[ DEZ POEMAS ]
MANICÔMIO
A CÉU ABERTO
para Stella Díaz Varín y Leopoldo María
Panero
carrego em mim dez mil livros
e tenho uma só vida para escrevê-los
a morte me morde os calcanhares
– isso não é nenhuma novidade –
tem sido assim desde que completei dezenove meses de existência
escrevo como minha vó se despedia
como quem se vê por última vez
como quem sente as mordidas da morte nos calcanhares
como quem escuta o ranger de dentes da moça Caetana
como quem já amou e já aprendeu que o melhor sinônimo do amor
é a crueldade
escrevo como quem escreve um testamento
tenho uma filha linda
e sonho que tudo que escrevo fará parte de sua deseducação sentimental
cada dia escrevo mais
cada dia escrevo melhor
e sonho que tudo que escrevo chegue aos olhos dela um dia
como Stella, a víbora eterna
não poderia deixar meus mortos em paz
muito menos os vivos
nem pretendo que me deixem descansar em vida
muito menos depois de morto
como Leopoldo, o sempre louco
escrevo como quem se droga
não suporto as intensas crises de abstinência quando tento parar
e há muito tempo descobri que o melhor da vida
são os vícios
tenho uma filha linda
uma ex escrota que me enche o saco
e uma linda esperança verde que mora na minha cozinha
mas nada disso é suficiente
nada é suficiente
quando se tem em si todos os sonhos do mundo
quando se tem dez mil livros dentro de si
e só uma vida para escrevê-los...
ORAÇÃO
quando todos pensarem que estou morto
estarei na montanha mais alta da Grande Aldeia
ao lado direito de Augusto dos Anjos
sob a sombra do sol esquecido
refletido nas raízes dos olhos de Cruz & Sousa
quando todos pensarem que estou morto
estarei na selva maior da Aldeia Grande
na forma de vento ou de pássaro noturno
olhando os mistérios da terra
encravados nos caminhos arcaicos
quando todos pensarem que estou morto
estarei nu no olimpo
um deus entre os deuses
como um rei selvagem
ou um monge ébrio entre os miseráveis
quando todos pensarem que estou morto
estarei na taberna ou na praia mais fascinante
conversando com a Virgem e com Álvares de Azevedo
fumando haxixe, ópio e marijuana
bebendo lentamente o vinho das almas
quando todos pensarem que estou morto
estarei em meditação tão profunda
que um tonto me tomará por um espectro ou por um fantasma
e os sábios cairão por terra
cegos pelo brilho da estrela que arde em meu estômago
quando todos pensarem que estou morto
estarei vivo na última semente
apodrecendo no charco
& germinando a árvore do próximo planeta
depois da morte e do enterro da esperança
O CANTO DO ANJO VERMELHO
um blues esfarinha os ossos da saudade
apenas o temor me abriga
nessa noite sem esperança
onde estão as mulheres-verdes ?
onde estão as mulheres-algas ?
onde está o gibão anti-radioativo
para desarmar a cabeça-dinamite
do século ?
a estrada tem fome
talhos & atalhos para os príncipes da
paranóia
: são dez e cinqüenta e quatro
, posso morrer confortado pela ausência
de olhares
estou em casa, meu sono está morto
& as mentiras soterradas em minhas unhas
um blues é um atalho
para a sobrevivência ou o esquecimento
o amor é a violência do assassinato
o desespero é o sangue do misticismo
assim como a noite é a estrela da fuga
& o escuro um daimon arcaico
há dias que estou em transe
aspirando o álcool prostituído dos postos
de combustível
dirigindo meus sonhos no interior da valise
das caveiras
& ruminando essas digitais impressões
minerais
há anos que estou amedrontado
& nenhum raio me guia para nenhum território
pacífico
ainda posso suicidar este corpo que não
me pertence
mas prometi ao deus dos espelhos que não
o faria
descobri essa arma enterrada nas cinzas
de meus pulmões
morrerei como uma coruja que antes do parto
tratou de profetizar sua própria morte
ou como um galo que pela manhã canta o velho
sol esquecido
em minhas veias nenhuma morfina foi encontrada
nenhum metal precioso
ou equivalente
em minhas veias foi encontrada a ira &
a herança
a covardia e a nudez de um anjo
o mar se curva perante a aurora
no altar de meus pesadelos
só há agora pecados & automóveis
& a poeira das vestes desfiguradas
ruge a sombra ruge a fera
ruge o sino assombroso da catedral
nunca serei fuzilado
a menos que o crepúsculo se instale no coração
do meio-dia
meus braços foram criados para empunhar
pás de areia
para
enterrar entes queridos
& se meu hálito recende à cachaça
isso é melhor que não ter hálito nenhum
espectros de caleidoscópios girando entre
ressentidas estrelas
qual os ponteiros de um relógio fúnebre
ou de um mirar vazio
no horizonte
assim é a vida: sina de telefone que toca
insistentemente sem que ninguém atenda
nos andes o frio me aguarda
sóbrio & sombrio como uma língua desconhecida
em busca de um
beijo ou da garganta aberta do inimigo
somos todos a
suavidade de um deus que dança
– escatológicos
signos de uma relva que amanhece –
antes mesmo de nascer
SEMBLANZA
DE MI ABUELO
hoje, ainda mais que sempre, sua
voz em minha voz sussurra
sua alegria, em minha garganta,
como um gigante azul desperta
suas mãos trêmulas já nas minhas
reverberam
seu canto rouco em meus gestos loucos
reencarna
hoje, ainda mais que sempre, sei
que fui seu último sonho e pesadelo
sua última tempestade e criação
tão bem recordo suas sentenças sobre
a morte
seu hálito de amor e cachaça coagulada
sua saudade exposta às vésperas
sobre a mesa:
a cidade desaparecendo
as pessoas desaparecendo
os sentidos aturdidos
e o tempo apodrecendo à luz das
lamparinas mortas
hoje, ainda mais que sempre, pressinto
teu olhar pousando sobre minha filha
teus rancores corroendo a vastidão
oferecida
e a desmedida do remorso incauto
abarcando com suas asas torpes
as fronteiras acesas de nossa imensidão
hoje, mais que nunca, o vento me
traz tua imagem bíblica
faróis insanos, turbulentos mares
em meu peito segue a arder tua velha
insígnia
e como as bestas do zodíaco alquímico
transfiguro-me e me dissolvo
em teu apocalipse: meu gênesis,
meu infeccionado chão
para
cruz & souza
em cada vértebra em cada osso em cada célula em cada
glóbulo
em cada instante percorrido do ventre intoxicado de
nicotina que
habitei por nove longos meses
até esse presente de águas paradas, mortas, cheirando
a resíduos
de curtume italiano & papelera nacional
todas as selvas com sua saudável barbárie aniquilada
todos os homens de além-mar
todas as violências sugeridas ou executadas
todos os gozos desperdiçados
em cada pelo de minha sobrancelha inexistente
em cada trecho musical da sinfonia que substituiu minha
memória roubada
em cada centelha de larva deste vulcão onde oro
em cada litania que proferi aos decaídos
em cada ferida que abri com meu punhal
em cada garganta que sufoquei com meus próprios punhos
em meu coração que ainda bate que ainda grita que ainda
sonha
em cada onça em cada criança em cada sorriso
no centro do sexo de cada uma das filhas de hamurabi
no velho casarão, no cume do paredão de pedra, no apartamento-cemitério
em cada gota de neblina que se apresenta nessa atmosfera
a cada golpe que minha língua desferiu contra a mediocridade
de alguém
por todos os versos que escrevi para todos e para ninguém
por todos os versos que não cheguei a escrever por não
suportar o que traziam
pelos leprosos que comigo atravessaram as madrugadas
por todos os solilóquios que me conduziram nos labirintos
da insônia
por cada dia que me foi concedido sobre essa terra povoada
de males e fantasmas
por cada pão que me atiçou a sede
pelas mãos que acariciaram meus cabelos
pelo vinho que regou minhas febres e norteou minhas
alucinações
– mesmo as mais impróprias e abjetas –
por todas as sombras que dançaram ciranda comigo em
volta do fogo
pela mulher coberta de algas & sal
que abriu seu corpo entre as falésias
e me afogou no sangue sagrado que de si jorrava
por cada um dos olhos ou dos cílios que mastiguei sem
piedade ou compaixão
pelo terror que travou relações de amizade com minha
infância
no silencioso sótão hoje em ruínas
pelas línguas que se perderam nas conquistas e que ressuscitam
a cada café da manhã
por cada um de meus naufrágios
por todas minhas ilhas
pela mácula imperdoável nos gestos de quem me negou
o que me pertencia
pela minha crueldade e minha capacidade de decepar peixes
e
deflorar sonhos em botão
por toda a bílis que vomitei nas incontáveis ressacas
que me atravessaram
por tudo e por nada
por todos e por ninguém
pela delicadeza e pela brutalidade
pela freira neurótica e por toda a devassidão dos monges
em seus delírios de haxixe
arde, hoje, essa estranha e desfigurada catedral em
chamas
e todas as confissões e todas as penitências e todos
os exorcismos e
todos os malabarismos e tudo o que é fugaz e o que é
impróprio e
o que é devoração e o que é céu azul e o que é meio
dia e
o que é cicatriz e o que é insolação e
oásis oásis oásis
– como quando chupastes minha pica ao pôr-do-sol no
mirante dos traidores –
a jugular aberta – nunca saberei se por um beijo do
inimigo ou pela foice impronunciável –
a chuva, as serpentes rastejando, os leprosos, o calor
úmido da selva
– ou seria do útero ainda? –
em cada vértebra em cada osso em cada célula em cada
glóbulo de meu sangue
essa chuva que amanheceu se sente
com a mesma intensidade que o chicote na carne de um
escravo
sendo açoitado na vitrine da mórbida feira onde transeuntes
amordaçados
perdem a vida em estúpidas tentativas de preservar
cada reencarnação cada aparição cada grito abafado
– por meios rápidos eficazes e pretensamente seguros
–
na solidão e intimidade que reina entre nossos apetrechos
de dormir:
onde o sono se confunde irremediavelmente com as cinzas
necrosadas
subitamente revolvidas pelo mar de éter em que estamos
todos mergulhados
REGRESSO
DA MAIS LONGA DAS VIAGENS
também o tempo morre e como todos os mortos exige sua sepultura
estive na trácia na índia no paquistão
buscando um chão para esse intervalo miserável de tempo
perambulei maltrapilho e insone carregando esse fardo
esses farrapos de luz e cultura e amor e baba de vira-lata
buscando um lugar adequado para depositar esses restos de vida
que na íngreme subida do himalaia
iniciaram sua transmutação em lixo radioatômico
e ameaçaram a estrutura saudável de minhas células
estive em persépolis na babilônia e em creta
implorando aos filhos de zoroastro um pedaço de cosmos
para enviar esses satélites paralíticos e deformados
que no auge de uma combustão espontânea
ardiam sobre meus ombros
como uma sarça silenciosa e infeliz
irradiando uma poeira fina e asquerosa
que nem bem tocava a pele ou qualquer outra superfície
se transformava em vorazes vermes insaciáveis
que a tudo corroíam com uma fome febril e desmesurada
no meu encalço sempre o hálito da morte
bafo de cálcio e amianto
promessas de vinganças nada doces
rastejando como uma entidade decaída e maquiavélica
na órbita daquele sol que um dia habitou com plenitude a minha
face
estive no cariri em olinda e no rio das onças
procurando um palmo sagrado de terra prometida
onde enterrar esse defunto estirado nessa rede
que me tocou carregar sozinho
que transformou minha coluna num tobogã
que provocou dores corporais intraduzíveis
e acelerou o processo natural de envelhecimento dessa carcaça
estive fora por muito tempo
agora estou de volta
trouxe comigo uma das luas de saturno
trouxe comigo uma cor verde típica de uma alga marinha em extinção
trouxe uma nova e estranha serenidade
que encheu de perfume a mochila anteriormente cheia de esterco
e solidão
trouxe comigo uma fita cassete com canções jamaicanas sobre a
liberdade
com uns poemas novayorkinos sobre magia & perda
com uma linda loira junkie alemã cantando a mais aprazível de
todas as estações
cheguei nessa cidade em estado meio sonâmbulo
e andei e andei e andei por essas ruas antigas de calçamento
irregular
como um fantasma que mal termina de adentrar o inferno
e percorri todos os caminhos desse povoado de sombras e loucos
como se nunca estivesse saído daqui
como se nunca tivesse conhecido o oriente
como se nunca houvesse existido nenhum regresso
alguns me reconheceram apesar do estado deplorável de meu espírito
e seus dedos e seus olhares e suas mórbidas curiosidades
se esticaram em minha direção
denunciando a deterioração de minhas vestes
o desânimo de minha alma em frangalhos
e o nonsense de meus
gestos todos
alguém não hesitou aproximar-se
entregou-me algumas flores
visivelmente mal tratadas pela ação implacável do sol dos trópicos
e me ofereceu um beijo simples e cheio de amor e ternura
em seguida se retirou com passos seguros
com passos de quem sim há muito aprendeu a caminhar só na noite
escura...
eu,
que nunca fui concretista
que nunca fui marginal
que cheguei demasiado tarde à todas as festas
e modernidades
que fui obrigado a interrogar a cerca quando
o pássaro voava
que ninei meus fantasmas como se fossem
meus únicos contemporâneos
que desperdicei todos os ventos em nome
de uma divindade morta
que acumulei os dias entre outros vestígios
e anomalias
que nunca me deixei satisfazer nem quando
a espreita parecia total
que vi meus melhores delírios se afogando
num mar de promessas estúpidas
que deixei de acreditar antes que a noite
atingisse seu ápice
que perdi meus dedos na umidade dos úteros
que nunca cheguei a compreender a lógica
dos preços
que estagnei quando necessitava me movimentar
que amordacei onças com silêncios arrancados
às pedras
que fugi da guerra quando a batalha foi
contra o mar
que me separei de mim mesmo pra poder respirar
que sobrevivi a todos os naufrágios
que parei de escrever quando amanheceu
que cantei e cantei e cantei até águas de
não mais parar
eu,
que há muito tempo invento falésias em meio
às falácias
que desisti dos orgasmos e das quaresmas
que nunca acreditei em vitórias ou proletariados
despertei com uma preguiça de alegrar os
olhos
e uma vontade irresistível de nada a declarar.
CÂNTICO
AO SOL ESQUECIDO
radiante o sol do entardecer
que ao despedir-se e submergir no horizonte
ilumina o musgo e o limbo florescente
restituindo à pedra sua pele & sua integridade
radiante o sol do entardecer
que ao despedir-se e submergir no horizonte
acalenta o poeta que desde a margem de seu antigo rio
observa o naufrágio de um coração vazio e abandonado
que ao afastar-se definitivamente do porto
se depara com os escuros corredores que há tanto lhe aguardavam
radiante o sol do entardecer
que apascenta a aurora e
faz vibrar outra vez no céu o arco-íris
faz bailar as raízes sobre a insanidade da relva
guiando até a fronteira do inferno
a derradeira lágrima que escorre
radiante o sol do entardecer
que dissolve como um ácido
as arestas pálidas da facial cicatriz que adorna
o pródigo e perdulário viajante
& que em fumaça transubstancia
sua sombra
e todo o horror que carrega em seu alforje
radiante o sol do entardecer
que arde e consome as cinzas que alheio carnaval
espalhou sobre as vestes brancas que protegiam minhas feridas...
radiante sol do entardecer
no norte a morte não me assusta
seus sussurros são carícias e seus olhos candeeiros
tochas de carvão acesas atrás do fogo-fátuo do mundo
revelando os negativos fotográficos do Sonho miraculoso e perdido
radiante o sol do entardecer
que devolve às trevas o que trevas decidiu ser
com todos seus atributos suas qualidades e suas feições esquálidas...
radiante o sol do entardecer
que ilumina os seres que dançam a ciranda cósmica
e a memória do rio e das margens e das onças que sem nunca existirem
tornaram-se a única e tangível realidade
radiante o sol do entardecer
que em sua trajetória oblíqua
termina por reencarnar o chão onde tudo se iniciou
o sangue inutilmente derramado de meu pai
a catedral em chamas
o cálice da futilidade e do absurdo
e a
ressurreição das movediças vísceras das areias entorpecidas de uma praia chamada
futuro
guiando a derradeira lágrima em direção ao inferno
radiante o sol do entardecer
que ao despedir-se e submergir no horizonte
faz florescer as ervas do deserto
e propaga no vácuo as vibrações nervosas que sobreviveram
à passagem dos fantasmas
à tertúlia dos fantoches
e à caricatura dos esqueletos
descalcificados pela cruenta e bizarra batalha
com a própria sombra
radiante sol do entardecer
lembrança inescusável das divindades sertanejas e seus oráculos
sua rispidez precisa
sua fértil aridez
seus sacrossantos anátemas...
radiante sol do entardecer
crepúsculo e amanhecer do reino das águas claras
sideral espaço povoado por balões mágicos
bonecas que falam
sabugos de milho sábios
rinocerontes encantados
& uma infinidade de quitutes imaginários
radiante sol do entardecer
dissipando com seus raios qualquer culpa
e afastando definitivamente da catedral em chamas
o coração vazio e abandonado
os olhos neblinados
e suas chantagens
o cálice do absurdo
e da futilidade
e derramando sobre o limbo e o musgo da pedra
seu princípio vital sua beleza sua coragem
restituindo à sua pele
sua ousadia & sua integridade
radiante sol do entardecer
tartarugas de argila, equinócio de sapos
piolhos, cicatrizes, bactérias
cafeína, antibióticos, alucinações
infância
desconhecida habitada por moléculas de duendes, sacis, gnomos e outras fadas
radiante sol do entardecer
rainha do ignoto
daimon arcaico
que ao meu lado caminha
nossa senhora das carnívoras plantas
& das desterradas flores
rogai
por nós
tarântula do paraguassú
rogai
por nós
jaguatirica da fazenda do mato alto da serra de calcário
rogai
por nós
gavião selvagem do Orinoco
rogai
por nós
verdes abutres da colina do bom parto
rogai
por nós
nossa senhora da lepra e da boa morte
rogai
por nós
virgem da compulsão e da piedade
rogai
por nós
não posso dizer nada além de pronunciar teu nome:
o marfim dos meus dentes cravado em teus seios como um amuleto
mágico
radiante sol do entardecer
tartarugas de argila, equinócio de sapos
piolhos, cicatrizes, bactérias
cafeína, antibióticos, alucinações...
radiante sol do entardecer
rainha do ignoto
litros & litros de meu esperma
banhando teu corpo
curando no teu sono e no céu da tua boca
acariciando a vertigem de teu rastro
litros & litros de esperma
banhando teu corpo – essa capela, esse templo, essa sagrada cidadela
onde sacrifico flores corrompidas pela ação implacável dos trópicos:
flores brutalmente arrancadas do monastério onde as feras se
devoram...
A CASA DOS MIL FANTASMAS
Eles vieram e eram muitos.
Eram sete para ser exato.
Eles chegaram e se serviram.
Beberam conhaque, fumaram cigarros,
comeram carne.
Se lambuzaram de bolo e sorvete.
Rodopiaram sobre a mesa.
Atiçaram a todos.
Destruíram algo dentro de mim.
Depositaram sobre meus ombros o
peso do mundo.
E partiram outra vez.
FROM THE MORNING
Saw it written and I saw it
say
Pink moon is on its way
Pink moon is on its way
Nick Drake
encontrei nick na floresta
ele era só um jovem triste, belo e melancólico
extraindo a alma de um violão
encontrei nick na floresta
e nós subimos uma colina juntos
e sentamos na última pedra do sonho
encontrei nick na floresta
seus olhos irradiavam uma luz estranha
ele sabia que a morte já chegava
e nada mais lhe importava
apenas o seu violão
encontrei nick na floresta
nós subimos uma colina juntos
e sentamos na última pedra do sonho
e ficamos em silêncio
olhando o rebanho de gaviões
remando em direção ao horizonte
onde já despontava a lua rosa...
[ TRÊS PERGUNTAS ]
FM | Poesia, amor, liberdade – a tríade essencial
do Surrealismo. De que maneira ela faz parte de tua vida e se integra à tua criação?
NG | De alguma maneira penso que o surrealismo
foi a radicalização de alguns aspectos da cosmovisão romântica e, nesse processo,
todo seu projeto de expansão daquilo que chamamos realidade terminou por confluir com uma série quase infinita de elementos
originários de matrizes culturais não-europeias. A tríade a que você se refere,
em minha opinião, foram formas de expressar conceitualmente a arcaica e insistente
investigação acerca do Sonho sobre o qual se funda o mundo e todas as formas existentes.
Isso já estava presente em todas as culturas tradicionais e no projeto estético
dos românticos. As implicações éticas e estéticas disso tudo são extensas e exigiriam
um esforço enorme e coletivo de pesquisa. No caso latino-americano, as próprias
contradições teóricas do projeto de recepção dessas formulações francesas são exemplares
da imensa dificuldade de avaliar como os sentidos simbólicos e práticos dessas ideias
de poesia, amor e liberdade foram se metamorfoseando historicamente. Isso fica explícito
quando se lê com mais atenção o famosíssimo prólogo de Alejo Carpentier a seu romance
O reino deste mundo e quando se explora
as contradições entre as formulações explicitadas naquele texto e o próprio romance.
Para o bem e para o mal, ainda permanecemos no interior dessa grande teia que o
romantismo estendeu: a própria ascensão de formas contemporâneas da cultura fascista
são sintomas de que o desencantamento do mundo e a hegemonia de uma racionalidade
científica têm limites mais estreitos do que gostariam os engenheiros sociais e
os neopositivistas de plantão. Infelizmente a imaginação coletiva tem, cada vez
mais, aderido a projetos autoritários e repressivos: como ocorreu no passado com
os futuristas italianos ou com o historiador das religiões Mircea Eliade. Por outro
lado, existe um desejo presente de libertar a imaginação de todo o aparato dessa
gigantesca e absurda máquina de espoliação e repressão que foi o colonialismo —
movidos por esse desejo tem se construído uma série de projetos emancipatórios e
libertários que tem tentado livrar-se da visão folclorista, antropológica e exotizante
no seu anseio permanente de reconstruir, desde o interior mesmo da diferença, novos
conceitos do que pode chegar a ser a poesia, o amor, a liberdade e, em última instância,
o próprio Sonho sustentador do mundo e de todos os seres. Todas essas questões atravessam
minha busca e minha escrita. Com todas as terríveis contradições que elas trazem
e que, no meu caso, se apresentaram no anátema bizarro de ter sido criado num lugar
com um passado genocida marcado pela guerra dos bárbaros invasores ibéricos contra
os autóctones guerreiros tapuias e os jaguares encantados e pela fatalidade dos
acontecimentos verdadeiramente trágicos de minha história pessoal que abortaram
em mim, de maneira prematura e premeditada, o idílico que deveria definir toda infância.
FM | Dentro e fora do país, entre vivos e mortos,
independente até mesmo da poesia, não apenas citando os nomes, mas comentando os
motivos, poderias referir algumas afinidades tuas na criação artística?
NG | José Alcides Pinto: pelas obsessões temáticas,
pela liberdade formal, pelo erotismo desenfreado, pelo misticismo alucinatório,
pela inventividade com a qual tentou representar os dilemas da existência, pela
reconfiguração das tradições, por ter escrito O amolador de punhais, Os cantos
de Lúcifer e Fúria, pela abertura
e humanidade em relação aos que lhe procuravam e pela saudade que eu sinto.
Jack Kerouac: por tudo que eu disse num texto
intitulado Semblanza de Kerouac.
Augusto dos Anjos: por ter dito tudo num só
livro.
Álvares de Azevedo: pelo lirismo.
Cruz e Souza: por ter provado na vida e na
obra que, ainda que emparedados, nos restam os símbolos para acessar os conteúdos
do Sonho.
Kafka: por seguir se debatendo mesmo depois
de compreender que nenhuma metafísica e nenhuma ontologia seriam capazes de dissolver
o absurdo da existência.
John Fante: por Espere a primavera Bandini, a delicadeza inatingível.
FM | Tenho percebido que, sobretudo em poetas
nascidos a partir de 1980, há um renascimento na lírica brasileira, que é tanto
na densidade da escrita, quanto na definição de uma voz própria, quanto no sentido
de uma solidariedade explícita, sem que isto reflita a existência de um movimento.
O que observas a este respeito?
NG | Nasci antes de 1980. A densidade da escrita
só pode existir se houver densidade de experiência. O resto é erudição vazia. Todos
os caminhos seguem abertos e nós vamos tentando. Até onde vamos conseguir levar
a imaginação não é possível saber agora. Somos muitos caminhando em várias direções.
Em algum lugar chegaremos e certamente as estrelas reluzentes do inferno faiscarão
em muitos chãos. O importante é aquilo que dizia Piva: somente vidas experimentais
produzem poesia experimental. O resto é literatura.
[ FOLHA DE VIDA ]
Nuno Gonçalves (Pernambuco,
1980). Nasci em Recife, mas sou cearense. Publiquei os livros de poesia: Cacos
de Cristo, O sol e a maldição, Cartas de navegação e Calabouço de reticências ou a aridez do
oceano. De prosa: O rio das onças. Recebi o Prêmio Ideal de Literatura
com o conto O caminho da novena e com o poema O canto do anjo vermelho.
Graduado em história pela UECE, mestre – na mesma disciplina – pela UFC & doutor
em Estudios Latinoamericanos pela UNAM. Sou professor de história da América
na UFRB, mas o que importa mesmo é que sou pai de Marialice.
*****
EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO
DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Anna Höch
(Alemanha, 1889-1978)
Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 128 | Fevereiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO
MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019
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