A SAXÔNIA FINA
Entristece-me ao presente ter-te como rival,
Inquietude, que sabes de poda num gesto herbáceo
Banir do teu ramalhete o remorso e a dúvida
Ou que negligente trances d’ouro teus cabelos
E bela entre as flores queiras todos colhê-los!
Minh’alma ao seu socorro, se te chama, é ouvida?
Sobre as cinzas, se quiseres, da pobreza de morada,
Ambos saberemos bem como edificar ali um palácio
De onde nós rechaçaremos a quimera amarga...
O SONHO
Por vezes, ao despertar, por uma manhã que passa,
Sentimos nós no coração uma recordação gravada;
O fato nos está distante; diríamos que se
esfumaça...
Evocamo-lo um instante e dizemos: “Eu sonhava...”
Um sonho é um mergulhado olhar no absoluto...
Qualquer coisa de azul como um canto de lenda...
Uma joia assaz brilhante que o dia põe no escuro...
Pode ser esse o só fruto que o dia nos defenda...
És tu, triste Noite, quando desces sobre a terra,
Quem de teu carro atiras essa bela areia de ouro
Por sobre esse pensar que sempre solitário erra,
A sacudir no ar o teu rasgado manto em couro?
Ou disso em vez não fosse a voz de um querubim
A embalar nosso sono nessas canções sufocadas...
Tão imbecis... que escapariam pela manhã, assim,
Arrebatando-nos vis dos nossos contos de fadas?
Setembro de 1911.
...ENQUANTO DORME TUDO
No salão do meu devaneio, enquanto dorme tudo,
À noite, minha lâmpada arde em silêncios pesados
E verte em suas claridades as papoulas de veludo
Malva, que desfolha um abajur de bordados.
Um retrato de mulher, na parede, amua-se
Só, à sombra, e seu olhar, seu olhar d’ausência
vago
É de um azul velado que algo além nuance:
O azul dos reflexos de lua sobre um lago.
Monótono, o esquecimento ritma a breve canção
Da hora. Sobre o console vê-se, a pender na direção
Do edelvais — marcador amarelo dum livro de poesia —
O anjo da memória, em mármore branco, que
fantasia...
Sempre a lembrança de chagas perdoadas
Dum mármore apenas tíbio de vãos grisos
E a mesma folha, com o outono, aos frisos
Por entre ouros velhos e rosas desbotadas!
Fevereiro de 1913.
RONDÓ
Malva procissão deste anoitecer
No embrumado poente das épocas;
Ao redor do coração, auras equívocas,
Como ao pé do solar por esquecer,
Vão, da Esperança, as gentes crédulas,
Séquito que tristemente evoco a volver:
Malva procissão deste anoitecer
No embrumado poente das épocas.
Vão, meio cabisbaixas... das auréolas,
Olhares de desafio e lábios a escarnecer;
Branco cortejo espectral a se esclarecer
Ao longo dos muros da Dúvida às trevas:
Malva procissão deste anoitecer.
Março de 1913.
O grande vento
acalmou da queda uma a uma
De suas ilusões,
sem as hachuras dardejadas
Do velho outono,
ao redor de sua face enrugada,
Fez rodopiar o voo
das mágoas noturnas.
Seu olhar azul,
que dissipa o tédio de um dia brando,
Fugira à falsa
alvorada e ao poente que se maqueia
Onde, outrora,
houvera sido visto se atardando
A corroer os muros
do Real que nos rodeia.
Sua alma, onde por
vezes a branca piedade vela,
É como uma
paisagem de inverno que congela,
Em seus enlevados
lábios, a palavra emudecida.
Tal ele anda
diante de si sem ver. Todavia,
Jovem, acreditava
ele no amor e na vida
E por muito tempo
o fez sonhar a poesia...
Junho de 1913.
[DOS TERRAÇOS DO SONHO]
As garotas de olhos vendados
Procuram pelos seus fados...
M. MAETERLINCK
Dos terraços do
Sonho com rosas transbordantes
Donde nossas vozes
sem eco queriam lhes chamar,
Nós vemos partir,
de coração inconsolado,
As lendárias
princesas em antigos parques errantes.
Ah! que de
esperanças vãs se ferem os confiantes!
...As belas,
pensamos nós, cansadas de se exilar,
Que voltarão uma
noite ao nosso portão trancado...
São elas no
entanto que serão nossas amantes...
Já seu coração
duvida e seu olhar tão atraente
Parece sondar o azul
como se, vagamente,
Elas soubessem que
no céu sem estrela e sem lua
Seu destino vela,
obscuro como um astro ignorado...
Choremos... Por
entre a treva triste, se dessa Uma
O rumo na noite
verde ia eternamente extraviado!
31 de julho de 1913.
Antes que ao só
fulgor do sonho que a doura
— Galera sem
remadores, sem leme nau —,
No brumoso olvido
desta hora ainda escura,
Se quiseres,
raptor de claridades ao Vitral
Que por lha
figurar num instante se colora,
Vou por distração
pintar-te um leque oriental
Para que a
lembrança dos paraísos que se evade
Entretenha em teu
coração uma mística flama
E para que então
do vitral tu sintas a claridade
Se alastrar
docemente sem reflexos por tua alma.
Olha:
Eu quis que
através
Das folhas, algo
de ouro entre os ramos das árvores,
Tais quais ante o
crepúsculo da hora,
De claros
instantes memoráveis.
Os outros têm
juncado as alas,
Sabe-se amiúde
acariciadas de belo sol que, mortas,
Elas são como os
minutos em alas
Que um vento leva
diante da porta.
Deste monte de
folhas mortas,
Todo contra uma
árvore,
Fiz a plataforma
corrediça
De um mármore
E para que a deusa
nua,
Da qual, ao menor
sopro de brisa,
Pode se quebrar
A estatueta,
Não seja por
Outros reconhecida,
Fiz de seu nome no
mármore apagar
As letras.
Não é assim por
Elas que uma nua deusa
Cujo orgulhoso
olhar se perde
Vendo a lúgubre
fonte de bronze verde
D’onde já não se
verte
O jato d’água
fleuma
Que, farto d’haver
tentado a impossível ascensão,
Recaía como uma
desilusão
Que a rejorrar
subira
Em feixe brilhante
Até o tenro azul,
às manhãs de ontem,
Branco como uma
alma que aspira! –
... Após isso,
Em harmonia
Com um supremo e
vago remorso
E os ouros com
sono
Que semeia o
outono,
O tisnado bronze
E o mármore
exangue,
Eu sombreei a
cercania
De outras nuances
de agonia...
Vê como tenho, de
azuis fanados,
De lívidos lilás,
Sabido esbater os
longes do parque abandonado;
Depois, ainda mais
para lá,
Vê se degradar, ao
dia que finda,
Quase irreal,
O céu que eu
desejei de um malva essencial.
Perdão, querida, por
me ter em meu sonho exilado
E ter, sem
suficiente receio de que não te satisfizesses,
Pintado-te neste
leque um velho parque desolado
Em lugar de um
Trianon ou de um jardim Luís XVI.
(Leque à Srta. Manon L. G.)
Setembro de 1913.
RENDEIRAS
Bolha, renda. “Tinha
Você preso o babado?”
Amuado teu laureado,
Suspira, Chiquinha.
Sua mão branca de viés
Para ti, botija que lambas
Ou rosa d’agulha através
Do falso dia das lâmpadas,
Invariavelmente
murcha. “Parceira,
Abre ao seu amante
A porta-cocheira!”
“Eu qui mim espetava!”
– Que anacolutos estes
Ao fogo do chão de tábua! –
“Meu dedal, se você tivestes!”
Ela, que sorridente
A remoer ciúme Roda,
Mostra horário o oriente
De seus dentes, e borda.
1913.
Menos de dia às janelas que um tule
Em fane aos dedos que eu exilara
Bendiga meu lábio que postule
Uma pálida delícia escoada.
Você não está sob o para-sol chinês
Que a seus figurinos se assemelha
Onde descubro da sua face a tez
De estampa e suas argolas de orelha.
Por avanço absolvida de um robe
Onda vigilante à vista inteira
A piedosa mentira lhe roube
Aos braços cúmplices da cadeira.
O prestígio dos lírios abstratos
Que antes pela nuca se declina
Às mãos bem lentas dos retratos
Flor a nenhum azul pétala inclina:
Do vaso em cristal da Boêmia
Com bolhas que criança você soprava
No entanto é bem toda a poesia:
Ar efêmero de reflexos d’Alva.
A ÁGUA DOCE
A água doce deflorou tua mão, fada!
A surgir com suspiros do meu lábio,
Pensei-lhe às pressas uma afogada
Até que interrompeu esse jogo afável
No lago cujas moiras deixam fados
(Ciumenta emoção, dá-se risada!)
Pela consulta aos iluminados
Grimórios d’água aflorada.
Não finjas a dúvida de que um remo
Esposando as brumas, teu esquife
A desafiar a onda que um enredo
Trama de juncos, atrofie-se:
Vacila a lua ao leito à noite.
A favor de nossa ausência,
Um ceifador d’alada foice
Ao redor da canoa indolência,
A fim de que aos aromas de seiva
Humilhante que teu sonho esgote
– Morrem os juncos que se ceifa –,
Tal como às transparências, se deguste.
Outubro de 1914.
*****
EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO
SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Amirah Gazel (Costa
Rica, 1964)
Poemas traduzidos por Davi Araújo (Brasil, 1979)
Poemas traduzidos por Davi Araújo (Brasil, 1979)
Agulha
Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO
CONOSCO
Número
136 | Junho de 2019
editor
geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
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assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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