LA POESÍA SORPRENDIDA | Outubro de 1943 surge em Santo Domingo o número de estreia da revista La
Poesía Sorprendida. Sua formação editorial dialoga intensamente com o
caráter internacionalista que desde o primeiro período das vanguardas se
requeria de artistas e intelectuais em todo o mundo. O Surrealismo já havia
semeado relevantes fortunas por todo o continente e o quinteto que então
dirigia a revista dominicana estava atento ao que se passava tanto na Europa
quanto na América. Havia uma dupla sintonia, de respeito e afinidade. E um
espírito de irmandade que buscava novas perspectivas humanas, ampliando
horizontes magicamente destinados às exigências do grupo de afirmação de um
Homem Universal. E tal consonância era patente no perfil do quinteto que a
dirigia, formado por um chileno, um espanhol e três dominicanos. Um deles, Alberto Baeza Flores (Chile,
1914-1998), abrindo o número inaugural da revista, destaca:
Não
sabemos se a poesia nos surpreende com seu deslumbrante destino, se nós a
surpreendemos em sua silenciosa e verdadeira beleza. Não sabemos se ela
surpreende este mundo nosso e é sua beleza que mantem essa fidelidade secreta
na oculta, interior e grande esperança. Não sabemos se o mundo louco corre para
ela, porque precisa agora correr como antes, como sempre ou como amanhã; ou se
ela corre para ele, porque necessita salvá-lo.
Em
fevereiro do ano seguinte, abrindo a edição # 5 de La Poesía Sorprendida,
lemos o editorial que, ao fazer menção ao primeiro centenário da República
Dominicana, trata de reafirmar o espírito daquele grupo de intelectuais:
La
Poesía Sorprendida não tem outro presente que esta vida interior do homem
americano que busca sua essência americana e universal; que ama a própria
herança e que, de tão unido e herdeiro dela, é capaz de olhar para adiante com
olhos e alma novos por eternos.
Tal
determinação acompanhará a revista por toda a sua trajetória, o que inclui a
publicação de 21 números, além de uma série de cadernos individuais, com poemas
de todo o grupo e também de outros poetas convidados. Ao lado de Baeza Flores,
Eugenio Fernández Granell (Espanha, 1912-2001) reforçaria a consistência
múltipla do grupo, que contaria com um relevante trio dominicano: Mariano Lebrón
Saviñón (1922-2014), Freddy Gatón Arce (1920-1994) e Franklin Mieses Burgos
(1907-1976). Todos eles, poetas, exceto por Eugenio Granell, que, além da
poesia, se destacava como músico e artista plástico.
Assim
estava formado o quinteto de La Poesía Sorprendida, e a revista, já em
sua estreia, publicava poemas de Paul Éluard, William Blake, ao lado de poetas
dominicanos. Também era forte característica sua que ao final de cada número
viessem algumas notas que davam ciência de afinidades e plena atenção com o que
se passava ao redor. Logo na primeira nota deste número inaugural encontramos
uma confirmação de caráter da aventura editorial:
Somos
contra toda limitação do homem, da vida e da poesia; contra toda falsa
insularidade que não nasça de uma nacionalidade universalizada na eterna
profundidade de todas as culturas; contra a permanente traição da poesia e,
pela curta visão, seus permanentes traidores.
O rol
de inquietas afinidades prossegue sendo fiado a cada número, e na edição
seguinte podemos ler poemas de Pierre Reverdy, Robert Desnos, André Breton e
Apollinaire, dentre outros. Este segundo número, datado de novembro de 1943,
destaca um fato da maior importância para a cultura dominicana e, em
particular, para a configuração singular do Surrealismo em terras americanas.
Diz a nota:
As
edições de La Poesía Sorprendida publicaram
Los triálogos – Livro primeiro – e Infinitestética – Livro terceiro
– […] Ambos os cadernos, que recolhem temas universais, levam a epígrafe:
"Poesia a três vozes, de Domingo Moreno Jiménes, Alberto Baeza Flores e
Mariano Lebrón Saviñón". Obra nova, em fundo e forma. Nova por sua
intenção essencial eterna de antes e agora.
Mais do
que isto, Trata-se aqui do primeiro registro em terras americanas de
experiência com escritura automática, além do fato dela envolver uma
performance de criação coletiva. Tais publicações vitalizam cada vez mais as
afinidades de La Poesía Sorprendida com o Surrealismo, embora sem
tratar-se de adesão formal ao movimento. A exemplo do que, na década seguinte,
fariam revistas americanas, tais como a argentina Poesía Buenos Aires, a
nicaraguense El Pez y la Serpiente e a mexicana El Cuerno Emplumado,
dentre inúmeras outras, autores de distintas tendências conviviam em um estado
vital de aceitação das diferenças. Aos nomes já referidos viriam se juntar os
de André Gide, Paul Claudel, James Joyce, Paul Valéry, Stephen Spender e Ronald
de Carvalho, único brasileiro publicado na revista. [1] Também era evidente a cumplicidade do quinteto de La Poesía
Sorprendida com os editores de revistas que lhe eram contemporâneas, a
exemplo da cubana Orígenes e da chilena Mandrágora.
Na
edição # 6, de março de 1944, os editores de La Poesía Sorprendida manifestam sua adesão ao movimento
surrealista chileno. Já em números anteriores vinham sendo publicados alguns
poemas de Jorge Cáceres (1923-1949), um dos integrantes do grupo Mandrágora, a
vanguarda surrealista chilena. Agora a revista dominicana destacava a ação do
grupo, mencionando o “exemplar trabalho dos jovens poetas e pintores
surrealistas chilenos, que de maneira tão exemplar e nobre se preocupam de
ampliar o mundo com a criação e a revelação de uma obra e uma conduta”. Tal
adesão foi bastante ampliada, no número seguinte, com a publicação de poemas de
todos os poetas da Mandrágora, além da redação de uma nota final, ampla,
destacando o relevante papel desempenhado pela nova vanguarda chilena.
La Poesía Sorprendida, a exemplo dos
cadernos individuais que costumavam editar, em formato A4, trazia na primeira
folha, logo abaixo do título e da ficha técnica, as vinhetas tão
características de Eugenio Granell. Era uma revista essencialmente de criação
poética, seja em verso ou em prosa, o que não impedia a publicação, em alguns
de seus números, de textos críticos, tais como “Notas sobre a aventura do
Surrealismo” (LPS # 12, setembro) e “Poetas, poesia” (LPS # 13, outubro), ambos
em 1944, respectivamente assinados pelo equatoriano Jorge Carrera Andrade e o
cubano Eliseo Diego. Logo após completar o primeiro ano de intensa atividade, a
revista declara a consciência plena de seus feitos, em um dos balanços mais
corajosos e reveladores da cultura dominicana.
POUCOS MINUTOS COM EUGENIO GRANELL | Lembro o
dia em que o poeta dominicano Alexis Gómez Rosa, em um encontro nosso em San
Salvador, me presenteou com a edição fac-similada e raríssima da coleção
completa de La Poesía Sorprendida.
Justamente ali começou a minha viagem pelas veias cósmicas desta imensa
aventura poética e existencial. Antes, o que eu conhecia, era fruto bem pequeno
de minha correspondência com um crítico romeno que em muito distorceu a
realidade do surrealismo em nosso continente. Para conhecer os milagres da
criação nada melhor do que o convívio com ela mesma. Deste modo, Gómez Rosa me
pôs em contato direto com a magia do que se realizou neste país em nome de um
surrealismo que vai muito além do que antes sequer se havia imaginado.
Foi justamente Eugenio Granell (1912-2001) quem primeiro chama a
atenção para o erro de tratar o surrealismo como sobrerrealismo. Para ele há que destacar o fato de que aquilo que
se busca, através do surrealismo, é um tipo de realismo total, em que a criação
se realiza em uma dimensão muito ampla que cobre a realidade em todos os seus
ângulos, em todas as suas perspectivas. É muito interessante porque a ideia de
um sobrerrealismo é demasiado ínfima
e reflete certa leitura formal, limitada ao sentido imediato de relação com a
criação, a leitura de um poema, o olhar sobre uma pintura etc. O surrealismo
busca a dimensão integral dos sentidos, sua festa essencial alquímica. E isto o
havia compreendido muito bem Eugenio Granell. Assim como já o havia defendido
Juan-Eduardo Cirlot, a própria palavra “surrealismo” é “uma intensificação do
sentimento da realidade”, de modo que o surrealismo é uma revelação do homem
que levamos dentro de nós. Pela primeira vez a arte compreende que sua
realização é uma combinação de forças que amplia em nosso íntimo a vontade de
ser, de conhecer, de distinguir-se em meio ao universo. O complexo conceito da
realidade requer um exercício perene de liberdade, um estado transbordante de
transição. Recordo com o mesmo Cirlot que “a concepção do universo recolhe,
portanto, todos os dados que podem ser isolados em diversas disciplinas do
conhecimento, porém em particular a relação viva através da qual o homem se
confessa incluído na ordem do mundo”.
A realização de uma bem cuidada exposição individual, em 1989, poucos
meses após a morte de Salvador Dalí, faz com que a crítica perceba que Granell
era então o mais importante surrealista vivo na Espanha. Porém Granell viveu em
muitos países e, em especial, de relacionou com o movimento de vanguarda na
República Dominicana, de modo que, mais do que espanhol, eu o tenho como um
desses artistas que estão bem além dos limites geográficos que costumam definir
a vida de alguém.
Em Granell, o parentesco com a pintura de André Masson e Wifredo Lam,
entre outros, não cria senão a dimensão familiar mágica que propicia sua força
estética. Há no espanhol uma sintaxe muito singular que faz com que sua criação
seja o cenário de uma revelação do espírito. Em suas pinturas, igual que em
seus poemas, o corpo todo é uma máscara, no sentido da afirmação de um teatro
pleno de revelações.
Sua biografia compreende dois momentos bem especiais, o encontro com
André Breton e o grupo de La Poesía
Sorprendida. As duas coisas são frutos de sua residência na República
Dominicana. Com o primeiro, juntamente com Marcel Duchamp, organizou, em 1947,
uma das exposições internacionais do Surrealismo, em Paris. O segundo caso
compreende um dos mais afortunados momentos do surrealismo em nosso continente.
Deste extenso período de sua vida em Santo Domingo resulta parte considerável
de sua obra plástica, quase igual ao de sua residência em Nova York, de
permanência ainda mais extensa.
A seu respeito, eu recordo umas exatas palavras de Benjamin Péret, ao
dizer de sua pintura que está repleta de formas híbridas, entre tantos
personagens que parecem sair de um mundo ainda por ser habitado. Disse Péret:
“Esses espécimes de uma fauna futura – galo-relógio de sol, galinha-máquina de
costura – nos fazem evocar os seres fabulosos que os primeiros viajantes
reconheceram na América”. Em sua plástica nos deixamos mesclar por uma
profundidade de mitos, uma possessão de fábulas, um castelo de máscaras que são
deuses que são nossas figuras mais íntimas. Em um percurso milenar pelas veias
mais secretas do Caribe, a selva dançante com suas coxas esculpidas pelo suor
do entusiasmo, as vozes vibrantes e prolixas que descobrem o rosto verdadeiro
das excursões do mistério.
Granell presenteou a pintura e o surrealismo com essa relação direta
com a máscara, o cenário amoroso no qual buscamos o homem no mais íntimo de
cada um de nós, através de formas que são móveis, dinâmicas, musicais. Seu
mundo plástico é uma partitura de jazz, é toda uma jam session dos vertigens de nossa aventura existencial.
Porém também criou no ambiente da amizade, com seu entusiasmo e
generosidade. Em suas viagens fez muitos amigos que testemunham o valor
magistral de seu espírito. Entre esses encontros mágicos, destaco os momentos
passados com o casal Susana Wald e Ludwig Zeller, seja na Espanha, Portugal,
Estados Unidos ou Canadá. Neste último país, seus amigos chegaram a organizar
uma exposição sua na Mandref Gallery, Ontario. Anos depois, em uma carta a
Ludwig Zeller, anotou Granell:
Gosto muito de estar sozinho.
Não sei o que é o aborrecimento e cada dia necessitaria ter mais 24 horas para
fazer coisas que, independentes do valor que possa ter para os demais, fazem parte
de minha própria existência até o limite de que não sei como poderia viver sem
estar sempre completamente entregue a elas. Eu creio que o aborrecimento em
situações normais é uma espécie de renúncia à vida. Talvez, uma poupança do ato
suicida por pura timidez – ou por excessiva modéstia.
Este fragmento de carta que reproduzo me foi facilitado por Susana
Wald, que, a meu pedido, escreveu uma memória de sua convivência com Granell
para publicação na Agulha Revista de
Cultura. Há algum tempo tivemos Eugenio Granell como “artista convidado”
desta revista, talvez a primeira oportunidade que os brasileiros tiveram de
conhecer um pouco – 46 obras – da riqueza estética deste infatigável
surrealista. Caminhando por entre suas pinturas, é possível perceber o significado
das palavras que lhe dedicou outro crítico, Valery Oisteanu:
Granell nos revela os mistérios
das regiões ocultas, nos devolvendo a energia para restaurar a vida e por em
dúvida as forças obscuras da destruição. Por um reflexo automático, livre associação,
ocultismo? Quem sabe! De suas distantes expedições, Granell nos traz a
eloquência mágica de novos continentes. Igual que aqueles índios que percorriam
as Américas em busca de fortuna e regressavam com ela, ele se converteu no
grande mestre iniciado, o bruxo da tribo que domina uma nova linguagem
pictórica, apenas igualado por Tanguy, Domínguez e Paalen.
O título de suas pinturas é como cordas mágicas que inscrevem no ar
uma contextualização surrealista no sentido de firmar o devir de todas as coisas
invisíveis, a festa das metamorfoses através da qual o homem reconhece a si
mesmo. Granell é um mago da carnalidade do desejo, um bruxo que como poucos
penetra as chamas do espírito em busca de sua realização em matéria viva. Descanso nas nuvens, O vulcão de água,
Cerimônia da lâmpada tribal, Os espelhos dos adeptos acendem os carvões da
noite, O balcão das filhas do sol… são como fábulas fantasmais, fantasias
oníricas que expandem nossa compreensão do mundo.
Sua técnica refinada de óleos sobre lenço e madeira, além da
experiência com têmpera em cartão, traduzem uma sensação de entrada no espírito
das formas, a dialética das vertigens, o suntuoso espaço da conversação entre
proximidades e distâncias. Uma metafísica singular, plena de inquieta profundidade.
Granell foi também escultor, músico, narrador, poeta e cineasta. Em todo o
território de sua criação é possível encontrar os mesmos argumentos analógicos,
a consciência do tom múltiplo da realidade, a voragem poética das incontáveis
possibilidades de ser.
O mesmo teatro alquímico que encontramos em sua plástica encanta o
olha de quem desce ao cenário de sua poesia, como uma transmutação da matéria
plástica em magia verbal. E tudo ali se realiza na mestiçagem de desejos e
recordações.
Uma nuvem de harpas
sussurrantes
circunda a carruagem do aroma
sabiamente cândido
que transporta entre aparas de
mármore e cortiça
o fio delicado
pente de galhos em vários
capítulos
Ali está o casal
esse que se enfrenta rugidor
ungido de projetos
cada parte silenciosa na carne
viva
cada um com sua capa de
cristais
Ali
os amenos contendentes do
encontro em todos os atalhos
sem perder os chocalhos em
relevo e o bastão original
O casal
inundado em ilustra furacão de
vespas acesas
Não há dúvida que este poeta se trata de uma pintura. Não há
dissimilaridade de tensão entre o traço e o verbo. E suas cores são de efetiva
harmonia semântica. Suas imagens são paridas na mesma cozinha alegórica.
Granell faz o traslado de dois mundos como se os preparasse para a permanência
de um no outro. Despois de vê-lo ou lê-lo já não é mais possível separar os
protagonismos. Sua virtude dialética batiza as infinitas possibilidades
orgânicas de tudo aquilo que cria. É verdadeiramente de um mago que se trata,
um mago que se chama Eugenio Granell e segue ainda entre nós.
UMAS PALAVRAS SOBRE FREDDY GATÓN ARCE | Uma tarefa difícil e apaixonante, traduzir Vlía. Em 2011 publicamos minha tradução desta prosa mágica. Uma
primeira edição bilíngue e virtual que me foi possível graças a Manuel Mora
Serrano, que assinou o prólogo. Agora mesmo acabamos de publicar sua segunda
edição, desta vez com mais ampla difusão, através da coleção “O amor pelas
palavras”, coordenada por mim e Leda Rita Cintra, especialmente para a Amazon. Edição
ampliada no que diz respeito a estudos críticos sobre o poeta dominicano,
Freddy Gatón Arce (1920-1994), uma vez mais graças à generosidade plena de
milagres de Ivelisse Altagracia Gatón Díaz de González e Luz Altagrassia Díaz
Gil. Eu venho de um país em que os herdeiros em muito obstaculizam a circulação
das obras de nossos mestres, razão pela qual me encanta o modo como encontrei
entre vocês esta suma de amor e respeito pela criação, por essas pontes que
tornam possível a vida.
Bem, agora eu quero primeiramente ler minha tradução do parágrafo
final de Vlía:
Não podemos mais. A vida pesa
demasiado. É uma tristeza dobrada nas cavernas que avançam. A noite não pode
ser detida em uma esquina qualquer. Deve ser porque nada nos une, sequer os
pensamentos. Eu deveria ir como cão à sombra das casas, fuçando nas lixeiras. É
impossível ficar sob o azul e ter a ti presente ou estar triste. Tratarei de te
dar outra silhueta para te imaginar melhor. Tudo ficará como árvores ardidas
até as veias frias. Já que estamos no cemitério, confortaria um colóquio com os
mortos. Aqui tudo é igual. A tradição fria desconhece o sol das transformações.
Se olhas à direita, ninguém ultraja a humanidade do algodão, nem à esquerda um
fraque cria ódios. Aqui devemos ter nascido: a música sempre é escutada, uma virada
para o Norte ou Sul para agradar com outra melodia, e não fazem falta, ouvidos
nem mãos, para temperar cordas, nem fôlego para sopros estridentes. Tudo é
nosso, um ritmo muito teu, muito daquele, muito meu, e tudo descansa em uma
serena igualdade. Porém já estamos sob a árvore eleita; nossa primeira incursão
aqui termina.
O que é Vlía?
Um secreto ninho de metamorfoses? Maquiagem amorosa da loucura? Um
teatro de cenas vorazes que se encontram muito além de toda realidade? Na
apresentação de sua primeira edição, pela coleção de La Poesía Sorprendida, encontramos que
Vlía é uma confissão ao mesmo
tempo diabólica e crente; angustiada e com um fulgor interior, uma sinceridade
desnuda, densa, obscura, de secreto humor em busca de uma libertação maior. A ética
e a poesia se aliam e digladiam com o acento da dor que se mescla ao desespero.
Raro livro amoroso distinto, salvadoramente difícil e minoritário, de lenta
entrega.
Comecemos por recordar a imagem de André Breton ao dizer que
Lautréamont foi um “transeunte sublime,
o grande serralheiro da vida moderna”. Igualmente podemos dizer da linguagem
neste livro tão ousado de Freddy Gatón Arce. A linguagem assume o protagonismo
de uma viagem pelas possibilidades amorosas e a exaltação dos sentidos. Por
isto a definição do livro é uma tarefa ociosa, que a ninguém deve importar. Que
explicação buscar nos textos bíblicos ou nas evocações de Maldoror? Não se
passa o mesmo com Vlía e seu humor
refinado e transbordante? Com esse castelo de fogo e os metais que saltam das
chamas como personagens que tratam de nos orientar por novos caminhos? Não são
poemas de viagem, mas sim a viagem em si mesma.
Que Vlía seja um raro
exemplar de escritura automática no Caribe é outra coisa que requer um novo
exame. Certamente há que se destacar a passagem de André Breton por Santo
Domingo, assim como a residência ali de Alberto Baeza Flores e Eugenio Granell.
Como reflexo natural chegam as vozes plasmáticas do surrealismo e a magia
entranhável de movimentos poéticos desde Cuba e Chile, sobretudo. Sem esquecer
a própria natural de Freddy Gatón Arce, sempre um leitor faminto, devorador de
maravilhas, buscador de inesgotáveis experiências.
O que um dia ele procurou através da escritura automática certamente o
encontrou, de modo que não necessita seguir criando de acordo com uma receita.
Alcançou uma fluidez carismática que encontramos em Son guerras y amores (1980), sobretudo no capítulo IV (“Suelo y
quebranto de las cañas”), assim como no capítulo “Desde antes de las palabras”
do livro El poniente (1982). A
voragem da linguagem leva em suas águas a excelência de transmutações como
lemos nas páginas destes dois livros, assim como nos fragmentos de De paso (1984), até o retorno de Vlía em
Mirando el lagarto verde (1985).
Escutemos:
Tudo começou com o voo.
Os móveis foram se esboçando
Com suas novas solidões,
Enquanto os passos e as vozes
da casa
Pareciam de outros pés e de
outras bocas.
O avião, com a primavera a
bordo
E, no entanto, em qualquer
direção
O infinito…
Como dizer que o surrealismo passou pela vida de Freddy Gatón Arce uma
única vez, ali no passado remoto dos anos 1940? Como dizer que foi um acidente
na cultura dominicana? É verdade que não houve uma formalização ortodoxa, porém
talvez seja justamente isto o que mais importa à saúde do surrealismo. Já em
1952 dizia André Breton que “não deixam de ser produzidas hoje obras que, sem
ser exatamente surrealistas, o são mais ou menos profundamente por seu
espírito”. Certamente que não se trata da cegueira manifesta no conceito de um para-surrealismo. Com o tempo a criação
foi descobrindo vários matizes para se realizar, como as mil formas vítreas que
podemos obter soprando a mesma areia. E as vozes que representam o teatro
surrealista não se limitam aos ditames de suas técnicas.
Na poesia de Freddy Gatón Arce encontramos a presença quase constante
do humor em seu acento mais agudo, por vezes disfarçado em afirmações
vertiginosas e insólitas. Em contraste com o registro menos frequente do
automatismo ali estamos sempre de mãos dadas com a exaltação lírica. Além do
mais, na força anímica que caracteriza o poeta, podemos recordar, com o
argentino Aldo Pellegrini, que o mais atrativo do surrealismo “foi a crença de
que a arte não tem uma função em si, mas sim que é um modo de expressão do vital
no homem”.
Deste modo, Vlía é a
primeira página de um ambicioso projeto de exploração poética da própria vida e
suas inesgotáveis perspectivas.
NOTA
1.
Uma nota editorial sublinha que Ronald de Carvalho é “um dos mais fundos
acentos da poesia brasileira contemporânea”, e prossegue: “Voz profunda do
Brasil constante. Seu mundo amplo, multiforme, sinfônico, de ‘toda América’,
foi por nós escolhido para destacá-lo, na versão publicada, como a veia
comovida do Brasil.” Como curiosidade final, acrescente-se que o poema foi
traduzido para o espanhol a partir de uma já existente tradução do mesmo para o
francês, publicado em 1934 na revista alemã Ulenspiegel.
*****
EDIÇÃO
COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista
convidado: Jan Dočekal (República Checa, 1943)
Agulha Revista de
Cultura
20 ANOS O
MUNDO CONOSCO
Número 134 | Maio de
2019
editor geral | FLORIANO
MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente |
MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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FLORIANO MARTINS
revisão de textos &
difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019
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