sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

1979 GIULIANO FRATIN


[ DEZ POEMAS ]


OS SONHOS DA ÁGUA DORMENTE...

Sabe-se que quando chove,
Os espíritos aproveitam para falar mais alto...
Pois na clareza do silêncio
Eles se negam a conceder a absoluta certeza
De que realmente se fazem presentes...

Então se abre a porta e o Céu foge,
Leva todas as águas e as pedras,
Até a luz segue outrora...

Eles procuravam por água dormente...
Pois nela descansavam suas fraquezas
Diluídas em aridezes insones...

Ao lado de fora de seus intentos
O vácuo levou o ar e a poeira cristalina
Desprendendo-se de seus maremotos internos
Onde nasceu o sono líquido...

Na água espiritual das flores
Outra fluidez rósea se encaminha
Para o Ser que leva o perfume etéreo,
A frágil percepção do Irreal e até mesmo a Luz...

Lá onde as casas
Foram feitas de madeira noturna
Os mistérios jamais deixavam o dia amanhecer...

Antes escorregavam quais sombras
Para procurar água dormente;
Hoje tentam lembrar
Como a luz foi embora
Levando as formas dos ventos...


NA ESPHÆRA OCCULTA...

Vela o âmago do íntegro genitor
Em um segredo de passados
Que reluzem lídimos...

A nébula que envolve sua emoção
Pode desvelar-se em translúcido cristal
Através da avidez de uma symbólica interface...

Ele gera a fonte luminar
Que occulta o flúmen no véu
À guarda de sua áqüea identidade...

Atrás dos olhares a decodificar sua alma,
Ænigmas anunciam em dócil projeção
As imensas pupilas de outro céu...

Abre-se no íntimo rosáceo que deflagra
Ao Sol de vossa tenra amabilidade
No lado interno do Amanhecer...

Evade-se ao núcleo da sublime lucidez
Quando o ser inteligível predomina
Na visão que dele se apodera...

Ao dilatar-se em mystério,
À procura de um escudo invisível,
Seu amor desfila em vogas subliminares...

Amanhece em calores de auroras perfumadas
Na volúpia de sua nostalgia que desperta
Ao som de uma violácea maciez...

No adiamantar deste symbolo
Andrógina metáphora retorna implícita
Perante os sentidos que se cruzam convictos...

O Outro Lado permanece vívido
Em luzes que o escuro jamais poderá deter
Enquanto fruto intangível de um desconhecido fim...


SINESTESIA PLENA...

Todos os meus sentidos se cruzam
No sabor musical que perfuma as cores da sutileza
Onde vivo múltipla e inusitada sinestesia...

A fragrância de uma voz dourada
Propõe uma doçura cuja cálida rubescência livre sonha
Na unicidade do meu ser...

Não demorei a perceber o quão mágico é
Enxergar os calores de um som aromático e forma doce
No centro de minha secreta existência...

Numa noite de especial empatia
Meu paladar tateava a sonoridade fulvo-violácea
Do balsamo intuitivo que me fez tanger um sexto sentido...

Analogias entretêm em unidade o sumo da minha esphæra sensciente
Na olfação que vibra em carícias de vistosas symphonias
A emitir emoções de índigos gostos marítimos...

Ao provar da obscura tristeza do amargor
Desagradou-me a aspereza de um fétido estampido...
Assim quis somente permanecer na quintessência dos sentidos...

Da sensível consonância ao elemento de sua orbe real,
À comunicação ætéreo-imaterial expande enérgica mansidão
Na precognição que me convida a uma sinestesia extra-sensorial...

Sonho odorífero qual rubificado vibra em táteis e audíveis telepatias,
Quando ecoa no tépido brilho de suas palatosas harmonias
Liquefazem-me no Universo da Sinestesia...


AS SEIS ANALOGIAS
DA TOTAL CONJUNÇÃO SINESTÉSICA

Encontra-se,
Em nostálgico horizonte,
O perfume de uma voz violácea...
A intuição da ígnea flor,
Por um céu áqüeo-flavescente,
Ainda encanta-se
Aquecida pelo sabor cromático
De uma fragrância musical...

Desvela-se,
Ante a carismática aurora,
A harmonia de um odor argênteo...
A percepção do níveo pássaro,
Por um lago lácteo-albescente,
No entanto imagina-se
A degustar o aroma dourado
De uma sinfonia plumosa...
                                                      
Contempla-se,
Num crepúsculo remoto,
A doce maciez de um phonema...
O sorriso da flâmea pedra,
Por uma paisagem flóreo-rubescente,
Ao Fim ensonha-se
Pela orquestra de calor odorífero
De um paladar purpúreo...

Devaneia-se,
Sob um horário eterno,
A melodia de uma cor veludínea...
O destino da rósea nuvem,
Por uma imensidão méleo-viridescente,
Todavia transborda-se
A ouvir a calidez perfumada
De um flavor visual...

Vivencia-se,
Em magistral celitude,
A refrigerância de um gemido lilás...
O amor da rúbea libélula,
Por um astral cítreo-livorescente,
Por ventura conflui-se
Ao tatear a recendência sonora
De uma azulina umamidade...


Manifesta-se,
Em longínqua existência,
A rubefação de um sedoso olfacto...
A vida da áurea estrela,
Por um sonho brônzeo-luminescente,
Ao Eterno suaviza-se
No exalar da tátil ressonância
De um gosto luminoso...


AS CASAS NASCENTES DO TEMPO

Tempestades antigas... Alamedas de sonhos já extintos e apenas existentes num tempo cuja antiguidade já perdera os relógios... Velhas casas... Casas que germinam qual ser arbóreo, pois nunca ninguém as construiu... Elas nasceram... Simplesmente brotaram e cresceram formando aos poucos suas janelas e portas... As mãos do Passado as semearam com a esperança de frutuosos e floridos lares...


MAGNIFICÊNCIAS XVI

        A Chuva desce nessa cærúlea tarde de hoje vinda do Ontem, mas apenas completa amanhã por um sonho de vitalidades violetas e flautosas purificações... Ele parecia adormecer no Sul quando a Terra olhou para outra esphæra fraternal... Mas chovia para a alegria e tenras lembranças de uma vida marina e velejante...   
        Via no íntimo das úmidas canções que estavam no ar junto à maresia que lá a aguardava; os ventos levavam as suaves flores de camomila para um jardim de tardes... O Sol, já occulto, tremeluzia rúbelo no Silêncio; mas somente para as pedras e sombreiros anciões fazia amplo e evidente sentido...
        O canto da cigarra corava o perfume do anis... Passava pelas trilhas de areia fina como grãos de água sólida... A menina de luz e cabelos de topázio, pele láctea e olhos da Noite, segurava um casulo; ela procurava um local acolhedor para a continuidade de seu cyclo vital que sem intenção alguma um relâmpago assustou...
        Marulhos refletidos no Levante; ondas de internos fractais em espiral formavam uma morada que se desfazia em instantes... Não tardou para as meninas aparecerem; a cada concha linda que encontravam: um sorriso para retribuir sua ginélica beleza...
        Pelas árvores das montanhas havia enormes balões de vespas dependurados em seus galhos penuginosos; um ruído ocre raspava os paredões pedrosos que pareciam sussurrar... Chorava? Ou apenas dois olhos d’água na grande pedra? O líquido quente descia deixando linhas limosas até o pequeno banhado cujas margens eram pubescidas por rasteiras flores compridas e vermelhas...
        Do denso som que o azul escuro recendia, ainda era possível localizar alguns fragmentos; Alífer O Pássaro Libertador trazia sua maior parte de um horizonte desconhecido; mas o azul era mais jovem que o restante devido ao tempo que lá não passou...
        Sempre agradecendo ao amor que jamais lhe abandonou, vive a pureza que somente os mais raros sonhos abrigam. Avivam e os conduzem aos momentos que estão æternamente sorrindo...


MAGNIFICÊNCIAS VIII

        Devaneios Nostálgicos... Nos lábios erógenos das margaridas que avermelhavam em cânticos inventivos... Imagens que seduziam seu apaixonante paladar deveriam, em sua resplandecência matinal, entardecer junto aos filhos da névoa de suas sensações... Mas não se viam as vulpes que desciam das copas dos ipês amarelos... No final da tarde, os ipês bordos se entrelaçavam em pedrarias mais vivas e menos estridentes aos olhos arômatas... De mélleo-aflautados só possuíam os troncos que inspiravam rubores virginais...
        No regato rebrilhante de superfície argêntea pelo plenilúnio aprofundavam-se os rubis e as esmeraldas líquidas... Margeado de arbustos de ervas leporinas, murmurava presenças que ali antes deslizavam... Deixaram vestígios férreo-globulares pela extensão abissal que o tempo abriu em sua estreme eclosão...
        Percebiam as aves leguminosas, imensos leitos de vegetações umbelíferas; dentre elas algumas flores sabiam resfriar a vermelhidão da epiderme sensitiva das pedras nascidas em ramagens procriadas em silvulas tropicais... As lívidas espumas formadas pelas represas se desfaziam onde o rio distribuía suas raízes em córregos quentes e borbulhantes; todos desaguavam no brejo de um cipoal...
        Qual rumo tomou a simplicidade insigne da pintura? Era o que desejavam saber as acácias de meia-tarde... Alvas lúnulas na órbita de um cogumelo que lança poeira de cristal gemiam oclusas em seus velhos hábitos que já teceram ilustres fímbrias douradas e ardentes...
        Constantes floreios ainda se revelam em evaporações rosadas; no alto, o redemoinho da nebulosa, oculta sonidos atemporais num sistema constelativo cuja ordem de seus lampiões sidéreos pouco mudar-se-á para quem a observa de uma floração de metamorphoses, mas a única certeza de um orbe real já atravessara o invisível...
       


NO CREPÚSCULO SILENCIOSO DA MATA...

Eram três campanulários
E quase nove meia-luas...
Por entre as devesas murmurantes
Erguiam-se maravilhas de uma diáfana umidade
Opaca em seu enraizar profundo...

O Cedro que outrora
Manifestava-se com um píleo branco,
Agora se encobre com mantas emboloradas
Cujas aberturas evidenciam
Seus galhetes em forma
De ponteiros precipitados...

Sabe-se que as árvores também marcam as horas,
Bem como certos relógios suplicam por águas cristalinas;
Mas na amargura de suas esperas áureo-boreais
Procuram pelo estreito e declivoso córrego
Por onde descem todas as manhãs do mundo...


O OUTRO LADO

Manifesta-se em raro sonho
Dentro de uma esfera inflamável
No pacto de seus segredos.

Não abre a guarda a seu temível olhar,
Forte à luz de uma forma em destino
Revela-se no corpo que lhe faz reluzir.

Atrás de seu véu a relação intrínseca,
Contemplada pela elipse do âmago
Que surgiu em um desvio no Tempo.

Seu conexo vetor jamais se aniquila,
Pois o mistério que varia em escuros matizes
Abraça o autêntico elo sensorial.

As suas pupilas dilatam-se
Ao reconhecer uma sutileza
Que age no realce de sua ardência.

A cristalina névoa tocando sua face
Lembra um translúcido sentimento
Deitado nas margens da memória.

Aviva um afeto flóreo-nativo
Sublimando-se em sensível criação
Delineada de modo atemporal.

Repete-se na origem do fator velado
Em sua psicogenia de óptica inatingível
Sendo o magma do sentido ulterior.

Pode expor-se à fria realidade,
Mas, sob a forma de um oceano volátil
A evadir-se ante o que não se eleva.

Não se dilui aos paradigmas da corrompida vida
Conquanto protegido das flâmulas ilusórias
Das aparências impostas em vão.

Enigma de um espelho no abissal inconsciente
Pode refletir as descobertas imersas
Sob a beleza do único ser.


FIEBLUA BAULLUS

Una, Lancinante,
Serial, Perfumosa,
Tênue, Enigmática,
Crível, Volupiosa,
Gênio, Onírica,
Rara, Andrógina,

O seu dúbio cristal de amor utópico
Entorpece-nos na lascívia de um íntimo sonho
Repleto de flores alucinógenas
Que exalam seus feromônios proibidos
Nos campos de desejos sensoriais

A luz de seu coração revela-se libélula bailarina
Flutuando sob o calor do palácio interno
De seu corpo aqüeo-transparente

Anjo Carismático
Princesa do Delírio-Psíquico

Ao deleitarmo-nos com seu mágico pólen
Consagra-se na dama de nossa emoção
Em profunda raiz de imanente harmonia
Quando forma o Triângulo das Pétalas Melíferas
Eternizado por um delírio paradisíaco

Deixa-nos romper o óvulo de seus táteis segredos
Para lisonjearmos o mago que lhe infla

Afetiva, Imperiosa,
Angelical, Substanciosa,
Lânguida, Eruptiva,
Luminosa, Dividida,

Combina distintas fragrâncias
Que nos atraem de modo poliabrangente...
Dileta, Expansiva, Passional;

Mito Psicológico
Sob os Vapores da Transcendência
Modelo Enigmático
Entre as Plumas de sua Ambivalência


[ TRÊS PERGUNTAS ]

FM | Poesia, amor, liberdade – a tríade essencial do Surrealismo. De que maneira ela faz parte de tua vida e se integra à tua criação?

GF | O Surrealismo me abraça como força geratriz de um mundo novo e autêntico destituído da reprodução da realidade. As sutilezas e os segredos para a defluência surrealista são para mim a fonte, nascente da imaginação criadora que proporciona quadros mentais do desconhecido, a arte original, desde a recriação da realidade à elaboração de universos impensados.

FM | Dentro e fora do país, entre vivos e mortos, independente até mesmo da poesia, não apenas citando os nomes, mas comentando os motivos, poderias referir algumas afinidades tuas na criação artística?

GF | Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud, Manoel de Barros, Salvador Dalí, e vários outros mais, me mostraram que a Realidade como se apresenta em sua essência não é o que me faz ver o mais completo sentido da Arte, onde universos inusitados são criados através de uma rara e peculiar linguagem do inconsciente. Esses grandes autores e outros não citados, sutilmente, me ensinaram que a novidade tem gosto onírico, faz parte de um mundo de inventado com a graça do absurdo criativo com as nobres formas das mais raras paisagens de sonhos.

FM | Tenho percebido que, sobretudo em poetas nascidos a partir de 1980, há um renascimento na lírica brasileira, que é tanto na densidade da escrita, quanto na definição de uma voz própria, quanto no sentido de uma solidariedade explícita, sem que isto reflita a existência de um movimento. O que observas a este respeito?

GF | De fato, mais uma vez a realidade é bombardeada com o mistério da Sincronicidade, seja referente à identificação com o que transgrede o senso comum, ou o próprio desejo de distinta identidade, ou a recriação de um grande tempo como resgate do que um dia fora novidade. A significativa consciência acerca da Estilística onde as figuras de linguagem formam o grande espetáculo do sentido figurado e subjetivo, também atuou como preparo do estopim para a grande explosão do original. Certamente o surrealismo, proporcionado por figuras como a prosopopeia, também desperta o que acaba se convertendo em uma voz autônoma do âmago do poeta. Mas a coisa pode ser muito mais profunda. A Sincronicidade, sendo algo que não possui causa, e tampouco é por acaso, sempre move em grande número, no mundo, pessoas a seguirem, cada uma com sua identidade própria, algo comum a todos, todos os tripulantes de uma mesma viagem rumo ao mesmo objetivo de oferecer o Novo.


[ FOLHA DE VIDA ]

Giuliano Fratin (Paraná, 1979). Poeta e compositor. Criou uma série de obras através de uma ampla e ilimitada ciência das palavras onde a exploração das figuras de linguagem, bem como a ampliação e finalização de alguns processos estilísticos, fez a originalidade de sua jornada como escritor. Foi o primeiro passo que o levou ao universo do latim clássico e da linguística histórica. O poeta resgatou e recriou a forma culta e erudita, trazendo um rico vocabulário cuja semântica cumpre a promessa de singulares significados. A beleza e a significação de suas palavras, a montagem de suas analogias e alegorias, o resgate das grafias originais, e o trabalho etimológico, agregam valores históricos e incentivam a ampliação do vocabulário (algo de suma importância para que o leitor possa ler com fluência obras de grandes autores da história literária, filosófica etc.). Para os amantes das letras, eis o apontamento para o estudo filológico, o domínio da linguagem, a inteligência das gramáticas antigas, o verdadeiro interesse e o amor pelas línguas clássicas.


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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Anna Höch (Alemanha, 1889-1978)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 128 | Fevereiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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