mistério um louco
morde a sombra
do sol.

Sob o peso
da solidão
é o meu número.

Hoje a comarca não me compra.

Uso sapatos
de chumbo para o vento
não me roubar.

Mostro a imensa substância
das noites escuras
de San Juan de La Cruz.

Na fuga
do hospício etéreo
a realidade se salva em porta:
arranha-céu.


NOITES ENSOLARADAS

Do poema, romperam-se as romãs.
No coro dos granizos,
fugiram as sibilas.

Íamos habitar a abóbada celeste,
mas a nave não atravessou
a noite do Hades.

Nossa odisseia era para ser maior
que o mar de Homero.


AB INITIO

Nau da
existência,
a substância
salina.

Como sagrado é
o teu sexo,
salgada,
a tua língua.

Segredos de dunas,
os seus olhos
sob a lua: lumes.

Que se pólen
em acácia
lembram
um livro fecundo.


LICORES DE OLINDA

Não sei se sou
apolíneo
ou dionisíaco:
gosto de Afrodite.

Acreditem
— aqui todos
os deuses cabem.

As ladeiras têm silhuetas
de artes plásticas —
entre letras e artesanatos
o amor é bento.

Em Olinda tudo calha
— uma baleia levita
na Rua do Amparo.


HOMO INCURVATUS

Retorno de um sonho com a nona sinfonia na cabeça.
O peso da manhã coloca uma lápide
[no esplendor das estrelas.
É um crepúsculo o mistério que me encerra.
Fibras de aço deliram as entranhas dos deuses.
Falsete (inglório) de um banquete no escuro —
a harpa e o pássaro — amolo o absurdo.
No caniço, uma liberdade titânica:
a dúvida completa os cardumes do fogo.
Poderes em contingência metálica —
[o Estado é um cão bipolar
sua termodinâmica encurva minha alma.
A voz de uma criança uma oitava mais alta:
extático, derrubo o muro da separação.
Com andarilhos, aprendi a arrancar pedras de temporais
pilho ventos de um campo de girassóis
corto serpentes na imensidão do vácuo.
Descalço algemas — para a pátria sou cético.
Em essência a fumaça do incenso é o perfume de Deus
o deserto — solidão das pétalas —
grafa minhas digitais na loteria da viagem.


[ TRÊS PERGUNTAS ]

FM | Poesia, amor, liberdade – a tríade essencial do Surrealismo. De que maneira ela faz parte de tua vida e se integra à tua criação?

TL | A tríade surrealista diz muito para os meus interesses poéticos. Sempre procuro dialogar com o mundo e adentrar a fealdade do real. Assim como questionar o projeto falido da racionalidade instrumental, em que a lógica é utilizada como meio para justificar o poder de uma pequena elite tecnológica e bélica. Acredito que é da luta contra a violência e a exploração que emerge a tríade, pois ela nunca é opaca e é sempre um devir. A poesia (sempre minoritária como lembrava Roberto Piva), estando distante do status quo oferece elementos para criticar o próprio estado das coisas existentes. Justamente quando nossa liberdade é parqueada, e as minorias são dizimadas, é que a tríade surrealista se torna um convite para sair do piloto automático e fugir do óbvio. Nessa direção, a procura do inusitado a partir de conceitos diferentes, no mesmo verso ou estrofe, sempre foi a maneira que encontrei para gerar o espanto e fugir da ditadura do real, principalmente em tempos do bestialmente correto e de um fascismo crescente no Brasil.

FM | Dentro e fora do país, entre vivos e mortos, independente até mesmo da poesia, não apenas citando os nomes, mas comentando os motivos, poderias referir algumas afinidades tuas na criação artística?

TL | Gosto muito da poesia do Manoel de Barros, de modo especial sua criação de imagens e seu neologismo, assim como a sinestesia de seus versos. O poeta Armando Freitas uma vez falou que sempre se encontra quando lê Drummond. Parafraseando o Armando, eu digo: quando estou perdido sempre me encontro quando leio o Barros. Baudelaire e Rimbaud foram muito importantes para minha poesia. Com o primeiro abracei o papel do poeta de revelar a realidade com toda a sua fealdade e fugacidade, e com o segundo a alquimia do verbo como a transposição dos sentidos. Gosto também dos poetas chilenos Pablo Neruda e Vicente Huidobro. O Neruda escreveu a trilogia das Residências, com todos os elementos surrealistas que muito me agradaram, e uma vez por ano releio Residência na terra II. Já o Altazor, do Huidobro, é um livro que sempre me acompanha.

FM | Tenho percebido que, sobretudo em poetas nascidos a partir de 1980, há um renascimento na lírica brasileira, que é tanto na densidade da escrita, quanto na definição de uma voz própria, quanto no sentido de uma solidariedade explícita, sem que isto reflita a existência de um movimento. O que observas a este respeito?

TL | Estamos em tempos implumes e de intolerância em que as minorias são ameaçadas. Há um discurso totalitário que já não é mais disfarçado, lembrando Herbert Marcuse, estamos inseridos numa sociedade unidimensional onde qualquer discurso divergente é retaliado e ridicularizado, e, quando foge da lógica dominante, é considerado insólito.  Isso desperta na nova geração uma vontade de mudança e transcendência. Aquele nó na garganta quando as palavras falham ou a sensação de que somos muito mais do que o nosso papel social nos provoca. Com o poema damos nossa resposta de uma vida que muitas vezes encontra-se estilhaçada. Assim, a poesia surge no seu verdadeiro potencial subversivo, pois a arte tem como função transfigurar a realidade, fazer o ausente aparecer.


[ FOLHA DE VIDA ]

Tito Leite (Ceará, 1980). É poeta e monge, mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Tem experiência na área de ensino de Filosofia, com ênfase em Filosofia Política, Ética, Filosofia da Ciência e da Tecnologia. Autor do livro de poemas Digitais do Caos (Selo edith, 2016).



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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Anna Höch (Alemanha, 1889-1978)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 128 | Fevereiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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