PEÇA FALSA
A Benjamin Péret.
Do vaso em cristal
de boemia
Do vaso em cris
Do vaso em cris
Do vaso em
Em cristal
Do vaso em cristal
da boêmia
Boêmia
Boêmia
Boêmia
Êmia êmia sim
boêmia
Do vaso em cristal
de Bo Bo
Do vaso em cristal
de boêmia
Com bolhas que
criança você soprava
Cê soprava
Cê soprava
Prava
Prava
Cê soprava
Que criança você
soprava
Do vaso em cristal
de boêmia
Com bolhas que
criança você soprava
Cê soprava
Cê soprava
Sim que criança
você soprava
Está aí está aí
toda a poesia
Ar efêm
Ar efêm
Ar efêmero de
reflexos d’Alva
Ar efêm
Ar efêm
Ar efêmero de
reflexos d’Alva
CARTAS SOBRE AS DUNAS
A Giuseppe Ungaretti.
O horário das
flores cavas e das maçãs do rosto salientes nos convida a deixar os saleiros
vulcânicos pelas banheiras de aves. Sobre uma toalha damada rubra estão
dispostos os dias do ano. O ar não é mais tão puro, a estrada não é mais tão
larga quanto o célebre clarim. Numa valise pintada de grandes versos levamos as
tardes perecíveis que são o lugar dos joelhos sobre a misericórdia. As pequenas
bicicletas cordeadas rodam sobre o balcão. A orelha dos peixes, mais
aforquilhada que a madressilva, escuta descerem os óleos azuis. Entre os
albornozes reluzentes cuja carga se perde nas cortinas, eu reconheço um homem
saído do meu sangue.
TARRAFA INQUEBRÁVEL
A Gala Éluard.
A ronda consuma
nos dormitórios seus ordinários truques de passe-passe. À noite, duas janelas
multicores restam entreabertas. Pela primeira se introduzem os vícios de negras
sobrancelhas, na outra os jovens penitentes vão se pendurar. Nada perturbaria
outrossim a bonita marcenaria do sono. Vêem-se as mãos se cobrirem de mangas
d’água. Nos grandes leitos vazios se enredam espinhos enquanto os travesseiros
flutuam sobre silêncios mais aparentes do que reais. À meia-noite, a câmara
subterrânea se estrela até os teatros de gênero onde as lentes gêmeas têm o
principal papel. O jardim está repleto de timbres niquelados. Há uma mensagem
em lugar de um lagarto sob cada pedra.
Depois das tempestades cercadas de copo, o
relâmpago de armadura turva esta passada silenciosa sob a qual a montanha abre
os olhos mais fascinantes que o Sião, mocinha, adoratriz do país calcado em
teus perfumes, tu vais surpreender o despertar dos pesquisadores num ar
revolucionado pela platina. De longe a estátua rosa que leva ao braço uma sorte
de garrafa fumegante em uma cesta olha por sobre o ombro errarem os velhos
vimeiros e acrobatas. Uma bela galera de artistas em que as zebras azuis,
fustigadas pelos suspiros que se enrolam à noite ao redor das árvores, executam
sem fim seu número! Estupendos feixes, formados à beira das rotas com bobinas
de azul e o telégrafo, respondem por tua segurança. Aqui, na luz profana, os
seios eclodem sob um globo de orvalho e te abandonando à corrediça infinita,
através dos bambus frios tu verás passar o Príncipe Vândalo. A ocasião queimará
aos quatro ventos de enxofre, de cádmio, de sal e de Bengala. A bombice de
cabeça humana sufocará pouco a pouco os arlequins malditos e as grandes
catástrofes ressuscitarão trouxe-mouxe para se reabsorver no anel de engaste
vazio que eu te dei e que te matará.
NÃO HÁ COMO SAIR DAQUI
A Paul Éluard.
Liberdade cor de homem
Quais bocas voarão em lascas
Telhas
Sob o impulso desta vegetação monstruosa
O sol cão poente
Abandona a varanda de um rico hotel
particular
Lento peito azul onde bate o coração do tempo
Uma jovem nua nos braços de um dançarino belo
e encouraçado como São Jorge
Mas isso é muito mais tarde
Frágeis Atlantes
*
Ribeirão de estrelas
Quem entranha os sinais de pontuação do meu
poema e daqueles dos meus amigos
Não devemos olvidar que a essa liberdade e a
ti eu vos tirara à curta palha
Se é ela que eu conquistei
Qual outra senão tu chega deslizando ao longo
duma corda de geada
Este explorador em luta com as formigas
rubras de seu próprio sangue
É até o fim o mesmo mês do ano
Perspectiva que permite julgar se lidamos com
almas ou não
19.. Um tenente de artilharia espera sobre um
rastro de pólvora
*
Tão bem o primeiro que veio
Inclinou-se sobre o oval do desejo interior
Enumera estes arbustos segundo o verme
luzente
Conforme vós estendeis a mão para fazer a
árvore ou antes de fazer o amor
Como qualquer um sabe
No outro mundo que não existirá
Eu te vejo branco e elegante
Os cabelos das mulheres têm o cheiro da folha
de acanto
Ó vidraças sobrepostas do pensamento
Na terra de vidro se agitam os esqueletos de
vidro
*
Todo mundo já ouviu falar da Balsa da Medusa
E pode a rigor conceber um equivalente dessa
balsa no céu
À VISTA DAS DIVINDADES
A Louis Aragon.
“Pouco antes da meia-noite perto do
desembarcadouro,
Se uma mulher descabelada te segue não te
preocupes,
É o azul. Tu nada tens que temer do azul.
Haverá um grande vaso loiro em uma árvore.
O campanário do vilarejo das cores fundidas
Te servirá de ponto de referência. Toma teu
tempo,
Lembra-te. O gêiser pardo que lança ao céu os
rebentos de samambaia
Te saúda.”
A carta selada com três cantos de um peixe
Passava agora na luz dos subúrbios
Como uma insígnia de domador.
De resto
A bela, a vítima, aquela a que chamamos
No bairro a pequena pirâmide de resedá
Descosia só para ela uma nuvem similar
A um saquinho de piedade.
Mais tarde a armadura branca
Que vagava em cuidados domésticos e outros
Agarrando mais forte à sua vontade que nunca,
A criança à concha, aquela que devia ser…
Mas silêncio.
Um braseiro já dava ensejo
Em seu seio a um arrebatador romance de capa
E espada.
Sobre a ponte, na mesma hora,
Assim o rocio de cabeça de gata se berçou.
A noite, – e as ilusões seriam perdidas.
Eis os Padres brancos que retornam de
vésperas
Com a imensa chave pendurada acima deles,
Eis os arautos grises; eis enfim sua carta
Ou sua lábia: meu coração é um cuco para
Deus.
Mas ao tempo em que ela fala, não resta senão
um muro
Batendo em um túmulo como um véu beija.
A Eternidade procura um relógio de pulso
Pouco antes da meia-noite perto do
desembarcadouro.
A Francis Picabia.
Sob a mesa dos passos que reavêm a noite uma torre habitada pelos signos
misteriosos em número de onze
A neve que eu pego
em minha mão e que derrete
Esta neve que adoro
feita de sonhos e eu sou um desses sonhos
Eu que não concedo
ao dia e à noite mais do que a estrita juventude necessária
Esses são dois
jardins em que passeiam minhas mãos que não têm nada para fazer
E enquanto os onze
signos repousam
Eu tomo parte no
amor que é uma mecânica de cobre e de prata na sebe
Eu sigo uma das
engrenagens mais delicadas do amor terrestre
E o amor terrestre
esconde os outros amores
À maneira dos
signos que me escondem o espírito
Um golpe de faca
perdida assovia ao ouvido do passeador
Eu desfiz o céu
como um leito maravilhoso
Meu braço pende do
céu com um terço de estrelas
Que descende de dia
em dia
E cuja primeira
conta vai desaparecer no mar
No lugar das minhas
cores vivazes
Não haverá em breve
mais do que neve sobre o mar
O signos aparecem à
porta
Eles são de onze
cores diferentes e suas dimensões respectivas
vos fariam morrer de dó
Um deles é obrigado
a se abaixar e a cruzar os braços para adentrar a torre
Eu ouço outro que
queima em uma região próspera
E este à cavalo
sobre a indústria a rara indústria montanhosa
Semelhante à onagra
que se nutre de trutas
Os cabelos os
longos cabelos malhados
Caracterizam o
signo que leva o escudo duplamente ogival
É preciso
desconfiar da ideia de que rolam as torrentes
Minha construção
minha bela construção página a página
Casa insensatamente
envidraçada a céu aberto a sol aberto
É uma falha no
rochedo suspendido pelos anéis na haste do mundo
É uma cortina
metálica que se abaixa sobre as inscrições divinas
Que vós não sabeis
mais ler
Os signos jamais
afetaram senão a mim
Eu tenho origem na
desordem infinita das preces
Eu vivo e eu morro
de um lado ao outro desta linha
Esta linha
estranhamente medida que religa meu coração ao parapeito de vossa janela
Eu me correspondo
por ela com todos os prisioneiros do mundo
ANTES A VIDA
Antes a vida que esses prismas sem espessura
mesmo se as cores são mais puras
Antes que esta hora sempre coberta que esses
terríveis carros flamas frias
Que essas pedras passas
Antes este coração retrátil
Que este mar aos murmúrios
E que esta estofa branca que canta ao mesmo
tempo no ar e na terra
Que esta bendição nupcial que une minha testa
àquela da vaidade total
Antes a
vida
Antes a vida com seus trapos conjuratórios
Suas cicatrizes d’evasão
Antes a vida antes esta rosácea sobre minha
tumba
A vida da presença nada além da presença
Onde uma voz diz Estás aí onde a outra
responde Estás aí
Eu não tenho estado, é pena
E portanto quando nos faríamos o jogo de que
nos fazemos morrer
Antes a
vida
Antes vida antes a vida Infância venerável
O laço que parte dum faquir
Semelhante ao deslizar do mundo
O sol bem pode não ser senão um destroço
Por pouco que o corpo da mulher se lhe
assemelhe
Tu sonhas contemplando a trajetória toda de
longo
Ou somente fechando os olhos sobre a tormenta
adorável que denomina tua mão
Antes a
vida
Antes a vida com suas salas de espera
Em que se sabe que não seremos jamais
introduzidos
Antes a vida que esses estabelecimentos
termais
Onde o serviço é feito pelos colares
Antes a vida desfavorável e longa
Quando os livros se fechariam cá em secções
menos doces
E quando lá lhe faria melhor do que melhor
faria livre pois
Antes a
vida
Antes a vida como fundo de desdém
A esta cabeça suficientemente bela
Como o antídoto a esta perfeição que ela
chama e que ela teme
A vida o fardo de Deus
A vida como um passaporte virgem
Uma pequena vila como Pont-à-Mousson
E como tudo já foi dito
Antes a
vida
A Raymond Roussel.
Nós o pão seco e a água nas prisões do céu
Nós os pavimentos do amor todos sinais
interrompidos
Que personificamos as graças deste poema
Nada nos exprime para além da morte
A esta hora em que a noite para sair põe suas
botinas envernizadas
Nós pegamos o tempo como ele vem
Como um muro contíguo àquele de nossas
prisões
As aranhas fazem entrar o barco na enseada
Não há o que tocar não há nada para ver
Mais tarde vós aprendereis quem nós somos
Nossos trabalhos são contudo bem defendidos
Mas é a alba da última costa o tempo se gasta
Logo nós levaremos alhures nosso luxo
embaraçoso
Nós levaremos alhures o luxo da peste
Nós um pouco de geleia branca sobre os fardos
humanos
E isso é tudo
A aguardente trata as feridas em um jazigo
pelo exaustor
do qual se percebe uma rota bordeada de
grandes paciências vazias
Não pergunteis onde vós estais
Nós o pão seco e a água nas prisões do céu
O jogo de cartas à bela estrela
Nós levantamos apenas um canto do véu
O remendão de faiança trabalha sobre uma
escala
Ele parece jovem a despeito da concessão
Nós portamos seu luto em amarelo
O pacto não está ainda assinado
As irmãs de caridade provocam
Ao horizonte das fugas
Talvez atenuemos nós de uma vez o mal e o bem
É assim que a vontade dos sonhos se faz
Gentes que poderíeis
Nossos rigores se perdem no remorso dos
esmigalhamentos
Nós somos as vedetes da sedução mais terrível
As presas da amarrotada Manhã sobre greis
floridas
Nos atiramos ao furor dos tesouros com dentes
longos
Não ajunteis nada à vergonha de vosso próprio
perdão
Já basta que de armar para um fim sem fundo
Vossos olhos de suas lágrimas ridículas que
nos aliviam
O ventre das palavras é dourado esta noite e
nada mais é em vão
TORNASSOL
A Pierre Reverdy.
A viajante que
atravessa as Halles ao cair do verão
Marchava sobre
a ponta dos pés
O desespero
rolava ao céu os seus grandes arãos tão belos
E na bolsa de
mão havia meu sonho esse frasco de sais
Que sozinha
respira a madrinha de Deus
Os torpores se
espalhavam como vapor
Pelo Cão que
Fuma
Onde acabava de
entrar o pró e o contra
A jovem mulher
não podia ser vista por eles senão mal e de viés
Tinha eu de
lidar com a embaixatriz do salitre
Ou da curva branca
em fundo preto que chamamos pensamento
Os lampiões
prenderam fogo lentamente nas castanheiras
A dama sem
sombra se ajoelhou sobre a Ponte ao Câmbio
Rua
Jaz-o-Coração os timbres não eram mais os mesmos
As promessas
das noites estavam enfim realizadas
Os pombos de
corrida os beijos de segurança
Se juntaram aos
seios da bela desconhecida
Dardejados sob
o crepe das significações perfeitas
Uma fazenda
prosperou em plena Paris
E suas janelas
davam sobre a via láctea
Mas ninguém a
habitou ainda por causa dos sobrevindos
Dos sobrevindos
que se sabe mais devotos que os revindos
Alguns como
esta mulher têm o ar de nadar
E no amor entra
um pouco da sua substância
Ela os
interioriza
Eu não sou o
brinquedo d’alguma potência sensorial
E no entanto o
grilo que cantava nos cabelos de cinza
Uma noite perto
da estátua de Étienne Marcel
Me atirou um
golpe de vista de inteligência
André Breton
ele disse passa
*****
EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO
1919-2019
Artista convidada: Amirah Gazel (Costa
Rica, 1964)
Poemas traduzidos por Davi Araújo (Brasil, 1979)
Poemas traduzidos por Davi Araújo (Brasil, 1979)
Agulha
Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número
136 | Junho de 2019
editor
geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
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assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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Edições © 2019
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