sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

1972 GLEDSON SOUSA


[ DEZ POEMAS ]

NÉVOA

Deixe vir a névoa
Quanto mais densa melhor
Rabiscarei teu nome no vapor
Quando o sol chegar
Orvalho deixará
Teu nome em flor


A DERROTA

Ó mar
Devolve-me ao seio de toda impureza
Que saí de teus braços portando estandartes de louro
Retorno a teus abraços
Ovo de Fênix na meia noite
Cinza e sal em pia batismal
Estou sem direção
À deriva na periferia cósmica
Habitado por trilhões numa cidade de milhões num planeta de bilhões
Sem contar as sombras, os fantasmas
As memórias
Que as ondas devolvem à areia furiosa
Ventos me trazem, noites me levam
Estrangeira, não me deixes só
Hoje as auroras são tristes
Cheias de pensamentos radioativos
A ocidente, rochas e crashs
Corais explodindo a bolsa
Amanhã serei tardio, hoje sou amanhã
Destroços de navios, ruínas
Fragmentos de DNA no plasma do sol
Ó mar
De testículos cheios de escorpiões
A lua cresce na rebentação
Entre uma nota, um amém
Farol de rotas impossíveis
Com amigos é possível
Atravessar abismos
Voamos
Albatrozes nas costas do oceano
Pacífico, zen, Diana
Flechando minha insensatez
Ó mar
Rasgai a placenta
Que prende minhas asas
Escorro nau secreta
Na íris da loucura
Agora sal
No amanhã
Dispersei fragmentos nas gargantas dos pássaros
Na boca das anêmonas
Vivo em cada plâncton
Incrustado nas rochas
Areia na unha das crianças
Multiplico e divido minha presença
Nos portais do sol
Numa América
De ópera bufa e revoluções
De canalhas e anjos de papel
América intensa
Íris de borboleta nos olhos dos vulcões
Sopram setembros tardios
Na nuvem de teus cabelos
A história se dissolve em angústia
Sol com ares de cilício
Chumbo das mentiras toma o espaço
Plenários
Bares enfumaçados
Igrejas, salas de neon
Me agarro a tua imagem, náufrago fugindo do inferno
Sei que teu nome se confunde com auroras
Estrelas ocultas
Mares de flores
Meu nome por si dissolve-se
Na alquimia das lembranças
Na incerteza do cosmo em decomposição
Os deuses foram embora com a noite
Noite plena não existe mais
Sódio, neon, flúor,
Contaminam a paisagem de angústia
Dor se assenhora do silêncio
No barco encalhado civilização
Cumpro mil deveres
Respeito as normas
Zelo pelos meus
Oceanos deságuam
Nos rios da memória
Bandeira do dia, teu nome
Também esperança, desespero
Matemática de tanto silêncio
O que resta quando jogamos fora
Âncoras, leme, bom senso
O que resta quando nossa face
Se dissolve em murmúrios
Quando a barbárie assume ares de importância
Cantando hinos religiosos
Falando em salvação
Certeza é estrume
Há névoa em minhas unhas
Nas garras elétricas do silêncio
Tua voz em pluma
Tece mil sóis
Nos espaços abertos da América viva
América em doses de LSD, vinho, marijuana
América indígena
América paraíso
América vômito
América espelho
América terra
América sangue
América em quatro movimentos e alguma tristeza
América em quatro rodas e cantos de pássaros
América neblina
América divina
América latina
            Latindo no espaço
Nas fossas oceânicas
Na mobilidade cósmica
As asas da América estão nos pés
Raízes que voam
Pedras que flutuam
Meu sangue americano de teus sete mares
Minha voz caxinauá
Tatuagem tupi em meus testículos
Testemunhas da revolução
Ó sombras da morte
Não há lugar para a dor na América
Só fogo, penas, palavras
Só vento, serpente emplumada
Meu nome de estrada
Sou silêncio sem teu olhar de vagalume
Tua voz de numem
Esquecimento da dor
Oceanos desafiam os céus
Palavras copulam livremente no ventre da terra
Mentir para si
Não dissolve a dor
Chama borbulha sangue de revolução
Canções de ninar ao som de fuzis
Ó América inóspita
América amante
Salgaram teu sangue
Tuas asas
Mesmo assim
Saltastes no vazio
            Em busca da terra sem males
América infância que não acordei
És minha mãe
Saí de uma placenta cariri
Com sangue tupi
E sonhos canibais de devorar o demiurgo
Renascendo mundo
Com purê de banana
Seiva de sumaúma contra a destruição
América sem rei
Para pisotear os bárbaros do norte
Vestidos de estupidez
América sem lei
Onde deuses plantam auroras
Doce América de sangue derramado
Liberdade é punhal em tuas costas
Ainda assim vives
Incrustada de obsidiana e poesia
Chamando os mortos ao banquete
América que o amor devora
América de ouro teu sangue é suor cósmico
América de cordilheiras e canoas
Me perco na lembrança de teus olhos
América, estou só
Sem água, sem arma
Nem areia trago nos bolsos
Canto entre precipícios, torres devastadas
Placas de chumbo
Estelas de prata
Reviro o tempo buscando tua voz
América irmã com hérnia de disco
América de sabiás, trovões
Em negativo minhas pegadas
Desenham mapas
Da esperança que pari setemesina
Olhos de mel, franzina
Manga no pé
América filha
Que carreguei nos braços
Inventando histórias de antes do tempo
Cantando canções de ninar fora da história
América o amor
É asa quebrada
No meu peito esquerdo
Não há equação
Que defina o coração
América de barro
América de leite
Sempre que te encontro
                        Me esqueço
América de aço


A LUA NA BOCA DO CÃO

A lua está em tua garganta
O que farás quando ela estiver
Entre teus dentes
Uivarás até a morte clamando outros pássaros
Escavarás a terra até o abismo
Onde os mortos nem disfarçam a tristeza
Onde levarás o poeta
Que segura a guia de teus passos
A lua desdenhará teus gemidos
Se não recitares os nomes
Dos mares que ela afagou
Tão branca tão forte
Em Kali se transformará
Bebedora de sangue, com um colar de crânios
Se não disseres os nomes
Um a um de cada regolito
Ó tu que vagas no asfalto
Com a lua entre cornos
Estendei vossa piedade
Aos que trazem a lua entre dentes
Que nem na madrugada decidem
A desdizer o caos
Lua de maio de face risonha
Trazei-me do abismo à aurora
Já não confio mais
No lebréu que me guiou
Contando frio e dor em planilhas de metal
Já naveguei teus mares
Sei de tuas casas
Onde poetas se concentram
Em escrever epitalâmios
A ti e ao sol
E elegias aos que na travessia
Engoliram a lua
Morrendo de tristeza o cão
No meio da rua


TENTATIVA DE FUGA

Depois, dunas espalham-se ondas
Vidro desliza contra vidro
Ora a areia pare
Estrelas polares, degelo
Alquimia dolorosa das artrites
Contra a gadanha, espadas com asas
Palavras de Mercúrio na superfície de Plutão
Contra o tempo a fala de poetas insones
Tão longe Dédalo
Procura o filho


A ENCHENTE

A água separou areia e barro
Polvos passeavam pelos parques entre rodas gigantes e jets skis
Frutas transparentes eclodiam estrelas
Anjos nus escutavam declarações de amor de mulheres grávidas
Fugindo do barro era possível encontrar
O amor inesperado
Na manhã que se ocultava
Natureza ama disfarçar-se
Água transformava rua em mar


DESNOS SABIA DO MAR

O que você disse quando a chuva caía em Theresienstadt
Dia após dia a água lavaria
Os gritos de metal, derreteria as botas
Do azul brotariam flores de mar
Sibilantes
Sóis escorregando de pétalas mornas
Huris oferecendo versões de deus em suas vaginas adocicadas pela chuva

Havia folhas, luz, grandes rios tomados de loucura
Na água que descia no telhado de zinco
O que você dizia
A liberdade plana se é plena
Não há pressa
O dia começa com a chuva


DIQUES NA FOZ

Outrora ergueram pedras, altares, gordura
Para reterem os rios longe do mar
Pensando assim deter o tempo

Amazonas desceram com ímpeto
Revirando detritos, destruindo retiros
Alargando espaços para a morte
Siamesa de algum lugar
Chamado vida


LIVRE
                       
Espero palavras desconhecidas
Que venham num carnaval antigo
Entre leopardos, fumaça de incenso
Com flores no púbis desafiarão o tempo
Erguendo templos onde
O amor se perdeu
Cadenciadas quais ciganos
Dançando num mar bajal
A fênix que se esconde
No copo de sal
Brotará amarga e bela
Melodia em sete tempos
Numa guitarra alemã
Tudo é música
Os sonhos também
E palavras desconhecidas
Acordes em terça
Mulheres sem sombra
No fundo da ânfora
A esperança
Com rosto de sol


MARÉS

Tente entender
O mar só escuta a quem consegue lhe ouvir
Não espere símbolos
                                   O mar arranha docemente
Palavras na areia
                                   Restos de medusas
                                                           Pedaços de conchas
Aqui ali
            O sal da língua arrastando
                                                           Os dias
Escamas de peixe, larvas de craca
                                                           Na rebentação
Alfabeto de curvas na praia
                        Feroz escondendo a lua cheia
Miragem de ilha
Tantas falas
                        A água improvisa
Tente entender
            O canto das sereias é a voz do mar
            Que Ulisses não quis evitar
Rugindo
            Voltando
Da primeira à última névoa ela pergunta
Quem suportará o fardo das marés
                        Da beleza que sufoca na cesura
Da fala que não cessa
                                   A dor cósmica
Resposta de pêndulo
                                   Na terra os ossos que o mar deposita
Com ternura de ave de rapina
De ouvidos vazios
                        Sem cera nas mãos
Escutamos
                        Essa litania da paixão
A fera aflora
                        Na âncora, no leme
Águas pedem
                        Asas nos pés
O oceano se decifra
                        Já nos devora todo dia
Dispensa o requinte da pergunta
É homem o que rumina
                        Nas sombras o destino
Que lhe aparece flecha
                        Ao resto a vida oscila
Entre a preamar e a cortina
                                   Do fim
Não há fugas
                        Na barriga do monstro a luz se faz
A maior virtude de Ulisses
                                   Paciência
Tente entender
                                   Logo a língua do mar
                                   Apagará o poema


TANTO AMOR

De tanto que amei, deixei
Pedaços de mim em cada mar
Que naveguei
Tornei-me plâncton, krill na boca das baleias
Mensagens perdidas em garrafas nunca encontradas
De tanto amor, perdi-me
Entre ondas, bancos de areia
Das praias de Fiji à Bertyoga
De Jericoacoara ao Taiti
Há traços no horizonte
Do amor que se deixou navegar
Além da zona tórrida, dos recifes traiçoeiros
De tanto amor virei mar


[ TRÊS PERGUNTAS ]

FM | Poesia, amor, liberdade – a tríade essencial do Surrealismo. De que maneira ela faz parte de tua vida e se integra à tua criação?

GS | A poesia para mim é o ato fundante, o que dá sentido ao aparente desconexo da existência. Poesia, amor e liberdade são indissociáveis, como as diferentes faces de um mesmo diamante. É a própria vida buscada como obra de arte. E o resto é literatura…

FM | Dentro e fora do país, entre vivos e mortos, independente até mesmo da poesia, não apenas citando os nomes, mas comentando os motivos, poderias referir algumas afinidades tuas na criação artística?

GS | Alguns autores foram e são fundamentais na minha formação espiritual: Breton, que me causou um impacto irreversível com o Arcano 17 (li o Arcano antes dos Manifestos e antes de Nadja), marcando minha trajetória pessoal, as traduções/recriações leminskyanas de Bashô, a lírica do Willer, Kafka, Horderlin e Novalis, isso num caldo adolescente. Mais tardiamente, mas não menos importante, Artaud e sua recusa (suas cartas para mim são um dos textos mais significativos da literatura), Montale e sua sépia, Lorca, Lorca, Lorca, a geração de 27 espanhola, Pessoa e pessoas, Dario, Desnos, Kandinsky, Tarkovsky e sua poética de imagens. Enfim, são muitas as influências e leituras fundantes. A lista engloba poetas para os quais a literatura não era uma questão de beletrismo, ou a arte não era uma mera questão formal, mas a própria vida em seus movimentos mais importantes.

FM | Tenho percebido que, sobretudo em poetas nascidos a partir de 1980, há um renascimento na lírica brasileira, que é tanto na densidade da escrita, quanto na definição de uma voz própria, quanto no sentido de uma solidariedade explícita, sem que isto reflita a existência de um movimento. O que observas a este respeito?

GS | A retomada da lírica, ou a existência de certa lírica, reflete, de alguma maneira, uma mudança no eu poético frente às transformações históricas. Creio que frente ao vazio das grandes políticas e dos grandes discursos, a lírica retoma o controle do poeta sobre seu mundo, e esse mundo que se revela é mais amplo que o mero discurso retórico-histórico, porque na poesia a historia se entranha à interioridade e ganha uma dimensão transtempo, maior que o vazio ou nonsense dos meios eletrônicos e que a grande e mentirosa retórica da grande política.


[ FOLHA DE VIDA ]

Gledson Sousa (Ceará, 1972). Poeta. Formado em História, com especialização em História da Arte. Tem trabalhos publicados no site Triplov (www.triplov.com) e no blog A Esfera da Manhã, além de publicações em livros:
O Ovo – Meditações Sobre a Semântica do Mundo. São Paulo: Ed. Janos, 2004
A Iconografia Interior – Kandinsky e a Teosofia. Lisboa: Ed. Apenas Livros, 2014
O Livro das Novas Mutações ou O Oráculo da Natureza. Lisboa: Ed. Apenas Livros, 2014
Participação em obras coletivas: Presença do Feminino no Relato dos Viajantes, no livro Desigualdade no Feminino. Lisboa: Apenas Livros, 2009; Uma Espiritualidade Nietszcheana?, no livro A Religião que Anda no Ar. Lisboa: Apenas Livros, 2014. Em 2017 gravou um programa para a Rádio Terra e Fraternidade, do Porto, Portugal, lendo poemas seus selecionados pela escritora Estela Guedes. Poeta, prosador e ensaísta. Casado, pai de duas filhas e um gato.



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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Anna Höch (Alemanha, 1889-1978)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 128 | Fevereiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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