[ DEZ POEMAS ]
PRELÚDIO
às infinitas luas
dessas cidades
e suas atmosferas
sempre frágeis
e eu a me debruçar
no buraco-negro
entre os ombros as
sombras das janelas
passando
como os ventos e
seus rumores harmônicos
que deslizam
pelas frestas dos
trânsitos demônios
O COMEÇO
Este poema é como
estória surgida
na têmpora deserta
de um sonho
estação do instante
herdeira da mão líquida
de sol
desfiladeiros da
memória
pele e cristal dos
olhos
como girassóis deitados
na carne
e na palma do desejo
Inconsolável rouxinol
explosante
de lótus e Shiva
flertando a abóboda
esquecida em brumas celestes
nossas vísceras recebendo
o batismo da cidade sonho
o poleiro divino
no ombro
o pássaro mágico
do caos
ÓRFICO DE UM JARDIM
encontrei Rosa
entre vetustos sonhos
vestida e despida
pelas estradas errantes
transpirando como
timbre noturno
atraindo meu olhar
para as vielas
labirínticas e sincrônicas
dos mais lúcidos
vestígios do salto
na sombra do jardim
onde carvalhos
nos campos estelares
por onde passamos
louco cálice transfigurando
como numa revoada
rajada
de chamas pelos cantos tântricos
e o trago lá onde se deixa brilhar quanto quiser
e a língua não prende mais o transformar
nem as asas do gavião da mente
nem o olhar atraído
pelo ímã
e pela guelra da
poesia contínua
ecoando feito aquele
sujeito
que disse que não
existia
e mesmo assim
foi dormir depois
de beber
uns bons tantos tragos
de cana
e amar loucamente
como selvagem
na mágica noite toda
escura
uma voz doce havia anunciado
e ela veio caminhando
do sertão
marcando o chão com
sua sapatilha
de mira-celi ascendente
por ser aquela que
me dá
e ressoa os cantos
e os gritos de todos
de séculos sem fins
de pálpebras e pensamentos
expulsando os troncos
brabos
que eclipsam nosso
olhar
e assim com as sombras
de algumas filosofias
os lívidos lábios
da amante
me plantam e me lançam
pelos lençóis misteriosos
da vibração e galopes
da
existência
um dia
no alaranjado riso
de fogo do ar
na varanda da vida
no despenhadeiro
das almas
um anjo perdido
contou-me velhos
sonhos dos céus
caímos com Lúcifer
nos labirintos de
Deus
no murmúrio vertical
de Adão
nas promessas e segredos
do mistério
nas curvas das sobrancelhas
sombrias
nos seios e no sexo
de Eva
uma noite
na eterna tensão
do Amor
na dose milagrosa
do pecado
do pranto do cacto
no olho do peito
na pesada e doce
essência humana
o uivo e o sino da
cumplicidade
circunscreve o mito
no livro e na minha
pele
as pegadas do espírito
na empreitada febril
a contradição do
olhar
da luz eterna na
neblina
PEQUENA FÁBULA
O murmúrio da água
Um pequeno lagarto
deitado ao sol
Um barco de vento
cruzando o rio
Uma presença diluída
se aproxima
É preciso ouvir a
voz no abismo de dentro
Um olhar sustenido
nasce no ventre oculto
POEMA ENIGMA II
Escada de fogo na
meta primordial
Faz dos giros obscuros
eternos
Palavras que voam
aladas
Visão revelada audição
aguçada
Assim não há por
que temer a treva
ODE EM CONVULSÃO
I
Louvada seja a mulher
com seios de oceano
com os pés de vapor
e as coxas em chamas
Louvadas sejam suas pupilas e suas
veias sutis
correndo despertas na minha alma
seus rios silenciosos seus gemidos
seus telhados abertos
suas veredas internas seus desvarios
seus destinos
Louvada a mulher
com a cabeça reencontrada
com a tocha invisível
com a pele da chuva lavada
II
a mulher suave oscila entre o desejo
e o incêndio
pousam sobre ela borboletas circunscritas
e a rosa rara nasce de uma sinfonia
noturna
nossa imaginação é convidada a transmutar
a realidade
nossa esperança é incentivada a alçar
voo contínuo
uma chama irradia nossa medula na
alta noite do dia
um vestígio de loucura perfura como
sopro divino
um dia dilatado destila a vida no
anjo de sua saliva
a mulher suave oscila entre o desejo
e o incêndio
nascem sobre ela frutos preguiçosos
de uma manhã
e eu sonho continuamente com seus
olhos dentro de mim
essa mulher com olhos
de constelação
com olhos de água
da fonte
com lábios entreabertos
como a rachadura na terra
como uma fenda por
onde passa a luz da voz
essa mulher com plumas
de anjo noturno
com seu rosto revelando
a busca
vertendo o vinho
da voz no meu ouvido
com suas mãos de
veludo
com seu gesto de
dama perdida
no abismo do mundo
IV
Com os
teus olhos eu sou a multidão
Sou o
abraçar do feto órfão
Sou a
música sem tempo
Sou o
laboratório do mundo
Sou o
advento do rio de sangue
Com os
teus olhos eu sou um louco
Sou as
sete setas e as sete vezes setenta mil estrelas do céu negro
Olhadas
da janela das minhas vidas anteriores
Sou a
floresta nostálgica da cidade
Vim aqui
antes de nascer
Volvo
o nada e o absoluto
Meu espírito
é luta contínua
Meu peito
eterna mesa de operação
Medito
na tentação e tento na meditação
Sou dos
que dançam luz na escuridão
POSLÚDIO
há n’alma do cosmo
um rio
em vidas muitas,
que de vez
em quando, noite
ou dia, insiste:
conduz como comboio
de navio
em número de mil
vezes mil e dez
as estrelas que viste
o abismo entre teus
ombros foi
que caminhou teu
coração e fez
verter em vinha o
triste
A INTERMINÁVEL MÚSICA INVISÍVEL
eu anseio por tua
palavra
orgulhoso
dos mil olhos de
fogo que me deste
luzes inundando as
escuras avenidas da imaginação
uvas pretas misturadas
às tuas tranças
relâmpago furtivo
do teu olho
vozes redivivas como
vulcões
ontem te vi tocar
as cordas invisíveis
da minha viola –
sombra em audição
RELIGARE
Teus olhos cerrados
expandem-se com o fim da tarde
Tuas sobrancelhas
ampliam e deleitam minha visão
Tua boca de o álcool
da minha poesia
E teus dedos tamborilam
em meu peito
Há uma água negra
e serena roçando nossa face
[ TRÊS PERGUNTAS ]
FM | Poesia, amor, liberdade – a tríade essencial
do Surrealismo. De que maneira ela faz parte de tua vida e se integra à tua criação?
RB
| Entendo a poesia como um
mergulho no mais abissal do ser e ao mesmo tempo ligação íntima com tudo o mais
na existência. E é, por isso mesmo, a busca simultânea do amor e da liberdade. O
amor a si e ao mundo. A liberdade de conhecer e construir a si mesmo e de se integrar
com as coisas ao redor, de um modo sagradamente próprio. Penso que amar é cultivar
a liberdade que nos é negada e paradoxalmente apenas possível quando nascemos. E
a busca pela liberdade, e consequentemente também pelo amor, está intrinsecamente
associada ao espírito anárquico da rebeldia. Porque é evidente que dispomos do mínimo
de amor e de liberdade no tipo de sociedade que formamos. Então acredito que como
poeta tenho a obrigação de cultivar sempre ao máximo esse par indissociável. Assim,
minha poesia é escrita unicamente porque assim deseja meu espírito, como ato de
amor e liberdade, sem satisfação nenhuma a prestar às demandas da realidade artificial
e utilitarista da sociedade.
Por fim, posso dizer que o amor e a liberdade
são minhas necessárias e insubstituíveis utopias. E a poesia, caminhar em direção
a essas duas utopias.
FM | Dentro e fora do país, entre vivos e mortos,
independente até mesmo da poesia, não apenas citando os nomes, mas comentando os
motivos, poderias referir algumas afinidades tuas na criação artística?
RB
| Começarei mencionando Blake
e Rilke, que me atraíram e interessaram pela simbologia e pela necessidade de transformação
da consciência e visão de mundo que suas poesias me sugeriram. Outros três poetas
com quem comungo desde a primeira leitura são Rimbaud, Lautréamont e Artaud: pelo
desejo de ampliação dos limites do ser através da poesia, e pela anarquia total
e linguagem radical. Kerouac, Ginsberg e Corso foram fundamentais na fase mais inquieta
da minha juventude, pois trouxeram como proposta de salvação do tédio a vagabundagem
santificada. Também fui seduzido pela linguagem despojada e ao mesmo tempo sofisticada
desses poetas. Dos brasileiros, Jorge de Lima e Murilo Mendes foram os que primeiro
me impressionaram profundamente, pela imaginação abundante e pela fertilidade de
imagens. Foram ainda inspiradores em suas inquietações do espírito e espiritualidade
poética.
Outros nomes singulares que marcaram minhas
primeiras leituras sérias de poesia: Roberto Piva, Claudio Willer, Afonso Henriques
Neto e Floriano Martins. Entre outras coisas, pela investigação e desdobramento
da poesia surrealista e da beat generation.
Finalizo citando os poetas mais próximos: Sopa d’Osso e Márcio Simões, amigos com
quem mantenho diálogo permanente, trocando experiências fraternas e poéticas ao
longo dos anos. Em alguma medida, todos esses poetas influenciam a leitura que faço
do mundo e, portanto, influenciam também minha experiência e expressão poética.
FM
| Tenho percebido que, sobretudo
em poetas nascidos a partir de 1980, há um renascimento na lírica brasileira, que
é tanto na densidade da escrita, quanto na definição de uma voz própria, quanto
no sentido de uma solidariedade explícita, sem que isto reflita a existência de
um movimento. O que observas a este respeito?
RB
| Concordo contigo – embora
eu não conheça o cenário atual. Mas vejo isso que falas como uma comprovação do
entendimento da poesia como solidariedade cósmica. Entre 2010 e 2014 entrei em contato
com alguns poetas de São Paulo, Rio de Janeiro, João Pessoa e daqui mesmo de Natal
e arredores, que estão produzindo poesia lírica muito interessante, com uma linguagem
bastante original. E, justamente como dizes, não parece haver um movimento, mas
os poetas interagem e se solidarizam pessoalmente ou através da internet. Além disso,
percebi a existência de alguns coletivos. Pequenos grupos que têm utilizado os veículos
eletrônicos para divulgação de seus trabalhos.
[ FOLHA DE VIDA ]
Rodrigo
Barbosa (Pernambuco, 1979). Dez anos mais tarde, mudou-se para Natal-RN, residindo
atualmente Pium\Parnamirim. Em 2011 publicou o livro de poemas Flâmulas, Hidras
& Coquetéis. E, em 2013, traduziu para o português o livro do poeta argentino
Aldo Pellegrini, Construcción de la Destrucción.
*****
EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO
DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Anna Höch
(Alemanha, 1889-1978)
Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 128 | Fevereiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO
MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019
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