sexta-feira, 14 de junho de 2019

ANDRÉ BRETON 1919 MONTEPIO


FEIÇÃO

Chéruit.

O afeiçoamento vos semeia em tafetás
brocados projetos,
salvo onde a cintilação d’ouros se compraz.
Que julho, testigo
louco, não conte o pecado
d’ao menos esse velho romance de mocinhas que se lesse!

Às mocinhas que se
pretende
se molhe (Anos, toldos ao ponto d’oblívio), declinando
mamar a doce torrente,
— Outra volúpia, qual ato eleito te instaura? —
um porvir, resplendente Corte Batava.

Etiquetante
bálsamo vão o amor, se abastou
de frialdade
um fundo, pois quase de mês, mais de cem horinhas?
Elas de batista: Pra sempre! — O odor arrasou
assim mesmo ciosa essa primavera,

Senhorinhas.


RISONHA

Risonha e se possível imprudentemente laureada
Da juventude que um fauno acorrido havendo cinge,
Uma Ninfa ao Rochedo que a anima (senão a pinte,
Eu ao menos a surpreenda no anil de qualquer beirada)

Sobre a barca d’ouro dum sonho aventurada
– De quem tens tu a esperança e tua fé na vida? –
Os olhos refletiriam a ascensão seguida
Sob o azul fresco, na luminosidade murmurada…

– Nem tanto do éden aonde seu gesto convida,
Mas dela extasiado pela brancura que desfralda,
Que as realidades não fizeram contudo cativa:

Carícia d’alba, pressentida emoção de estátua,
Acordar, não ousado aval e ínfimo pudor que finge,
Casta ingenuidade de uma prece fátua.


DE OURO VERDE

De ouro verde as bagas maduras e meus fúteis apelos
Se enchem de clareza tão doce que deixa atônito.
Na delícia ingênua de cingir esses teus cabelos,
Mais bela, a não invejar além do azul monótono,

Eu te evoco, inquieto dum poder de manto
Quimérico de fada a teus passos sobre a terra,
Um pouco triste talvez e rebelde entretanto
Que toda abandonada à voluntária têmpera.

Aturdimento em perjúrio com promessa de flor,
Teu colo se esfia, ornado de encarpos pela vinha.
Assemelha, a ver tuas mãos, que elas bordam cor
De folhagem uma seda onde te fundem, igualzinha.

Eu sinto o quão tu me estás distante e que teu olhar,
O azul, tuas joias de sombra e as estrelas do levante,
Vão se extinguir, cativos da ramagem entediante
que logo figurará em teu capricho de penhoar.


O ANO SUAVE

A Mme Marie Laurencin.

Um xale malevolente que lesa ao tremor
Teu ombro nos condena a redizer. Pastor,
Tu me convertes a apenas acessível fiandeira.
(Ao ordinário jogo essa delícia estrangeira.)

Que amavelmente tua mão dissipe toda ligeira
Nuvem rumo a essa frente onde a mecha a favor
Não aspira, com as fibras de palha, senão ao perigo
De lua!

Tenho eu omitido a milagrosa ninfa faceira,
Ícaro aos arbustos nevados, tu sabes, a lhe antepor
Às doces flechas – o ano suave quê amigo! –
E, crivado de canção por Eco, o silêncio

A que já teu desejo de plumas, não oscilando
A caçoar do mergulhão em paraíso, está propenso
– Ah! quê amigo é o ano suave! – ao chapeuzinho branco?


HINO

Hino, à pena d’uma água morrente sobre o areal,
Ó pinheiros, vós limitais o azul essencial
E o poente prelúdio a vossos cimos enrubescia!
Um braço frágil se ata no das mitologias
Escabrosas com cuja flauta move a feiticeira
Ao torso vão do fauno ávido. A primeira
Carícia flui com a sombra.
Alceu?
Alceu em pranto recusa a rosa que o gelo colheu
Onde desde que em certa esmeralda um delírio
Suscita as clarezas misteriosas, lera…
A favor dos cantares de lira, alba de seda
Cambiante, uma ilha de ouro aparece.
Que se afogue
— Dos mais loucos! — sobre as rochas d’aventurina
Em Lêucade? (Frívola aliança marinha,
Um se resolve, mas a arte de se fingir ingênuo
O absolve.)
“Tu vês que um cerne amável é supérfluo
Às pálpebras. O medo que refrescam os tufos
Desertes, a uma ou outra, em vão, se tu os faz duplos,
Promete tua cabeleira às flores de escala, azulada…
Trégua d’heliotrópio onde se irisa uma cauda
De sereia, a inundação te adula.”

Agosto de 1914.


IDADE

Alba, adeus! Saio do bosque espectral; afronto as rotas, cruzes tórridas. Uma folhagem benigna me perde. O agosto é sem brecha como uma mó.
Retem a vista panorâmica, inala o espaço e desenrola maquinalmente os fumos.
Vou me eleger um recinto precário: abrangeremos se preciso o buxo. A província de begônias cálidas cacareja, range. Que gentilmente se amotinem os grifos no amarrotado voejar das saias!
Onde buscá-la, depois das fontes? A torto eu me fio ao seu colar de bolhas…
Olhos diante das ervilhas-de-cheiro.


Camisas coalhadas na cadeira. Um chapéu de seda inaugura de reflexos minha procura. Homem… Um espelho te vinga e vencido me trata em hábito tirado. O instante volta a patinar a carne.
Casas, eu me franqueio de paredes secas. Sacuda-se! Um leito terno está aprazível de grinaldas.

Atinges a poesia acachapante de rolimãs.

19 de fevereiro de 1916.


DEZEMBRO

A 25 é o albergue e sua rolha azevinha.
Eu esquivo o pavor injusto, ó branca terra.
Cuco – a Europa aos fogos do ano novo definha.
A canção dos funchos – e aqui estás!
Nos encerra
Crianças de contos o belo missal em flores
À meia-noite de teu agrado se abre ao folheto dos sinos
Pálidos que são os jacintos…
Que de gracejadores
Argenteiem ao seu par de galochas os meninos!
Ela canta um pátio, sem árvore, perdidamente.
Teus olhos pregam o amor impaciente dos Magos
Onde complicado te ama eu sei bem qual amante.

Da mentira que um tema desemplume em quadros
(Das perdizes da aurora a esses faisões dourados),
Louvo-te terno e tanto, mais do que outrora era.

Não cobiçavas tu os velhos hennins acinzentados?

Esta noite, invejo aos probos de Bouvines a guerra
Indulgente à razão do papa.
Infante
Acolá, conscrito ao solo e ao lábaro, aí penetre!
– E meus braços que te cingiram, liana ardente?
– Eu mordera a vida no teu seio d’anjo pedestre.


SENHOR V

A Paul Valéry.

Na praça da estrela
O Arco do Triunfo
que não se assemelha a um imã mais que pela forma
pratearei eu
os jardins suspensos

ACALANTO
A criança em capuz de laços
A criança a fazer cócegas ao mar

Em crescendo
Ele se observa em uma concha nacarada
a íris de seu olho é a estrela
de que eu falava

MARCHA
Pierre ou Paul

Ele se presta a tirar os reis
hodiernamente como outrora
seus iguais
Sonho de revoluções

Não se saberia descrever em arte
O engenho que prenda a raposa azul


CLAVE DE SOL

A Pierre Reverdy.

Nós podemos seguir sobre a cortina
O amor se vai

Sempre é ele

Um piano de cauda
Tudo se perde

Ao socorro
A arma de precisão
Das flores
Na cabeça estão para eclodir

Lance de teatro
A porta cede
A porta é da música



O Corselete Mistério

Minhas belas leitoras,

à força de ver de todas as cores
Cartas esplêndidas, com efeitos de luz, Veneza

Outrora os móveis de meu quarto estavam fixados
solidamente às paredes e eu me fazia atar para escrever:

Eu tenho o pé marinho

nós aderimos a uma sorte de Touring Club
sentimental

UM CASTELO EM LUGAR DA CABEÇA
é também o Bazar da Caridade
Jogos muito divertidos para todas as idades;
Jogos poéticos etc.

Eu tenho Paris como – para vos desvelar o porvir –
vossa mão aberta

a cintura bem presa.



*****

EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Amirah Gazel (Costa Rica, 1964)
Poemas traduzidos por Davi Araújo (Brasil, 1979)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 136 | Junho de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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