sexta-feira, 14 de junho de 2019

ANDRÉ BRETON 1925-1930 INÉDITOS III


O VERMELHO É BEM AERADO…

O vermelho é bem aerado, mas o azul é lilial. O verde rampa de fogo nos teatros descreve as cestas, as banheiras onde se exibe o diamante do amarelo sobre a garganta distraída das rosas cobertas de bruma. O branco é um branco alado em um parque onde se reúnem numa noite de festa uma mulher sublevada pelo vento e seu cavaleiro que patina sobre a água. Todas estas cores têm existido, elas existem, elas compartilham os ovos dos ninhos, as teclas dos pianos, os raios acróbatas mais obscuros que aqueles das bibliotecas nas quais se alinham os adoráveis livros românticos de infância em sua encadernação de editor. Em lugar das poltronas, das poltronas de emigrantes tão notáveis sobre os transatlânticos, nas confusões graciosas dos couros arranhados, dos trançados afundados, sobre um papel de parede bem raro de que são o flamejar sem calor, se mostram as folhas moldadas em gaiolas carmesins ao interior das quais se alvoroçam as aves em forma de nuvens. Homem, eu te reconheceria entre mil. Tu vês ao fundo do ar, tu te recomendas da cedilha do C açucarado em tua língua como um anzol, tu és a imagem dos espelhos que colocam um pouco de sua moldura ao redor de ti, principalmente no topo da tua cabeça, tu me lembras a evidência absoluta de certas proposições abstratas. Tu tens o sentido do infinito, calmo e estupefaciente como um dedo apontado sobre uma linha de tua própria escritura. Eu conheço o avesso das famílias, o lado onde a perplexidade tem lugar, entre as pequenas estrelas da sopa, entre as fivelas coralizadas das valises, entre os números aéreos e móveis da desordem escamosa. Eu conheço a tartaruga elefantina do prazer quando ela começa a abrir o olho e as ilhas Seicheles que, passando uma mão desdenhosa e um pouco embaraçada nos bigodes de algumas cabeças de noz de coco, recomeçam a desejar as escadas que sobem até um apartamento do sétimo andar onde as colchas agitadas pelas capuchinhas do balcão se assemelham já com as alcachofras. Faz uma temperatura igual, medida em farol branco em forma de zuavo, mas os jardins são antes invadidos de jarina que de nácar e a lembrança em sua famosa pequena concha espiralada levanta seu chapéu chato à minha passagem. É bem especial como emoção; as haciendas estão desertas e o mecânico do trem faz os sinais de cruz à passagem de cada tropa de jovens moças armadas, cujos cabelos se distribuem diante da orelha em ingleses e arrependimentos.


TU NÃO ÉS

Tu não és, não é mais, lote maravilhoso desta casa que eu não tenho habitado. Sol a fender a alma, tu passeias em vão tuas cinzas sobre o planalto, este planalto de um equilíbrio que eu não consigo fazer pender, este planalto de landras e de estrelas. À força de afastar os galhos pelo caminho dos corpos, não há mais galhos, há não mais do que flores brancas. À força de engolir as cascas mais frágeis que as das estofas brancas que servem para recortar as flores, não há mais ar, não há mais céu atrás das estrelas. A grade à qual se agarram minhas duas mãos se curva dia a dia e se isso continuar, farei um aro pelo qual passarei. Eu não sei nada da estação aonde me conduzem, a tatear, parece, e por uma noite decididamente eterna. O vale, eu sei o que se entende por vale, é uma fronde como as outras à intenção dos pássaros de folhagem. Esse espetáculo não tem sentido, ele é como eu que tomo o vinagre com as moscas, como eu que não sou ainda aquele dos dois que conta nos dedos. O desolador aspecto das vilas participa do vazio dos meus olhos ao fundo dos quais não se vai. Nacelas de relâmpagos, aonde me levais vós através desta tempestade para desenraizar as plantas trepadeiras como o verão, a primavera, o inverno e o outono? – Nós te levamos a esse minarete azul escuro, vê, acolá, detrás da pilha de areia da noite, detrás do reverso da pilha de areia do dia, ao dente estucador dos cetros, à equitativa ordenação das rosáceas sem espinhos de que tu formas tua coroa insensata.


VERNISSAGEM

O odor dos noivos se abate sobre uma floresta triada à peneira entre os jogos dos loucos e ao malabarismo das estrelas. Começa-se por não ter cautela e logo estamos em confidência. Lampejantes pequenos recipientes sustentados pelas trocas frutíferas entre as árvores, sois vós quem sois toda a primavera, toda a primavera. Putz. Escutai as palavras do bom pastor que passa segurando cachos de lã e as cardadeiras de colchão no crepúsculo. Eu vos digo que é a mesma coisa. Há loucas equipadas fora das colmaças e o matrimônio não está sempre ao final, perto do curso d’água fácil de compreender. Esperança indistinta, pequeno vapor imperdoável, eu te tenho sempre ao final do meu cigarro de dúvida. Eu não perdi meu tempo observando pela fechadura, no trem; bem creio haver assistido a uma violação iluminada pela pequena mão que buscava a esperar o sinal de alarme, a besta: não há no campo!


A PORTA DA CASA DE LISE

A porta da casa de Lise
É defendida por uma ave marinha
Que é preciso apunhalar em pleno voo
Trata-se ainda de quebrar entre sete vasos de prata dourada
Aquele que contém um pouco de cinzas
E não é nunca o mesmo
Então de uma procissão toda branca
Se abate um capuz descobrindo uma cabeleira que é dele
E da qual eu não sei nada
Senão que ela está atravessada por uma linha azul
Acima da qual eu não vejo mais
Esta linha faz a luz e a sombra
como muito cedo em Grasse
uma fileira de coletores nos campos de jasmim
Os astros dão a volta na cabeça de Lise
Com o tentador das panteras que ela ama
E que a amam e que fazem tão bela a veste do céu
Como, mas como acreditar no retorno das luzes
Quem caracterizam a quinta estação
Aquela que vem a cada cem anos
As maçãs de ouro reluzem em árvores negras
Do jardim mas ela faz semblante de não lhes ver
Para evitar que se lhe desencapuze perdão por sua tristeza
Que é um leque invisível ou pelo menos loucamente transparente
Lise a neve cai sobre vosso espelho
Lise vestida em cristais de neve
De neve como vosso nome fechado em estames de sangue

*

Lise os poemas se fazem e desfazem como os passes
Misteriosos diante de vossos olhos mas não são jamais
senão as mãos daquele que quer vos
adormecer ou vos acordar que sonham
O barraca de feira onde se combinam os jogos tão pouco
variados e no entanto inumeráveis
Do amor e da morte
Jamais esteve tão pobre de acessórios
por meio desse fogo de artifício
que chamamos eu creio sol
Mas a ilusão é insuficiente e vós que não buscais senão a ilusão
A ilusão de um mal incurável nas comarcas da ausência
Atrás dos passeios de flores gigantes
Aqui onde o porvir se engana de zona
E se mantém de pé em seu cavalo embalado
Uma mulher que não é mais Lise e que se lhe assemelha estranhamente
Os aventureiros do vale que a observam passar
não podem suportar o brilho de seus olhos muito abertos
Conta-se que no tempo em que viveu uma só batida de
seus cílios desencadeava esse deslocamento brusco e
oblíquo dos insetos negros cujas longas patas
se descontraem à superfície dos riachos
Eu que escuto isso do fundo do meu túmulo
Eu me abstenho de o contradizer
E meu coração através do qual seu coração passou
Ou passará que ela o queira ou não
responde ainda bem longe nas horas impossíveis
Deste eco que não existe a não ser nas grutas
Nas noites de arco-íris
Mas as noites eu juro que as noites são por demais
Noites em que se fazem e se desfazem os poemas
Noites em que se pode parecer demasiado doce
deixar a presa pela sombra
Noites que eu aperto secretamente sobre meu
coração com a imagem das árvores ocas onde se
repasta a adorável crueldade
Noites maravilhosas das pedras que já não se subleva
e de Lise
Noite das noites que eu chamo sem Lise



É TU NÃO É NÓS

É tu não é nós é o fogo que não teme o vento
Aquele que corre mais rápido que o vento no campo
Uma moça sacode ao dormir seus cavalos pretos
E nos olha passar
E te olha passar é tu não é nós
O gênio dos poços inclina à tua passagem seu mágico aro azul
Não é mais tu é tu não somos nós
Há portas para todos os precipícios
Mesmo aqueles nos quais se cai e há também os pássaros ao longo de toda a queda
Os pássaros que não vivem senão aí
E cujas asas formam um X mais brilhante que todos os outros
Onde vais tu é o endereço que te guia eu vejo suas pernas nuas e finas
Não há precipícios para ti
Sem juras efêmeras que deslizam sobre a água resplandecente
É tu esta luz dando volta ao pescoço das árvores
Esta luz que não escapa de ninguém e que dá a volta à mó que não se vê
Eis o mar, eis as raças e as rosáceas que tu amas
As couraças eternas das neves do mar
Os cortados molhados chicoteados pelas algas rubras das longas avenidas
Eis os uniformes com belos alamares
É isso aqui queres tu ver a cruz que não eleva sobre o mar
Queres tu madeiras de gelos sulcados de raios pretos
Que se escondem atrás das auroras do norte
Te rendes tu à sagração íntima das rainhas sem súditos
Ou bem procedes tu da serena palidez das coisas mortais
Como eu que te interrogo e que busco teus braços como a chama através da grelha
Que grelha aquela do tempo
Que tempo aquele de lágrimas
Onde estão as formas das folhagens das velas das imensas borboletas de que treme o vento
Onde vai o fogo que não teme o vento


LUZ EU DISSE

Luz eu disse verdade a sombra é verdade parece
Ela tem mesmo não é os olhos azuis
E os caminhos todos levam à Roma antiga
As palavras se vão assim quando eu fico disse eu verdade
No meu lugar há homens que vão à caça
E que olham para trás deles como se os pássaros que eles já mataram lhes esperassem
A espuma que rola como ela está enciumada da poeira das pedras
Parece que as crianças creem nascer dos espelhos
E que é mais tarde somente que elas têm a ilusão contrária
Não há imagem no vidro nem alhures
Não há senão comprimentos segundo o vocabulário hípico
É por isso que os obstáculos são às vezes mortais
Mas que dizer do cavaleiro que levasse cem anos a sair do número
Aí onde o pé do seu cavalo passou a sombra desse pé faz que a erva rebrote
Como se esta sombra sozinha fosse verdade
Mas o sorriso não tem pátria


EU NÃO SEI MAS EU SEI

Eu não sei mas eu SEI
Eis minha estação que antecipa o outono nos países onde nunca faz noite
Onde os dias não diminuem a respiração de um pássaro que voa
Se ele voa é que eu SEI
Eu sei que ele não pousará nunca
A andorinha tem a forma das minhas mãos
É por isso que ela está rasa o solo quando vai chover
Mas faz tempo bom tão bom que já não está aqui ou alhures
É mais tarde em uma clareira
Em uma clareira bem ao fundo de uma mina
Onde mergulha um elevador repleto de pedras
Quem sabe
Queda de balão
Saber é muito curto e isso em todos os alfabetos do mundo
Dizem saber como se diz Eu te amo
Mas os lábios nem sempre têm para elas o raio de sol
Que faz com que em certos países não faça nunca noite
Os lábios nem sempre se entreabrem sobre o que se SABE
Quando alguém acredita em adivinhação em seu longo cortejo de astros e corolas
Corolas pronunciei eu a palavra Corolas
Corolas eu SEI Nesta corola há um sobressalto.


MEUS PASSOS NOS TEUS

Meus passos nos teus a sombra nas folhas
Um pensamento no oco do caminho
Meus dedos sobre a chave o regato pálido
E tudo isso que lembra o tempo
Ah a agulha do caminho de ferro sob a chuvarada
Enquanto o anho ri na clareira
Um dia de verão tão longo que faz toda a volta
Eu te vejo na sombra meus passos nos teus
Tu és louca e quase tão bela quanto a aproximação da vida

*

Fala-me desta rainha que estava tremendo
Que o relógio parecia molhado
Os balbucios das ervas bem perto d’água
Era sua coroa e tu descias de carro
Perto do palácio que parecia com os cordames para a Senhora de Ricochetes

*

A águia levou duas ovelhas em suas garras
A ovelha negra fecha os olhos
Pobre abismo há uma estrela que se agarra ao seu reflexo
E a águia deixa cair as caixas que continham os anéis
Os anéis soam as pedras sangram
E no glaciar violeta se confundem os lagos cheios de sombra
Embaixo da catarata o Riesling malabariza com seu punhal
Nós viemos para o albergue já não era sem tempo
A agonia é levada em uma carruagem com quatro chaminés
Por quanto tempo veremos nós o passado

*

Vai eu já chego
Vai no bosque
Adentra a água
Deita-te nas íris da parede nua que não tem plumas


DO TEMPO EM QUE AS COISAS FALAVAM

Do tempo em que as coisas falavam
Coisa Sim eu estou aqui
Menos que ser coisa depois de nós palha osso metal em fusão
Vime
De onde viestes disse no começo do guarda-chuva
O anel que não devia jamais ser redondo
E o anel por sua vez interrogado
A aparência fugia sempre
Tudo o que se esperava para ficar por cima
O de cima sobre a pedra como faz o musgo preto
Quando a noite sucede a manhã de pálpebras fechadas
E que as lanternas empeixadas afastem diante delas os bancos de jardim alaranjados e oscilantes
Havia castelos de água com janelas de fogo
E nessas janelas as redes esvoaçavam para capturar os pássaros do ar da terra
E a vivacidade eterna subiu nos trapézios polidos
Dos circos nevados como as conchas gotejantes de notas
Que um ouvido abrigado do vento não ouvirá
O copo dormia ainda como um pouco de areia encostado contra uma parede
Com sutileza
E o tremor das folhas não tinha ainda ganhado nenhuma gaiola pronta para se encher desses rumores disciplinares e vagos que se compara aos deslizamentos de cotovias em aros enfiados uns na areia de suas pequenas bandeirinhas ensanguentadas
E as máscaras eternas modeladas em mármore com veias brilhantes
Desfilam como sobre uma linha de frondeado passa o exército em desvio dos povos cujos nomes serão à custo retidos
A cadeira curul lenta como um rabecão de pérolas
Os escudos de azure as estrelas de geada
Toda a paciência dos inventores curvados em seus aparelhos fora de uso
Toda a ambição dos profetas com seus chapéus de abafa-velas
Toda a nostalgia dos conquistadores que sobem ao sol como uma gavinha de ouro
Matizando a duração com aparas de cobre elétricas e carregadas


FAZ QUE O DIA

Faz que o dia não entre ainda
Quem está aí?
Com suas gaiolas cheias de rodas vermelhas
Que ele termina de por para fora suas garças
Uma roseta de erva das cores do céu sobre o qual tu andas
Entre os paralelepípedos
Eu vejo os trailers silenciosos parecidos a um acordeão sobre uma mesa
Eu vejo as flores d’água arranjadas conforme sua espécie ao longo de uma orla que tu segues
Eu vejo a noite como fazem os pássaros com grandes olhos quadrados
Que tem com os pirilampos as relações de espelhos
A noite não bate na porta de vidro ela passa seu tempo no armário
Entre o linho azul e verde ela canta ela faz ziguezagues pela casa
Em nome da floresta e do mar
Qual é a mais sombria qual ousas tu o mais frequente nomear
Com teus lábios que me fazem ver a floresta e o mar
Um no outro quando o vento dispersa os grandes papéis escritos
E que a erva sobe nas lâmpadas que baixam
Tem-se rejeitado há pouco no campo as grandes construções em ferro
Que são belas e altas e parecidas ao meu amor
Das armaduras que não convêm mais que ao amor e ao ar
Não se conhece sempre a utilidade
Os gênios que velam tuas mãos para que elas não se acendam sem cessar
Eu vejo no raio de um farol os navios brancos que estão uns sobre os outros em apuros
Os gênios que velam tuas mãos teus olhos para que eles sejam da natureza das sedas que se giram
Nos moinhos de pássaros
E também dos graciosos quadriláteros de quartzo sob a picareta usada dos homens abatidos por esses sentimentos
Dão a volta ao mundo enquanto tu dormes
Acreditando que o tempo parte como uma flecha
Ao encontro ao encontro de tudo o que te é contado
De maravilhoso em aparência como o giroscópio na borda de um copo
Ou ainda como a tela branca em que a paciência é feita de tanta pressa, de desejo, de dramas e de perseguições
Enquanto tu és acariciada pela palma das lágrimas
E pelo eterno lazer que faz a alegria
Quase tão infeliz quanto feliz
Como essas borboletas que parecem muito com as folhas dos soldados que correm sobre as geleiras
Eu vejo os retratos imensos
Por causa de uma trança de cabelo dez vezes mais longa
Eu vejo o gelo se romper sob os soldados
Tudo é silencioso como no mais belo tempo da arca
A imaginação é um canteiro de lanças quebradas
Na imaginação eu não descubro senão a graça do coração
Eu vejo em seu burel imemorial os Templários
Eles estão esparsos e longe no meu sonho
O que eu adoro o que nada saberia me fazer queimar
Suzanne tua a forma mesma do fogo



*****

EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Amirah Gazel (Costa Rica, 1964)
Poemas traduzidos por Davi Araújo (Brasil, 1979)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 136 | Junho de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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