sexta-feira, 14 de junho de 2019

ANDRÉ BRETON 1911–1919 ESPARSOS E INÉDITOS I


A SAXÔNIA FINA

Entristece-me ao presente ter-te como rival,
Inquietude, que sabes de poda num gesto herbáceo
Banir do teu ramalhete o remorso e a dúvida
Ou que negligente trances d’ouro teus cabelos
E bela entre as flores queiras todos colhê-los!
Minh’alma ao seu socorro, se te chama, é ouvida?
Sobre as cinzas, se quiseres, da pobreza de morada,
Ambos saberemos bem como edificar ali um palácio
De onde nós rechaçaremos a quimera amarga...


O SONHO

Por vezes, ao despertar, por uma manhã que passa,
Sentimos nós no coração uma recordação gravada;
O fato nos está distante; diríamos que se esfumaça...
Evocamo-lo um instante e dizemos: “Eu sonhava...”

Um sonho é um mergulhado olhar no absoluto...
Qualquer coisa de azul como um canto de lenda...
Uma joia assaz brilhante que o dia põe no escuro...
Pode ser esse o só fruto que o dia nos defenda...

És tu, triste Noite, quando desces sobre a terra,
Quem de teu carro atiras essa bela areia de ouro
Por sobre esse pensar que sempre solitário erra,
A sacudir no ar o teu rasgado manto em couro?

Ou disso em vez não fosse a voz de um querubim
A embalar nosso sono nessas canções sufocadas...
Tão imbecis... que escapariam pela manhã, assim,
Arrebatando-nos vis dos nossos contos de fadas?

Setembro de 1911.



...ENQUANTO DORME TUDO

No salão do meu devaneio, enquanto dorme tudo,
À noite, minha lâmpada arde em silêncios pesados
E verte em suas claridades as papoulas de veludo
Malva, que desfolha um abajur de bordados.

Um retrato de mulher, na parede, amua-se
Só, à sombra, e seu olhar, seu olhar d’ausência vago
É de um azul velado que algo além nuance:
O azul dos reflexos de lua sobre um lago.

Monótono, o esquecimento ritma a breve canção
Da hora. Sobre o console vê-se, a pender na direção
Do edelvais marcador amarelo dum livro de poesia
O anjo da memória, em mármore branco, que fantasia...

Sempre a lembrança de chagas perdoadas
Dum mármore apenas tíbio de vãos grisos
E a mesma folha, com o outono, aos frisos
Por entre ouros velhos e rosas desbotadas!

Fevereiro de 1913.


RONDÓ

Malva procissão deste anoitecer
No embrumado poente das épocas;
Ao redor do coração, auras equívocas,
Como ao pé do solar por esquecer,

Vão, da Esperança, as gentes crédulas,
Séquito que tristemente evoco a volver:
Malva procissão deste anoitecer
No embrumado poente das épocas.

Vão, meio cabisbaixas... das auréolas,
Olhares de desafio e lábios a escarnecer;
Branco cortejo espectral a se esclarecer
Ao longo dos muros da Dúvida às trevas:
Malva procissão deste anoitecer.

Março de 1913.


RETRATO ESTRANHO

O grande vento acalmou da queda uma a uma
De suas ilusões, sem as hachuras dardejadas
Do velho outono, ao redor de sua face enrugada,
Fez rodopiar o voo das mágoas noturnas.

Seu olhar azul, que dissipa o tédio de um dia brando,
Fugira à falsa alvorada e ao poente que se maqueia
Onde, outrora, houvera sido visto se atardando
A corroer os muros do Real que nos rodeia.

Sua alma, onde por vezes a branca piedade vela,
É como uma paisagem de inverno que congela,
Em seus enlevados lábios, a palavra emudecida.

Tal ele anda diante de si sem ver. Todavia,
Jovem, acreditava ele no amor e na vida
E por muito tempo o fez sonhar a poesia...

Junho de 1913.


 [DOS TERRAÇOS DO SONHO]

As garotas de olhos vendados
Procuram pelos seus fados...

M. MAETERLINCK

Dos terraços do Sonho com rosas transbordantes
Donde nossas vozes sem eco queriam lhes chamar,
Nós vemos partir, de coração inconsolado,
As lendárias princesas em antigos parques errantes.

Ah! que de esperanças vãs se ferem os confiantes!
...As belas, pensamos nós, cansadas de se exilar,
Que voltarão uma noite ao nosso portão trancado...
São elas no entanto que serão nossas amantes...

Já seu coração duvida e seu olhar tão atraente
Parece sondar o azul como se, vagamente,
Elas soubessem que no céu sem estrela e sem lua

Seu destino vela, obscuro como um astro ignorado...
Choremos... Por entre a treva triste, se dessa Uma
O rumo na noite verde ia eternamente extraviado!

31 de julho de 1913.


COR DA HORA

Antes que ao só fulgor do sonho que a doura
— Galera sem remadores, sem leme nau —,
No brumoso olvido desta hora ainda escura,
Se quiseres, raptor de claridades ao Vitral
Que por lha figurar num instante se colora,
Vou por distração pintar-te um leque oriental
Para que a lembrança dos paraísos que se evade
Entretenha em teu coração uma mística flama
E para que então do vitral tu sintas a claridade
Se alastrar docemente sem reflexos por tua alma.

Olha:
Eu quis que através
Das folhas, algo de ouro entre os ramos das árvores,
Tais quais ante o crepúsculo da hora,
De claros instantes memoráveis.

Os outros têm juncado as alas,
Sabe-se amiúde acariciadas de belo sol que, mortas,
Elas são como os minutos em alas
Que um vento leva diante da porta.
Deste monte de folhas mortas,
Todo contra uma árvore,
Fiz a plataforma corrediça
De um mármore
E para que a deusa nua,
Da qual, ao menor sopro de brisa,
Pode se quebrar
A estatueta,
Não seja por Outros reconhecida,
Fiz de seu nome no mármore apagar
As letras.

Não é assim por Elas que uma nua deusa
Cujo orgulhoso olhar se perde
Vendo a lúgubre fonte de bronze verde
D’onde já não se verte
O jato d’água fleuma
Que, farto d’haver tentado a impossível ascensão,
Recaía como uma desilusão
Que a rejorrar subira
Em feixe brilhante
Até o tenro azul, às manhãs de ontem,
Branco como uma alma que aspira! –
... Após isso,
Em harmonia
Com um supremo e vago remorso
E os ouros com sono
Que semeia o outono,
O tisnado bronze
E o mármore exangue,
Eu sombreei a cercania
De outras nuances de agonia...
Vê como tenho, de azuis fanados,
De lívidos lilás,
Sabido esbater os longes do parque abandonado;
Depois, ainda mais para lá,
Vê se degradar, ao dia que finda,
Quase irreal,
O céu que eu desejei de um malva essencial.

Perdão, querida, por me ter em meu sonho exilado
E ter, sem suficiente receio de que não te satisfizesses,
Pintado-te neste leque um velho parque desolado
Em lugar de um Trianon ou de um jardim Luís XVI.

(Leque à Srta. Manon L. G.)
Setembro de 1913.


RENDEIRAS

Bolha, renda. “Tinha
Você preso o babado?”
Amuado teu laureado,
Suspira, Chiquinha.

Sua mão branca de viés
Para ti, botija que lambas
Ou rosa d’agulha através
Do falso dia das lâmpadas,

Invariavelmente
murcha. “Parceira,
Abre ao seu amante
A porta-cocheira!”

“Eu qui mim espetava!”
– Que anacolutos estes
Ao fogo do chão de tábua! –
“Meu dedal, se você tivestes!”

Ela, que sorridente
A remoer ciúme Roda,
Mostra horário o oriente
De seus dentes, e borda.

1913.


MONOCROMO

Menos de dia às janelas que um tule
Em fane aos dedos que eu exilara
Bendiga meu lábio que postule
Uma pálida delícia escoada.

Você não está sob o para-sol chinês
Que a seus figurinos se assemelha
Onde descubro da sua face a tez
De estampa e suas argolas de orelha.

Por avanço absolvida de um robe
Onda vigilante à vista inteira
A piedosa mentira lhe roube
Aos braços cúmplices da cadeira.

O prestígio dos lírios abstratos
Que antes pela nuca se declina
Às mãos bem lentas dos retratos
Flor a nenhum azul pétala inclina:

Do vaso em cristal da Boêmia
Com bolhas que criança você soprava
No entanto é bem toda a poesia:
Ar efêmero de reflexos d’Alva.


A ÁGUA DOCE

A água doce deflorou tua mão, fada!
A surgir com suspiros do meu lábio,
Pensei-lhe às pressas uma afogada
Até que interrompeu esse jogo afável

No lago cujas moiras deixam fados
(Ciumenta emoção, dá-se risada!)
Pela consulta aos iluminados
Grimórios d’água aflorada.

Não finjas a dúvida de que um remo
Esposando as brumas, teu esquife
A desafiar a onda que um enredo
Trama de juncos, atrofie-se:

Vacila a lua ao leito à noite.
A favor de nossa ausência,
Um ceifador d’alada foice
Ao redor da canoa indolência,

A fim de que aos aromas de seiva
Humilhante que teu sonho esgote
– Morrem os juncos que se ceifa –,
Tal como às transparências, se deguste.

Outubro de 1914.



*****

EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Amirah Gazel (Costa Rica, 1964)
Poemas traduzidos por Davi Araújo (Brasil, 1979)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 136 | Junho de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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