PERFUMES D’ORSAY
Está escrito em frente! O recém-chegado olhava sem ver o vaporizador de
sexo feminino que se mantinha imóvel sobre a mesa do hotel. Ele parecia
bastante alegre, de seu estado. Uma borboleta que voava ao redor de sua perna
veio pousar em seu olho. O vento havia caído após vários anos. Ao ver Germaine
não soltou nenhum grito mas deixou cair uma lágrima mais longa que o Sena (em
Paris, quando segue o Louvre a pensar em Luís XIV). Havia rosas e hera na
parede: um exterior encantador. Tudo com
a ideia de reconquistá-la, ele iria lhe apresentar o tempo perdido como
uma laranja antes de fazê-la uma chapelaria onde se poderia vir a repousar na
contemplação do sol.
TÍTULO
A Philippe
Soupault.
O balão todo azul
do pêndulo
E os pequenos
ninhos dos sinos
É lá em cima que
dormimos
Nosso amanhecer é
incrédulo
Ao maluco esquilo
tímido
A haste oferta os
seus seixos finos
Que falsos rubis
conferimos
No escoar d'água
sem coágulo
Os comediantes do
bosque
Salvam o poço a
que se arrogue
Suas conquistas em
concerto
O extinto bispo
João
Restaura a capa de
concreto
Do enorme espaço
em mutação.
AS PÁGINAS MARCADAS DE GIZ…
As páginas marcadas de giz das revistas floridas de passageiros celestes
são fechadas para todo sempre sob os dedos silenciosos. O sistema de ventilação
não é perfeito considerando a neve dos glaciares doces que compõem as cadeias
vermiculares das árvores mortas sob seu aparato de inverno. Mais um momento de
êxito, pobremente decuplicado pela luz desse passante esverdeado duma casca
maravilhosamente elaborada. No regime dos condenados políticos isso são duas ou
três vidas perdidas, mas as piores Sibérias não são nada diante das férias à
beira-mar regressado com bochechas das moças com olhos de gaivota. Provocação
das canções murmuradas pelos tamarizes empoeirados da praia repletos de
pássaros que observam através a incrustação das villas onde se passam as cenas
de amor traçadas a compasso, é pena, nós viemos todos. Felizmente tudo se forma
uma aparência de razão de ser desconcertante como a mesma alegria de viver às
custas das ruínas de prata do pátio da escola, do cassino tagarela das
Deauvilles loucamente iluminadas de imensidades e obturadas a esmeril. O
enquadramento das garrafas murmura à aproximação das banhistas refrigeradas e a
dança ocasiona as bonitas preguiças insistentes banidas das memórias daqueles
que retornam ao balbucio das capitais. Reuni-vos com o licor oceânico com a
vossa cabeça de heliotrópio escamoso multiplamente frívolo entendimento cordial
oliva é o mais belo nome que eu saiba para uma mulher.
O sal virado nas toalhas de mesa para secar o sangue da nossa mão queima
com uma chama azul. Os serviços de porcelana com setenta e duas peças comandam
nossa existência. No erro das noites, nós olhamos o mundo recordamos a
experiência dos hemisférios de Magdeburgo. Um barco engastado de prata desliza
sobre as cordas que não se havia ainda percebido. Longe do rosto adorado se
compõem as cenas históricas perturbadoras como a história desse príncipe que
foi assassinado enquanto voltava para casa brincando com sua luva. A flor das
ervilhas de que é feito o interior dos carros das crianças perfuma os caminhos
no inverno. Os estalidos do amianto espaçam prazenteiramente os beijos. Jamais
o sol foi retratado sob os traços de um jogador de cartas.
TAPETE LEGÍVEL
O enxame de mercadorias pálidas se fortalece nas missões. A ausência de sequência
das ideias vale descontos em grandes lojas. O dinheiro pesa mais do que o sol
com brilho igual. Sob o risco de parecer frágil, o caixote da dúvida será
aparafusado com ternura. Não se tomará nenhuma precaução para o transporte e os
pontapés das estações não danificarão senão às maravilhas. A parte menos bonita
do salão será reservada para os navios que emolduram de laca as auriflamas
apergaminhadas. Mas sobre a precisão dos males, ninguém encontrará o que
criticar quando os martelos emborrachados saltarem de barra em barra nas
gaiolas e que os cometas brancos tomarão uma pitada de enxofre para morrer.
O JOGO DE BARRAS…
O jogo de barras é vento sempre o vento que desce dos cumes. Barras
fixas as neves eternas. Mas tu que assobias, trem que não é mais o vento e que
não é no entanto o contrário do vento, qual é teu jogo, mostra-me teu jogo! Eu
parei de trapacear com as partidas; eu me destino à amarelinha. Estou bem
lembrado de uma jangada que pensava, sim, uma jangada, tão real quanto o
cordeiro pascal está morto e que os rebanhos que se leva ao abate são marcados
com uma coroa azul e vermelha. Coroa sem enterro e sem flores, eu te ponho
sobre minha cabeça. Faz frio esta noite à Rue Fontaine e se continuarmos a não
tomar mais precauções comigo, vou morrer. O jogo de barras retoma: agora o
noivado está terminado. Um homem faz meia volta e parte correndo: sou eu quem
vi. Quem me persegue? Eu não conheço o medo e eu fujo. Minha sombra me
distancia. Por montanhas e vales sou eu, é o vento que está em mim. As paixões
formam as grandes extensões de linho que seca ao ar livre: algumas estão
estendidas sobre a grama; há outras nas quais o vento se engolfa. Um vilarejo,
dois vilarejos, o vento faz cornetas com o papel, com o céu, com as flores
brancas, sim realmente com as flores brancas, o vento que está em mim me faz
surpresas. Surpreso do amor, surpreso de minha relativa juventude, surpreso da
pegada dos meus passos na lama. A rigor eu agito também meu lenço, mas o
enterro se abala tão lentamente. E meu orgulho apaga os postes de luz. Cinco
horas da manhã. O vento. O vento opera nos hospitais do dia, em grande avental.
O vento faz a roda nos jardins do pavão. O vento quer meu medo para lhe fazer
flutuar.
Eu vi um galo que tinha um leque em lugar da crina, um cavalo que tinha
uma colher em lugar da crista, eu vi um homem que tinha uma laranja em uma mão.
Ele se preparava mesmo para comê-la. Eu não tive senão tempo de lhe impedir. O
galo montou então sobre o cavalo e este partiu a galope. Não se deve acreditar
em presságios. Então eu, que não carrego ordinariamente binóculos, não ficaria
surpreso se os binóculos me carregassem: por exemplo, a imaginação e a memória.
Eu já estive várias vezes a ponto de me suicidar, mas a música coloca água no
vinho terrível dos bons modos. Eu me apliquei uma concha contra o ouvido e
esperei matar o som do mar comigo, aplicando em seguida o cano de meu revólver
contra a concha. Bom que não, todavia eu não estava pronto para um brinco de
coral. Outra vez eu absorvi da beladona, mas me safei com um colar de pérolas
de um preço imenso que dei de presente à primeira que vi. Eu não sou mais
supersticioso. Se eu encontro um molho de chaves, eu não vou imediatamente
tocar um padre. Eu estava muito vivamente interessado na minha infância por uma
espécie de baixo-relevo ignobilmente emoldurado e intitulado A Rinha, mas
quando por descuido, avançando sobre a ponta dos pés, uma borboleta à ponta de
cada índice erguido como os chineses, eu derrubo como por descuido de uma topada
de joelho uma mesa posta, eu não posso dar parte de meu espanto antigo a esta
perfeita mistificação.
PELO FRIO…
Pelo frio, nas Ardenas mentirosas onde se dilaceram as serapilheiras, o
lobo branco retorna a todas as vidraças de quiosques. Ele fica muito tempo sem
se mover, a cauda como esses ramos de samambaias que chegam em caixas de
salmão. O parque iluminado a giorno
sobe com a graça dos subterrâneos, mandando beijos e milagres. Sem pátria, tu
vais beber às nervuras dos telhados o grande licor da tempestade no inverno. Ao
longe, pelas praias, os homens em traje de noite hesitam sobre o partido a
tomar. O curso dos sonhos, modificado pela nova circulação do sangue, se presta
às exigências do condutor. Vai me buscar esta carta que espero, se bem que faça
melhor tempo que ano passado. Os sopradores na vidraria preparam as futuras
mulheres grávidas. Os temerosos açúcares de cevada alternam com os números
perdedores. Malgrado o olho e as munições do tédio, a indiferença pendura
indefinidamente sua roupa nos azulejos das cozinhas. Uma ratoeira ordena
incredulidade. A revolta faz brilhar os cabelos das forquilhas.
OS SUPLÍCIOS PREGUIÇOSOS…
Os suplícios preguiçosos miram as mulheres loiras que têm o sol por
caroço. Meio-dia, missa nas garrafas de pele esticada. O bôer, Praça da
República, acaricia os leões que choram. A tábua faz um som muito grave para
que eu vos adiante um aquecedor. A traseira do canal é visitada pela cor dos
álamos. Sobre as velhas a horas que badalaram os bailes de periferia, as vagas
de renda moldada se arrebentam, o verniz do pântano praticamente seco. No mais
profundo das capotas dos veículos,
sob a chuva que frisa, os pássaros de pérolas fazem seus ninhos. Quanto, de bochecha
em chamas, a rapariga recolhe os relógios sob os canteiros, temos o prazer de
lhe assustar, por nada além desta sarabanda. O caso dos dias, pavilhão à venda,
rosácea de gerânio, merece uma vista-d’olhos. À sombra dos cinquenta degraus do
alpendre, a imagem das pedras seduz as lesmas do telégrafo. O querubim pula
corda no morteiro de ocasião. Todas as espécies de sondagens foram abandonadas
na propriedade, depois da descoberta do carbureto de cálcio no pomar florido.
Tu és grave na graça absoluta de ser mais delicada
Que minha tempestade
Onde as árvores estão pintadas nos meus olhos
Árvores maiores que os buquês de violetas
E onde se apoia o tempo dum lampejo a vida de todos os homens
Tu não és a clareira onde tudo se pensa tão bem
O que tu queres dizer à meia voz levanta a mão abaixo bem abaixo do
juramento
Mas os musgos cercam os doces espelhos d’água
Quando és tu dividida através deles
Como as estrelas
Um braço cava na areia aqui onde foi talvez a eternidade
A eternidade se lança à perseguição de meu amor
Ela vai para-la à beira do abismo
Mas não as chuvas todas as chuvas me separam de ti
Eu vou apanhar a luva
A luva que me joga o céu e adoecer para sempre
Na prisão dos meus lábios prisão do sol
prisão do calmo abraço dos habitantes
deste país anormal que acaba por existir
Vai minha estrangeira minha perda do paraíso
Se tu és a cor definitiva que eu dou aos meus dias
Tudo isso que restará sobre o quadro negro
Jamais tu aprenderás o que ele é
Da beleza que as lágrimas mantêm semelhantes a dos feixes de jovens
ervas cortantes
E a barragem de meia-noite romantiza sois vós deste mundo
Me impedirá de conduzir minha sombra pela mão
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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO
1919-2019
Artista convidada: Amirah Gazel (Costa
Rica, 1964)
Poemas traduzidos por Davi Araújo (Brasil, 1979)
Poemas traduzidos por Davi Araújo (Brasil, 1979)
Agulha
Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número
136 | Junho de 2019
editor
geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
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