[ DEZ POEMAS ]
[O
OXÍMORO DOS SEUS SEIOS]
O oxímoro dos seus seios vejo da fresta do meu olho esquerdo,
enquanto passa a página. Em qualquer capítulo tateei para lhe saber as carnes. Mas
antes havia bulas, ditados das professorinhas de redação, silêncio dos beats preguiçosos,
e um acróstico para suas joanetes. O vento lança guardanapos. Gina mastiga, e eu
lhe sabia mais saborosa que feijoada em lata. Da letargia de Gina segui adiante,
a textura da encadernação de cobra, seus movimentos, o tilintar do brinco na minha
língua, o fumegar da cama, o trepidar do fósforo, e o que me faz transpirar na testa
ante o espelho que não vejo, capítulo três ou capítulo quatro, a pior imagem, prosseguia
Gina, enquanto corrigia a vírgula e me acentuava, quem foi que guardou a sua perna
que se abria, agora eu abro a página, não tem figuras este livro tátil. Chega um
cidadão assim de curvado, pesa muito a sua moleira com galinhas parnasianas da granja.
Me oferece um poema, criado com amor. Gina arrota, seu lábio toca o dedo que toca
o garfo que toca – nisso eu me viro e vejo. A língua em que foi escrito eu molho
com uma saliva bêbada. Devora um pouco da minha memória. O poeta necessário tem
um latifúndio produtor de imagens. Torro a chama do pavio com o dedo, só por precaução.
E eu sempre soube, mas você me retrucava notas contemporizando. No escuro, linguagem.
Sobretudo seus seios entre o livro. Não fosse a tatuagem a língua não se excitaria.
Peço outra cerveja.
[TODO
OCEANO TEM TRÊS LADOS]
Todo oceano tem três lados: dentro, lá dentro e naufrágio. Sou
Molly, não sou fraca, não disse, mas seus dentes se cravaram em meu lábio, meu sangue
em suas gengivas. Era bom e bebia. As putas só destras no segundo olhar, mas num
primeiro, antes do flash, enrugavam a pupila, diziam: Eu pagaria pelo primeiro
chope, para não passar o dia, mas a puta é quem sabe. A espuma dos oceanos foi
mijada por Vênus. O jovem selvagem à mesa diz que a mulher do barbeiro preparava
o jantar e a chupeta, mas não para o filho. A bela bebia no meu seco mamilo, cheirava
fuligem, chupava poemas. Porque a puta é quem sabe. Ele quer comer a mãe dos convivas,
a que prepara poemas mas não para os filhos. A que bebe a seco e sorrindo. Porque
a muda é que late. Leia poemas, pequena suja, que não há poesia e comer chocolates
é sacrifício. Fulana me bebe e me morde, e molha meu dedo com sangue. Mas edite
poemas, o pederasta dizia, lambendo os beiços, pequena suja, sorria. Não se pode
ser selvagem com quem edita. Desemboca. Em São José do Rio Livro lhe espera o editor
não atende. Ele fuma cigarros plantando tabaco, a fumaça é cortesia. Escolha a dedo
e não erre, sorri o editor de dentro da resma. Sangue respinga na fumaça, porque
só a puta é quem sabe quanto custa uma analogia.
Se não escrever uma puta sílaba, ninguém mais saberá a hora.
E no dia seguinte, gorjeariam os corvos cabeça adentro, catalogaria tomates e alfaces
no cocho do meu self-service, e viveria feliz com uma mansa loquacidade só mãos.
Na masmorra silenciosa da folha, via a bela, lábios em torno à boca entreaberta,
olhares e tetas, já não faço ideia. Recomeço. Nenhuma metáfora. Toda boca ela e
riso onde paro, escrevo poemas e perco sentidos. Agora passam as palavras, onde
agarro só cheiros, vento, fumaça. Agora ventam cabelos, folhas, e jornais amassados.
Agora vejo seus dedos que se aproximam mas passam. Como era incolor, inodora e insípida
a água que não bebi. Verta-se de novo antes do fim da garrafa. Verta-se que sorvo
o oco da fala, para engolir seu grito. A boca, a boca, a boca cercando seu riso,
quem ousaria falar de linguagem. Entre pela língua que passa, dizia um demônio,
entre seus seios pousado. Mas a linguagem se interpunha à língua, e a míngua dos
tomates se sobrepõe ao lábio. Ainda fico à espreita de lhe comer ensopada, de devorar
cada sílaba de sua língua passante. Postularam incontáveis coisas, mas por hoje,
meu doce, Chico Picadinho basta.
[UM
POMBO PASSA CONGELADO VOANDO]
Um pombo passa congelado voando, exilado de
todos os países. A temperança universal escorrega na camada fina de gelo que decora
as alamedas. As árvores secas decoradas com gelo fazem as árvores falsas, decoradas
com gesso, se vergarem com o frio e parecerem miseravelmente natalinas. Um africano
que é um curandeiro enlouquecido atravessa gritando pontualmente às cinco a rua
dos enforcados, e avisa aos ventos que o silêncio foi preservado. A despeito das
temperaturas, o jornal informa, e não são fáceis as notícias. Há uma nevasca que
morreu na turbina; uma folha que se acidentou na calçada; um fígado de pato que
se perdeu por cirrose, e uma lareira morta de febre tifóide. Assim, vão interditar
o curso dos rios para averiguações, enquanto as passarelas ficam terminantemente
proibidas de desfilar e as passagens devem apenas circular até as cinco da tarde,
quando a luz do sol será interrompida. Sem mais, a polícia informa que as sirenes
serão ensurdecedoras, mas o frio será mantido. E que apenas em casos de pescoço
se recorrerá à guilhotina.
[A
LÍNGUA DO LÍBANO AVANÇA NO MEDITERRÂNEO]
A língua do Líbano avança no Mediterrâneo,
como se avista do céu. Os negros vão colorindo os franceses e seus pães. O sangue
ainda não chega dos mares, mas bate-se a gente no metrô. Meus pés não sabem das
águas, nem onde vai parar a Ilha da Madeira, alheia, buscando ares frugais. O engano
do sono não cabe à branca tez de mulato descascado; a consciência do corpo que sempre
cai em camadas não permite unidade. Agita-se a gente nas terras, disposta a deitar
sangue na erva. Mas a morte não é consciente, só a agonia e delírio é que o podem
ser, porque tudo se dependura no corpo. Estanque na terra uma fonte iluminada de
suor e de pus, sabe dos olhos entre toda nuvem. Dizem que não há o frio, que a loucura
se cura e que não há o medo na morte. E dizem: consolo. Quem aqueceu o cadáver,
quem fez a boca do louco fechar-se, quem aquiesceu é coisa que não se diz. É quando
as línguas avançam e um rastro se perde impreciso no que o olho só vê.
[O
HOMEM PÊNDULO ACORDA]
O homem pêndulo acorda, boceja, ainda sonha,
olhos baços, mas mira o meio da passagem larga; cabeça sente portal vibrá-la. Minha
musa russa das montanhas geladas, meu estádio amazônico quando os refletores dilatam
as pupilas e o jorro de vozes faz estragos e se junta à música sânscrita da cabeça
vibrátil. Faz ligar os degraus, pé antes, pé jamais. Também os sonhos dos tontos
são vertiginosos, suas mulheres têm nomes de grandes árvores em desfiladeiros. Dava
passos nas areias dos desfiladeiros, dava abraços nas águas vivas, nos rochedos.
Dava para lamber o chão e isso tem sua graça. Morenas graúdas brotando das ladeiras.
Gritos pelos telefones que fizeram gols anulados, e mais cartões furta-cor que nem
jogadores entenderam o recado. Tudo passa ao sonho diante dos olhos extáticos, tudo
tem sua imagem enquanto o chão navega os passos, quando ossos engasgam gatos, quando
peixes devoram pássaros.
[ENTRA
SEM PERGUNTAR NA IGREJA DO ALVOR]
Entra sem perguntar na igreja do Alvor, porque
é a casa de vocês também, é a casa de todos, diz o lenço sobre rugas do Algarve.
Reza de cuecas um pai nosso sem crença. Limpa ao menos seu suor no banco, amassa
o pó no genuflexório dos pretos e confessa não saber pecar. O deus dourado gira
no altar do Alvor. Gira a pomba e se seca no seu sudário. Repete um rosário sem
pressa, pé ante pé o sol escaldante vai se chocar com Ceuta, até que o anjo português
venha, caiado com o pincel dos mouros e lhe diga em árabe as coisas que você já
sabia há tempos. As escutas no confessionário se conectam à vela eletrônica. Os
ossos no armário das bebidas, o cardeal cabeça de peixe, a virgem viúva e o homem
ventura, tudo se afigura sobre sua cabeça. O pai nosso excita os morcegos do Alvor.
Era tão bela a ideia do deus, era tão densa a cortina do incensário. Eram lindos
no equinócio os miráculos. Uma roda de pretas me prega sermões pela nuca, uma corda
de brancas suas ancas que giram. Vai dar no banheiro um pio, que a pomba rolando
e sorrindo com a boa nova. Vai dar na vila a nova, vai pôr à prova não a fé, mas
as pedras da comunidade. Giram deuses, morcegos, azeitonas e os covardes querem
ainda o antigo culto.
PESADELO EM
PINDORAMA
Acordo, à boca o gosto amargo de minha dentadura.
Acordo, o osso à carne, a eleição me assusta. À corda a meu pescoço apuro. Acordo
e não sei se hei de me levantar a tempo. Acordo, suado, desnorteado e o tempo que
já dava por perdido, me acossa. Acordo e um cano de arma roça a minha nuca. Acordo,
e o vulto da coisa me fita da fresta da janela escura. Acordo, avisto a múmia e
não me posso levantar, partidos os ossos e a fenda cresce enquanto a besta muge.
Acordo, é pressa, é guerra, é tiro, é outra vez maio no meu outubro sinistro. Acordo,
suásticas adornam as paredes da universidade, meu corpo covarde de ponta cabeça,
à beira de um abismo com cheiro de peixes mortos. Acordo, há corpos pretos tombados,
ao largo de mim. Acordo e vejo mulheres açoitadas mas o silêncio é de paz na cidade,
afora os mugidos. Acordo e não quero me levantar jamais, o gás que vaza pela cozinha,
o mundo a beira de um domingo. Acordo, acordo, acordo, acordo! Acordo ainda.
Não temos mais pressa, não temos mais prazo. Cortada
a cabeça, amarrados os braços. Isso que se move por detrás do olho, embaralha a
leitura, cavalga linha e coluna, isso não é só dengue, isso é um gosto de rato.
Isso que parte as veias não é avc. Isso é o refluxo do que já não nos permitem dizer:
sangue na sobremesa, você mastigando os garfos. Estilhaços de chumbo à flor do olho.
O telejornal acalmou as ratazanas mas aumentou o refluxo. Um pouco de pus sobre
a almofada, enquanto o pastor louva a barata. A rola arrulha na boca do esgoto e
você também se inclina para lamber. Quer dizer: tudo está normal. Sobem investimentos
de merda na poupança do gueto. A cotação do morcego no banco de sangue é o novo
sistema universal de saúde. Ataúdes para a festas de gala. Não percamos mais tempo,
já a história se acabava: o oásis, a ventania, as chamas e o intervalo comercial.
OS CARANGUEJOS
DO LUTO ABSOLUTO
Um orangotango de tanga pousou na banana do poeta.
Um poeta pelado pousou na tampa do ralo. O zoológico estrelado viu sete bichos nascendo
no dia de finados. E o país em peso votou no que disse que matava, que prendia,
que estuprava. Caranguejos astrais entre estrelas marítimas esperam o cometa Halley.
Miçangas anônimas orbitam a voz celeste de Dalva. Estêncil bêbado declama poemas
dos dedos de Nicanor Parra. E o país em peso votou no que disse que matava, que
prendia, que estuprava. Das sete quedas agitam-se peixes inteiros que só existem
ao sol paranaico. O boto gorgeia na boca vermelha da moça de saia. As garras da
fera nas teclas do Hammond emitem versículos sacros. E o país em peso votou no que
disse que matava, que prendia, que estuprava. Madeiras viúvas refluem em gotas de
pinho. Laranjas cortadas eclipsam rodelas de olhares no bosque das almas. Sentinelas
sensitivos homenageiam os bois zebus com as vacas. E o país em peso votou no que
disse que matava, que prendia, que estuprava.
[ TRÊS PERGUNTAS ]
FM | Poesia, amor, liberdade – a tríade essencial
do Surrealismo. De que maneira ela faz parte de tua vida e se integra à tua criação?
WAB | Liberdade é sempre utopia. Falar de liberdade
no Brasil dos últimos anos eleva ainda mais a potência utópica do termo. Vivemos
entre amarras. O Estado Policial. A violência. A repressão às ideias. A arte e a
cultura programaticamente cerceadas. A poesia põe para funcionar o poder da linguagem.
O amor o poder da transformação e dos corpos. Amor, liberdade e poesia são a singularidade
em ato. Só essa potência, segundo creio, é o que pode fazer frente aos totalitarismos
e obscurantismos em geral. Poesia, amor e liberdade colocam em cena um riso mobilizador
e um poder transformador. E também mobilizam o inconsciente e seu caudal de perturbações
de toda ordem.
FM | Dentro e fora do país, entre vivos e mortos,
independente até mesmo da poesia, não apenas citando os nomes, mas comentando os
motivos, poderias referir algumas afinidades tuas na criação artística?
WAB | O riso de Oswald de Andrade. As nuvens
de Baudelaire. Os sismos de Herberto Helder. A cidade de Roberto Piva. A voz de
Willer. A renúncia de Hilda Hilst. A gagueira
de Ghérasim Luca. Os ritmos de Poe. A sintaxe de Lezama Lima. A pupila de Girondo.
O exílio de Joyce. A sintaxe de Góngora. O dicionário de Augusto dos Anjos. Mas também seria possível embaralhar.
FM | Tenho percebido que, sobretudo em poetas
nascidos a partir de 1980, há um renascimento na lírica brasileira, que é tanto
na densidade da escrita, quanto na definição de uma voz própria, quanto no sentido
de uma solidariedade explícita, sem que isto reflita a existência de um movimento.
O que observas a este respeito?
WAB | Publicar nos anos 2010 não é o mesmo que
publicar nos anos 1990, quando lancei uns livros primeiros. O mundo digital se impôs
à leitura, escrita, publicação e circulação. Hoje em dia tenho amigos poetas e amigos
leitores que raramente ou nunca vejo, mas com os quais estou em contato: há afinidades,
mas não movimento propriamente. Nos anos 1990, havia um grupo pequeno de pessoas
com as quais discutia, criava e lia poesia: aí sim havia condições para uma produção
mais coletiva e para um movimento. Hoje há mais condições de circulação, mas não
de encontro cotidiano. O que um poeta precisa sempre se colocar como pergunta neste
presente insólito é: para quê publicar? Agora que o livro deixou de ser um objeto
tão difícil de produzir, há que se pensar – mais que nunca – o que pode fazer dele
um objeto ainda relevante.
[ FOLHA DE VIDA ]
Wilson Alves-Bezerra (São Paulo, 1977) é autor das seguintes obras literárias: Histórias
zoófilas e outras atrocidades (contos, EDUFSCar / Oitava Rima, 2013), Vertigens
(poemas em prosa, Iluminuras, 2015, que recebeu o Prêmio Jabuti 2016), O
Pau do Brasil (poemas em prosa, Urutau, 2016, work in progress que se
encontra na quarta edição), Exílio aos olhos, exílio às línguas (poemas em
prosa, Oca, 2017), Vapor Barato (romance, Iluminuras, 2018) e Malangue
Malanga (poemas em prosa, no prelo). Atua também como tradutor literário:
traduziu autores latino-americanos como Horacio Quiroga (Contos da Selva,
Cartas de um caçador, Contos de amor de loucura e de morte, todos pela Iluminuras)
e Luis Gusmán (Pele e Osso, Os Outros, Hotel Éden, ambos pela Iluminuras). Sua tradução de Pele
e Osso, de Luis Gusmán, foi finalista do Prêmio Jabuti 2010, na categoria Melhor
tradução literária espanhol-português. Tem livros publicados no Chile e em Portugal.
Email: wilson.alves.bezerra@gmail.com.
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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO
DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Anna Höch
(Alemanha, 1889-1978)
Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 128 | Fevereiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO
MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019
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