sexta-feira, 14 de junho de 2019

ANDRÉ BRETON 1923 CLARO DE TERRA


PEÇA FALSA

A Benjamin Péret.

Do vaso em cristal de boemia
Do vaso em cris
Do vaso em cris
Do vaso em
Em cristal
Do vaso em cristal da boêmia
Boêmia
Boêmia
Boêmia
Êmia êmia sim boêmia
Do vaso em cristal de Bo Bo
Do vaso em cristal de boêmia
Com bolhas que criança você soprava
Cê soprava
Cê soprava
Prava
Prava
Cê soprava
Que criança você soprava
Do vaso em cristal de boêmia
Com bolhas que criança você soprava
Cê soprava
Cê soprava
Sim que criança você soprava
Está aí está aí toda a poesia
Ar efêm
Ar efêm
Ar efêmero de reflexos d’Alva
Ar efêm
Ar efêm
Ar efêmero de reflexos d’Alva


CARTAS SOBRE AS DUNAS

A Giuseppe Ungaretti.

O horário das flores cavas e das maçãs do rosto salientes nos convida a deixar os saleiros vulcânicos pelas banheiras de aves. Sobre uma toalha damada rubra estão dispostos os dias do ano. O ar não é mais tão puro, a estrada não é mais tão larga quanto o célebre clarim. Numa valise pintada de grandes versos levamos as tardes perecíveis que são o lugar dos joelhos sobre a misericórdia. As pequenas bicicletas cordeadas rodam sobre o balcão. A orelha dos peixes, mais aforquilhada que a madressilva, escuta descerem os óleos azuis. Entre os albornozes reluzentes cuja carga se perde nas cortinas, eu reconheço um homem saído do meu sangue.


TARRAFA INQUEBRÁVEL

A Gala Éluard.

A ronda consuma nos dormitórios seus ordinários truques de passe-passe. À noite, duas janelas multicores restam entreabertas. Pela primeira se introduzem os vícios de negras sobrancelhas, na outra os jovens penitentes vão se pendurar. Nada perturbaria outrossim a bonita marcenaria do sono. Vêem-se as mãos se cobrirem de mangas d’água. Nos grandes leitos vazios se enredam espinhos enquanto os travesseiros flutuam sobre silêncios mais aparentes do que reais. À meia-noite, a câmara subterrânea se estrela até os teatros de gênero onde as lentes gêmeas têm o principal papel. O jardim está repleto de timbres niquelados. Há uma mensagem em lugar de um lagarto sob cada pedra.


ENCONTRO

Depois das tempestades cercadas de copo, o relâmpago de armadura turva esta passada silenciosa sob a qual a montanha abre os olhos mais fascinantes que o Sião, mocinha, adoratriz do país calcado em teus perfumes, tu vais surpreender o despertar dos pesquisadores num ar revolucionado pela platina. De longe a estátua rosa que leva ao braço uma sorte de garrafa fumegante em uma cesta olha por sobre o ombro errarem os velhos vimeiros e acrobatas. Uma bela galera de artistas em que as zebras azuis, fustigadas pelos suspiros que se enrolam à noite ao redor das árvores, executam sem fim seu número! Estupendos feixes, formados à beira das rotas com bobinas de azul e o telégrafo, respondem por tua segurança. Aqui, na luz profana, os seios eclodem sob um globo de orvalho e te abandonando à corrediça infinita, através dos bambus frios tu verás passar o Príncipe Vândalo. A ocasião queimará aos quatro ventos de enxofre, de cádmio, de sal e de Bengala. A bombice de cabeça humana sufocará pouco a pouco os arlequins malditos e as grandes catástrofes ressuscitarão trouxe-mouxe para se reabsorver no anel de engaste vazio que eu te dei e que te matará.


NÃO HÁ COMO SAIR DAQUI

A Paul Éluard.

Liberdade cor de homem
Quais bocas voarão em lascas
Telhas
Sob o impulso desta vegetação monstruosa

O sol cão poente
Abandona a varanda de um rico hotel particular

Lento peito azul onde bate o coração do tempo

Uma jovem nua nos braços de um dançarino belo e encouraçado como São Jorge
Mas isso é muito mais tarde
Frágeis Atlantes

*

Ribeirão de estrelas
Quem entranha os sinais de pontuação do meu poema e daqueles dos meus amigos
Não devemos olvidar que a essa liberdade e a ti eu vos tirara à curta palha
Se é ela que eu conquistei
Qual outra senão tu chega deslizando ao longo duma corda de geada

Este explorador em luta com as formigas rubras de seu próprio sangue
É até o fim o mesmo mês do ano
Perspectiva que permite julgar se lidamos com almas ou não
19.. Um tenente de artilharia espera sobre um rastro de pólvora

*

Tão bem o primeiro que veio
Inclinou-se sobre o oval do desejo interior
Enumera estes arbustos segundo o verme luzente
Conforme vós estendeis a mão para fazer a árvore ou antes de fazer o amor

Como qualquer um sabe

No outro mundo que não existirá
Eu te vejo branco e elegante
Os cabelos das mulheres têm o cheiro da folha de acanto
Ó vidraças sobrepostas do pensamento
Na terra de vidro se agitam os esqueletos de vidro

*

Todo mundo já ouviu falar da Balsa da Medusa
E pode a rigor conceber um equivalente dessa balsa no céu


À VISTA DAS DIVINDADES

A Louis Aragon.

“Pouco antes da meia-noite perto do desembarcadouro,
Se uma mulher descabelada te segue não te preocupes,
É o azul. Tu nada tens que temer do azul.
Haverá um grande vaso loiro em uma árvore.
O campanário do vilarejo das cores fundidas
Te servirá de ponto de referência. Toma teu tempo,
Lembra-te. O gêiser pardo que lança ao céu os rebentos de samambaia
Te saúda.”
A carta selada com três cantos de um peixe
Passava agora na luz dos subúrbios
Como uma insígnia de domador.
De resto
A bela, a vítima, aquela a que chamamos
No bairro a pequena pirâmide de resedá
Descosia só para ela uma nuvem similar
A um saquinho de piedade.
Mais tarde a armadura branca
Que vagava em cuidados domésticos e outros
Agarrando mais forte à sua vontade que nunca,
A criança à concha, aquela que devia ser…
Mas silêncio.
Um braseiro já dava ensejo
Em seu seio a um arrebatador romance de capa
E espada.
Sobre a ponte, na mesma hora,
Assim o rocio de cabeça de gata se berçou.
A noite, – e as ilusões seriam perdidas.

Eis os Padres brancos que retornam de vésperas
Com a imensa chave pendurada acima deles,
Eis os arautos grises; eis enfim sua carta
Ou sua lábia: meu coração é um cuco para Deus.

Mas ao tempo em que ela fala, não resta senão um muro
Batendo em um túmulo como um véu beija.
A Eternidade procura um relógio de pulso
Pouco antes da meia-noite perto do desembarcadouro.



MIL E MIL VEZES

A Francis Picabia.

Sob a mesa dos passos que reavêm a noite uma torre habitada pelos signos misteriosos em número de onze
A neve que eu pego em minha mão e que derrete
Esta neve que adoro feita de sonhos e eu sou um desses sonhos
Eu que não concedo ao dia e à noite mais do que a estrita juventude necessária
Esses são dois jardins em que passeiam minhas mãos que não têm nada para fazer
E enquanto os onze signos repousam
Eu tomo parte no amor que é uma mecânica de cobre e de prata na sebe
Eu sigo uma das engrenagens mais delicadas do amor terrestre
E o amor terrestre esconde os outros amores
À maneira dos signos que me escondem o espírito
Um golpe de faca perdida assovia ao ouvido do passeador
Eu desfiz o céu como um leito maravilhoso
Meu braço pende do céu com um terço de estrelas
Que descende de dia em dia
E cuja primeira conta vai desaparecer no mar
No lugar das minhas cores vivazes
Não haverá em breve mais do que neve sobre o mar
O signos aparecem à porta
Eles são de onze cores diferentes e suas dimensões respectivas  vos fariam morrer de dó
Um deles é obrigado a se abaixar e a cruzar os braços para adentrar a torre
Eu ouço outro que queima em uma região próspera
E este à cavalo sobre a indústria a rara indústria montanhosa
Semelhante à onagra que se nutre de trutas
Os cabelos os longos cabelos malhados
Caracterizam o signo que leva o escudo duplamente ogival
É preciso desconfiar da ideia de que rolam as torrentes
Minha construção minha bela construção página a página
Casa insensatamente envidraçada a céu aberto a sol aberto
É uma falha no rochedo suspendido pelos anéis na haste do mundo
É uma cortina metálica que se abaixa sobre as inscrições divinas
Que vós não sabeis mais ler
Os signos jamais afetaram senão a mim
Eu tenho origem na desordem infinita das preces
Eu vivo e eu morro de um lado ao outro desta linha
Esta linha estranhamente medida que religa meu coração ao parapeito de vossa janela
Eu me correspondo por ela com todos os prisioneiros do mundo


ANTES A VIDA

Antes a vida que esses prismas sem espessura mesmo se as cores são mais puras
Antes que esta hora sempre coberta que esses terríveis carros flamas frias
Que essas pedras passas
Antes este coração retrátil
Que este mar aos murmúrios
E que esta estofa branca que canta ao mesmo tempo no ar e na terra
Que esta bendição nupcial que une minha testa àquela da vaidade total
Antes a vida

Antes a vida com seus trapos conjuratórios
Suas cicatrizes d’evasão
Antes a vida antes esta rosácea sobre minha tumba
A vida da presença nada além da presença
Onde uma voz diz Estás aí onde a outra responde Estás aí
Eu não tenho estado, é pena
E portanto quando nos faríamos o jogo de que nos fazemos morrer
Antes a vida

Antes vida antes a vida Infância venerável
O laço que parte dum faquir
Semelhante ao deslizar do mundo
O sol bem pode não ser senão um destroço
Por pouco que o corpo da mulher se lhe assemelhe
Tu sonhas contemplando a trajetória toda de longo
Ou somente fechando os olhos sobre a tormenta adorável que denomina tua mão
Antes a vida
Antes a vida com suas salas de espera
Em que se sabe que não seremos jamais introduzidos
Antes a vida que esses estabelecimentos termais
Onde o serviço é feito pelos colares
Antes a vida desfavorável e longa
Quando os livros se fechariam cá em secções menos doces
E quando lá lhe faria melhor do que melhor faria livre pois
Antes a vida

Antes a vida como fundo de desdém
A esta cabeça suficientemente bela
Como o antídoto a esta perfeição que ela chama e que ela teme
A vida o fardo de Deus
A vida como um passaporte virgem
Uma pequena vila como Pont-à-Mousson
E como tudo já foi dito
Antes a vida


LINHA QUEBRADA

A Raymond Roussel.

Nós o pão seco e a água nas prisões do céu
Nós os pavimentos do amor todos sinais interrompidos
Que personificamos as graças deste poema
Nada nos exprime para além da morte
A esta hora em que a noite para sair põe suas botinas envernizadas
Nós pegamos o tempo como ele vem
Como um muro contíguo àquele de nossas prisões
As aranhas fazem entrar o barco na enseada
Não há o que tocar não há nada para ver
Mais tarde vós aprendereis quem nós somos
Nossos trabalhos são contudo bem defendidos
Mas é a alba da última costa o tempo se gasta
Logo nós levaremos alhures nosso luxo embaraçoso
Nós levaremos alhures o luxo da peste
Nós um pouco de geleia branca sobre os fardos humanos
E isso é tudo
A aguardente trata as feridas em um jazigo pelo exaustor
do qual se percebe uma rota bordeada de grandes paciências vazias
Não pergunteis onde vós estais
Nós o pão seco e a água nas prisões do céu
O jogo de cartas à bela estrela
Nós levantamos apenas um canto do véu
O remendão de faiança trabalha sobre uma escala
Ele parece jovem a despeito da concessão
Nós portamos seu luto em amarelo
O pacto não está ainda assinado
As irmãs de caridade provocam
Ao horizonte das fugas
Talvez atenuemos nós de uma vez o mal e o bem
É assim que a vontade dos sonhos se faz
Gentes que poderíeis
Nossos rigores se perdem no remorso dos esmigalhamentos
Nós somos as vedetes da sedução mais terrível
As presas da amarrotada Manhã sobre greis floridas
Nos atiramos ao furor dos tesouros com dentes longos
Não ajunteis nada à vergonha de vosso próprio perdão
Já basta que de armar para um fim sem fundo
Vossos olhos de suas lágrimas ridículas que nos aliviam
O ventre das palavras é dourado esta noite e nada mais é em vão


TORNASSOL

A Pierre Reverdy.

A viajante que atravessa as Halles ao cair do verão
Marchava sobre a ponta dos pés
O desespero rolava ao céu os seus grandes arãos tão belos
E na bolsa de mão havia meu sonho esse frasco de sais
Que sozinha respira a madrinha de Deus
Os torpores se espalhavam como vapor
Pelo Cão que Fuma
Onde acabava de entrar o pró e o contra
A jovem mulher não podia ser vista por eles senão mal e de viés
Tinha eu de lidar com a embaixatriz do salitre
Ou da curva branca em fundo preto que chamamos pensamento
Os lampiões prenderam fogo lentamente nas castanheiras
A dama sem sombra se ajoelhou sobre a Ponte ao Câmbio
Rua Jaz-o-Coração os timbres não eram mais os mesmos
As promessas das noites estavam enfim realizadas
Os pombos de corrida os beijos de segurança
Se juntaram aos seios da bela desconhecida
Dardejados sob o crepe das significações perfeitas
Uma fazenda prosperou em plena Paris
E suas janelas davam sobre a via láctea
Mas ninguém a habitou ainda por causa dos sobrevindos
Dos sobrevindos que se sabe mais devotos que os revindos
Alguns como esta mulher têm o ar de nadar
E no amor entra um pouco da sua substância
Ela os interioriza
Eu não sou o brinquedo d’alguma potência sensorial
E no entanto o grilo que cantava nos cabelos de cinza
Uma noite perto da estátua de Étienne Marcel
Me atirou um golpe de vista de inteligência
André Breton ele disse passa



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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Amirah Gazel (Costa Rica, 1964)
Poemas traduzidos por Davi Araújo (Brasil, 1979)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 136 | Junho de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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