sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

1979 MÁRCIO SIMÕES


[ DEZ POEMAS ]


O ACENO DAS POSSESSÕES

uma coluna cinza clara de perfume festeja seu silêncio

no horizonte

no momento em que lástimas soltas alimentam um pranto

de papel e sou um urro

em desalinho

as percepções ativas ferem o olho nu
crises escutam sentadas os
desatinos do
porto
            cães atravessados por automóveis
                        bailam
entre um extremo e outro jovens espancam
um oceano de lamentos
uma febre de néon suspira uma agonia de luz
            uma cólera de possibilidades enforca os fetos
do destino
vermicidas oxigenam
pulmões
mentes florescem como chagas
no intestino grosso das
metrópoles


LUGAR – 1999

foi na Ribeira que tive minha última obsessão arcaica perseguido por policiais como um cão
o esqueleto arquitetônico da rodoviária velha era um imenso abrigo de sombras
nas esquinas velhos assistiam desiludidos crianças com olhos fundos de pedra
festejos ruidosos despertavam as almas dos casarões abandonados
para andar novamente nas calçadas de mãos dadas
quanto tempo caminharão sem que um de seus becos lhes confisque o abrigo
sem que devaneiem em atrativos devassos
antes que o cais afogue mais um suicida
antes que cesse o alarido da multidão
antes que paguem o preço do dia
quanto tempo de noites mal-dormidas onde
ruas estreitas eram o palco imundo de festejos rítmicos
em que paredes e prédios aos pedaços sugeriam segredos nos ouvidos atentos
que fazem essas sombras com confidências antigas?
ah como deve ter sido diferente quando aqui tinham vida esse batalhão de casas
e agitavam-se suas praças sob
o encanto da novidade
suas ruas urravam cheias de lixo pessoas carros carroças marujos putas políticos
artistas anônimos e indiferentes
o barulho ensurdecedor do porto
como um discurso constante
a gritaria dos bêbados
o sufocante pudor feminino
os bares como pequenos infernos
correria de bondes equilíbrio de guindastes baforadas de navios anjos de remos
tudo isso hoje está esquecido em olhos brancos
sua alma sufocada pelo bafo oficial
seus ossos abertos em fraturas
seus dias deixados
à caridade das chuvas
torcidos pelo sol quente
sua tarde acabada por perseguições noturnas
seus amores desconfortáveis como os mendigos de suas fachadas
sua voz apenas o ronronar escuro de suas águas profundas ensinando que a distância impõe o
silêncio
agora que estou longe de ti impelido por imensidões abruptas me pergunto quando
esquecerei tua face escura índia velha e quando poderei pôr fim às lembranças de seus
demônios e criaturas noturnas destilando espetáculos narcotizados para minha presença
descontrolada – e por mais quanto tempo ainda lhes serei grato


É BLOOMSDAY EM NATAL...

é Bloomsday em Natal
                                               e as flores somem
                                   nos botões não postos
                           levarão dois meses
                                                           ainda
                                               para o primeiro dia quente
                                        após as águas
                                   induzir as orquídeas
                                                           aos primitivos rebentos
                                                     abrindo veredas nos caminhos
                                                 e dezembro queime definitivamente as hastes
                                                           e faça luzir as faces ausentes
                                                     que os ventos de agosto
                                                                       cobriram antes de terra
                                                                 e poeira                caiada da pele


O BUDDHA DA BELEZA AFOGADO...

                        O Buddha da beleza afogado na cabeceira do rio Pitimbu
                                         ouro-aúreo escorrido
                                                                        esgoto & merda
                                                               no Villaggio Verità
                                                        medusa encantatória. usurária
                                                 funcionários enclausurados. meninos-milicos. vigilantes
                                        viris amantes
                                                           das madames. vidro negro & espelho
                                                   arame & grade
                                                                       insígnias
                                                               insignificantes
                                                        & pavorosas ilusões
                                                 de nenhuma eternidade


CABEÇAS DE PRÉDIOS DECEPADAS...

cabeças de prédios decepadas
          no largo
espaço azul
de manhã é um rasgo claro
para o olho aberto
eu preciso ouvir a criança
órfã regenerada
por Orfeu
sua vingança


QUANDO ANJOS ALEIJADOS...

quando anjos aleijados decapitarem a boca aberta das trombetas
quando clarins incendiarem a nudez numa vegetação
quando a campânula estrebuchar num arco de chuva
as caravelas se abrirão num largo
e as amantes se enforcarão em claras flores de lótus

estampidos e paradas se baterão pela planície
o orvalho virá fecundando a tormenta ou a terra
a ruína do mar e o arrebentar-se das pedras
louvarão essas vacilações do espírito
minhas anarquias, meus demônios


ESTOU FARTO DE VIVENCIAR A DESAGREGAÇÃO DO MUNDO...

     estou farto de vivenciar a desagregação do mundo
nem uma sombra da intercomunicabilidade das coisas
     uma mulher de seios fascinantes
     repousa ao meu lado
e no entanto não posso tocá-la
     estou identificado ao réprobo, ao carregador das chagas
     ao que sofreu os anátemas
nada tenho com os capatazes do tempo
     entretanto seus agentes invisíveis
     não me deixam ter um instante de paz
apenas tu, Musa, não me abandonaste nem na loucura
     escuto no pássaro o suspiro solitário de quinhentas nuvens
     amanheço estrangeiro e mais distante
nenhuma parte de mim deseja pedir perdão, levantar uma súplica
     crer na ressurreição dos mortos e na vida eterna


AURORAS DE BRAÇOS ESPARRAMADOS...

auroras de braços esparramados
sobre os pescoços dos montes

nuvens de brancos
nos olhos do azul

árvores em disparada
     atravessando
as vestes dos vendavais

rios de duas cabeças
servindo a ceia
terrena das raízes

quem duvidaria
que a escuridão
na sombra

sabe onde
a luz esplende?


DONA DAS DELONGAS...

dona das delongas
a musa muda suas faces

pega emprestado o sorriso da manhã

contorna os olhos com rastros de noites estreladas
e trança ramos de entardecer nos cachos de meio-dia –

depois reluz de passagem nos cabelos da neblina
demora um segundo numa porta que se abre ao mar

pára um instante
num corpo de mulher

e se esvai novamente

como se revelasse
em toda epiderme da paisagem

o instante em seu interior de sóis
incendiando os dias


DURANTE UMA SESSÃO DE MÚSICA ETÍOPE

para Sopa, sufi-sadhu d’Osso

i.

a mente desmantela
a redoma de ar
o trombone bale
o sopro divino
atravessando o deserto
os caravanas pisam
     os tambores graves
ao entardecer

ii.

vermelhos audíveis
     rodopiam
num redemoinho

iii.

sax dos infernos
     nascendo das tripas
de petróleo expelidas
     no céu deserto motorizado –
flor violácea
          espargindo a derradeira
                        malemolência das raças
                pelas manhãs
          ainda amando
                o âmago renitente


[ TRÊS PERGUNTAS ]

FM | Poesia, amor, liberdade – a tríade essencial do Surrealismo. De que maneira ela faz parte de tua vida e se integra à tua criação?

MS | São três coisas impossíveis, não é mesmo? E por isso ainda mais dignas de serem perseguidas. Que sejam fugazes e efêmeras, é da natureza de tudo que vive. São valores poéticos de base. E a poesia hoje é algo radicalmente na contramão dos valores dominantes. Assim como o desejo de liberdade e amor que constituem seu mais íntimo substrato. Portanto, é uma tríade que nos incita a resistir, a persistir neste "duro desejo de durar" e se humanizar por via da criação. Não me interessa, entretanto, como frase feita, slogan de associação; do mesmo modo que uma escrita que não implique igualmente num trabalho sob si mesmo não me interessa.

FM | Dentro e fora do país, entre vivos e mortos, independente até mesmo da poesia, não apenas citando os nomes, mas comentando os motivos, poderias referir algumas afinidades tuas na criação artística?

MS | São inúmeras as influências e afinidades – bem como antipatias definidoras–, seja na literatura ou no campo da cultura como um todo – impossível nominá-las. Mas atendo-se aos poetas, sempre me interessaram os que tinham a imaginação mais viva rebelde, e que mais longe foram na exploração dos abismos interiores – a religiosidade libertária e combativa de Blake, o humor e imaginação de Gregory Corso, Maiakovsky e Murilo Mendes, o senso de penetração no mundo e a expansão de sentidos de Ginsberg e Whitman, a capacidade de despersonalização e de incorporar múltiplas vozes de Elliot e Pessoa, a explosão iconoclasta e capacidade associativa de Piva, o lirismo surpreendente, imagético e deslocado de Éluard, Lorca e de certos poemas de Rimbaud, para ficar em nomes universalmente conhecidos, são fontes de inspiração e estudo desde minhas primeiras tentativas com a poesia.

FM | Tenho percebido que, sobretudo em poetas nascidos a partir de 1980, há um renascimento na lírica brasileira, que é tanto na densidade da escrita, quanto na definição de uma voz própria, quanto no sentido de uma solidariedade explícita, sem que isto reflita a existência de um movimento. O que observas a este respeito?

MS | Concordo que haja uma renovação, bem como uma mudança de paradigma. Algo ainda muito pouco mapeado e de circulação restrita. Mas que aponta para novas formas de escritura e expressão, novas respostas e posturas, e diálogo com tradições diversas. Me agrada este ser um tempo em que praticamente toda informação está disponível, e alguns estarem fazendo bom proveito e se valendo da oportunidade de configurar suas vozes a partir de fontes não canônicas e minoritárias. A vantagem (e a consistência) é sempre dos que leem (não importa o suporte) e dos que não se acomodam.


[ FOLHA DE VIDA ]

Márcio Simões (Rio Grande do Norte, 1979) publicou os livros de poemas O Pastoreio do Boi: XII poemas sobre uma parábola Zen (Flor do Sal, 2008) e Fúrias de Orfeu (Sol Negro, 2016) e escreveu outros inéditos. É editor e artesão responsável pela Sol Negro Edições (www.solnegroeditora.blogspot.com.br). Como tradutor publicou Gregory Corso: Antologia Poética, Postais do Peru, de Thomas Rain Crowe, O Fruto de Saturno, de Yvan Goll, entre outros. Vive em Natal-RN. Contato: mxsimoes@hotmail.com


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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Anna Höch (Alemanha, 1889-1978)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 128 | Fevereiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019




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