AS APOSTAS
I
Merda gritaram os viajantes do ônibus
Hipnotizados pelo dragão de faiança
Que vomitou o céu a plenos pulmões
Em noites de tempestade
Os cavalos de longa longa brida retrocederam caminho arrastando seus
cavaleiros desapeados
Ao redor das rosetas modelo antigo
Perto das pereiras atrás das paredes sob a tenda enregelante
As viajantes se declararam particularmente satisfeitas
Elas queriam ficar à noite após a chamada
Elas manifestaram do contrário a intenção de quebrar os belos pratos de
Delft
Se as tivéssemos escutado
II
A gaiola com pássaros está cercada por um esfregão molhado
Cor do sifão
Os pássaros cantam catolicamente através do gargalo
É de toda feita arrebatador esses países quentes
As plantas com pelame se envelopam em mangas de giz
Por pura gratuidade
Os corações de lobo são mais abertos que a flor chamada malva
Quem é uma faca envelhecida
À medida que nós somos o trotador segundo império elegante como uma
janela de sétimo sobre o pátio se submete as pedras caramunheiras como os bobos
da corte
O AMOR NO CAMINHO
O amor no caminho dançava com a covardia
Pois eu conduzia o fogo das estrelas às
vinhas.
Isso me exigiu mais tarde interpretar
insígnias
Dos poços de petróleo e do desejo que iludia.
Macio como um vapor, balançava-se o dia
Além dos taludes cobertos de flores malignas.
As mulheres que arrastavam a luz eram dignas
De me guiar, trepador chupa-mel que alumia.
Uma vara de fita maravilhosa se desvencilha
De cada destroço. Um céu de buquês de açucena
Às aparições dava livre trilha.
Meu esse posto mais afastado da solidez
terrena
Onde depois sigo morto e minha sombra brilha.
O PÁSSARO DE CHAMA
O mensageiro pássaro de chama compartilha
Que a grade só se abre ao dedo dos anjos
probos.
Nas janelas do norte se encostam os violinos
rotos
E o amor enlaça um céu que brilha.
Ao largo as joias e sua enviesada
esquadrilha,
Os leques de rocha ou vidro, os incensos
roxos
Dos beijos mortos! Com os seres ausentes
todos,
Os belos pontos cardeais continuam sua
quadrilha.
És tu quem vens, eternidade, imensa aurora.
Eu sei, tu farás o que foi o habitado agora
Mais mudo que uma flor e mais que um prisma
imago
Depois de mim que não aspiro a ti senão por
intriga
Como uma borboleta branca em mimetismo vago
Uma espiga azul se deita e é uma preta
espiga.
Conheces tu o verbo ser ele passa na linguagem à frente do verbo ter
Mas se trata sempre mais ou menos de ser e de ter
Quando eu não te tenho todavia eu sou
Eu sou como a água que dorme sob o efêmero
Não se pode confiar no efêmero mais não
Se fossem os olhos que morrem cada vez que eles se fecham
O bom tempo aí se encontraria ainda
Em cada um dos teus olhares não há um arrebatamento
O tempo é louco um só corpo é a venda de cabra-cega
Quem é esse que tu tens entre teus braços ao longo do canal
Busca mas sim tu sabes faz cara de saber
Toma cuidado é ainda o verbo ser
Mas se trata sempre mais ou menos de ser e de não ter
Como a paciência de ser bela se lança em ti
Os fogos-fátuos passam de uma riba à outra
Em terra o balanço grassa ele descreve uma a uma as aldeias as praias os
desertos
O reverso da medalha é que faça frio onde tu não estás
Onde o banho revelador apareceria a ele só como a consequência de uma
revelação
E no entanto eu tenho o sol e tu o tens nós o temos para nós
Nós temos a cor do sangue que não muda de um continente para o outro
E até o lagostim que nos contempla em sua caminhada
Quando eu não sou eu te tenho pode ser
O verbo é ainda
Tu deves fazer a luz em vão
E o leito onde eu poderia repousar deve se retirar como o mar
Eu te sinto pode ser pode ser me advém de me apoiar em ti
Imperceptivelmente como o molde no modelo
Há na asa interna do seu cotovelo uma luz que sobe e desce no lençol
Mesmo quando quero que o oblívio faça a perder de vista tudo
empalecer
Esta é a etiqueta maravilhosa a etiqueta alaranjada do frasco de veneno
O veneno de tudo o que eu amo
As convulsões do amor as destilações cantantes
Levantam à custo a tampa da marmita pálida
Onde a existência flutua alternadamente e banha em sua essência
Onde se o dom medido borbulha contudo
Onde se prepara na materialidade absoluta
O que não é o que separa para ser
Até a última erva azul entrada na composição do filtro
Leito velha cornamusa lenço cheio de lágrimas
Tenro fardo que nos carrega e nos dispõe
Instante compreendido entre a atenuação e a
agravação
Pilha de lâmpadas invertidas pomar dos lilás
Luta apocalíptica da passagem com o passado
Primavera espectral luzerna branca
Montanha que se destrói sem cessar
Leito forma côncava da descoloração humana
Cápsula de provas derrota do semblante
Campainha ininterrompida que remove todo
desejo de abrir
Leito regalo da verdade
Flama repassada pelas lavadeiras
Pastagem das ovelhas e dos lobos sob a escada
Leito proibição de afixar sequer a sombra aos
muros
Leito permissão de inumar e exumar
Leito dos leões rampantes e das bestas a bom deus
sorridentes
Porta de ferro da asa
Leite ou antes leito da mulher
Trapézio executado sob a forma de
quadrilátero
Casaco que sangra aos quatro cantos da coroa
de Isabel da Baviera
Leito sem fundo leito encantado no qual a
mulher antes de desaparecer
Aparece infinitamente negra um raio e
desaparece
DO LEITO QUE É FEITO
Do leito que é feito de punhos cerrados como à aproximação de uma briga
E de tranças de areia que se elevam vertiginosamente
Se distanciam as aparências de duas cabeças
Das quais uma é a minha
Esta cabeça é o calcanhar de Aquiles da natureza
Uma coisa que atrai as vespas e na composição da qual entram o açúcar-candy
e o vapor
E que se esporeia de rir e que joga os fios por todos os lados
Os fios de céspede que se enrolam à cintura da pernalta d’água
Eu não tenho mais ouvidos são perseguições que têm meu lugar
Um automóvel as motocicletas todo um trem
À portinhola do qual uma mulher com o busto invertido cujos cabelos
ameaçam terrivelmente de se prender às sarças
E cuja boca é o vidro de lampião vermelho no qual eu vejo os beijos
Quando eu estou animado pelo medo de não ter sabido viver
E que eu abro os braços à notícia da minha desaparição
Esse retrato é o de uma criança que colhe os relógios minúsculos tendo
por longo tempo se alojado no mar
Os perfumes da noite os cálices invisíveis de uma cereja com caroço de
adonide gota de sangue que abre em uma papoula
Os perfumes da noite as mudanças de direção do bosque macio desbravado
pelo rouxinol com coração de canola coroado com seu ninho
Os perfumes da noite as angústias da força que sobe as rodas e as amoras
Quando a grande ursa está atolada no vasto terreno calcário em forma de
livro
Eu ponho o pé na terra logo o quadro negro se cobre de signos bizarros
Sob os passos de borboleta parece que meu cérebro está pregado na porta
Eu não fiquei tão mal
Mas então minha cabeça após certo tempo é verdade que eu a achei muito
leve sobre meus ombros
Os perfumes da noite
O quarto está vazio eu caço com um gato nos telhados
Mas cada deflagração é um dia de bom tempo empenachado ferinamente de um
aguaceiro
Eu acredito que a noite é uma espécie de pó de arroz
Se lhe ajuntamos o halo da lua e uma grande ferida
Que se relaciona com a ideia de deixar em suspenso tudo o que é
necessário
A semelhança é perfeita
A outra cabeça está sempre ao lado da minha no travesseiro
Se diria que ela parece com um respiradouro
Seus cabelos feitos de pequenos sacos de moleiro em pleno sol
E detrás dos olhos há minha estrela que brilha em uma fechadura
Sobre nós a potência do granizo agita uma bola de sabugueiro que em
corte dá o céu
QUEM DÁ OUVIDOS
Quem dá ouvidos quem quer realmente escutar a perder de oitiva
Entrai deslizai sob a segunda tampa do trovão e do granizo
Ela tem os dentes de arroz aquela que canta
E o que ela canta é a preguiça de uma lavanderia cheia de moças
Em uma noite boreal bem longe onde é isso para que serve
E o que ela canta é a lona de uma tenda de circo sublevada pelo vento
O vento que torna os cabelos nômades e que faz os olhos de papel
esvoaçante
E o que ela canta é um aparador em um asilo junto ao mar
Um asilo onde alguns se creem vagas e os outros gaivotas
Ela tem os cílios como o lilás da Pérsia aquela que canta
Apanhando os galhos doces com fungos-gaviões
Que consente em jamais ver mais que o interior do poço cheio de asas
Ao fundo do qual tem lugar a ceifa das grandes espigas de vidro
Essas espigas que se trazia em grande segredo ao moinho do olhar
Ela tem a sombra do prisma aquela que cega
E o que ela mostra é uma concha de lágrimas
Que se pode aplicar para sempre na bochecha é do mais belo efeito
enganador
Assim que os sóis se assaltam no quarto
E em seus raios se balançam as agulhas de costurar todos os objetos uns
com os outros
E toda uma parafernália de pastores ovelheiros soprando nos cornos
Ao momento em que a noite tomba e o cachorro verde que falta à reparação
das porcelanas
E o que ela mostra é um tombador repleto de fundos de garrafas
Em cada fundo de garrafa há um olhar fascinante
Um olhar que doura a grande distância existente entre os seres
Ela tem a fronte do oblívio na cesta de acetileno aquela que cega
Eu lhe pergunto ainda quem se mofa de renunciar à carícia para acariciar
À carícia do tule do ar cujos lenços descem em longas dobras das árvores
À carícia da palha de outro corpo cujas volutas se desenlaçam no
pensamento
À carícia dos tabuleiros interiores sobre os quais amadurece o coração
como uma bobina de fios da virgem e de vaga-lumes
Ela tem dedos de pluma aquela que deixa insensível
E isso que ela toca é uma paisagem de areia que se desfaz sem cessar
E também um país no qual a rosa está munida de uma couraça brilhante e
rosa
Ela tem os lábios da cor do tempo aquela que se veste de cocaína
Casa presa em uma cabeleira penteada de
chapins
E sempre encaracolada de ninhos de chapins
Grande caixa marcada das palavras primavera e perigo
Suspensa ao içamento e desiçamento da grua azul
Em uma porta que ferve de vogais
A dançarina na barra da janela em cruz
Diante dos fortes armários de gelo das montanhas
E todo esse linho fino estendido sobre as papoulas
Me recordam as belas promessas da transparência
Enquanto ela não era ainda um copo
A pé como a ideia do homem de que ele tem de erguer seu copo
À glória do eterno Ausente
Que não chega a levantar de bolhas o agrião das fontes
É aqui que se vem receber as ordens
Ordem de ter pronto o compartimento compreendido entre o ventre e o
interior das coxas da jovem girafa
Ordem de rastejar toda a noite ao redor de uma macieira
Ordem de encontrar a chave das caves de licor dos bordéis
Ordem de tentar as mulheres nas estradas que sobem
Por meio de falos processionários
E a mais secreta de todas ordem
De fazer desaparecer todos os espelhos jogando-os nos poços
O iniciados dos dois sexos quando se encontram raspam os lambris
De um azul de lixívia em que piscam as estrelas de contrabando
E a bola do mundo encimada outrora por uma cruz
Aparece invertida na mão daqueles que passam acariciando-a a contrapelo
Os cavalos promovem grande algazarra na ecúria célebre
Eles se voltam sobre si mesmos como quando se lhes desatrela
E se empinam como as mantas religiosas
Na expectativa das vibrações comunicadas à moela aérea
Pela espora do sol
É aqui que essas lacas cujo segredo pertence aos índios
Sangram ao longo dos móveis que os eventos que me concernem
Florescem como de uma árvore de fungo-pavio
Casa crispada sem timbre
Que por alça de cesta não admite senão o arco-íris
Casa que é o fole de fazer cantar a brasa
Nas roráceas dos de vitrais
É a casa de casca com a porta de amêndoa amarga
E com o martelo de pluma
Casa do guardião dos pensamentos proibidos
Ele passa dia e noite atrás dos meus cílios
E seu passo é semelhante à queda das maçãs
Ela está vestida com um casaco arrastadiço recortado de uma cortina de
embalagem ensamarrada
E agita um enxoval de cardos azuis
Quando ela me fala é em uma língua desconhecida
Ela viajou muito suas malas se abrem e se fecham ruidosamente no sótão
E eu penso que ela sobretudo muito esqueceu
Em razão de sua cabeça de pássaro do mar
Ela folheia às vezes um livro feito de vidraças a chuva a poeira o
granizo
Ele carrega a tiracolo o moinho dos velhos pequenos mercadores de prazer
Um perpétuo crepúsculo suspende seus frutos na treliça do barco
encalhado perto de mim
Eu estou sentado sobre o banco de areia
Um braço passado ao redor da cintura inapreensível do viburno com cabeça
humana
A boca entreaberta como se eu fosse morrer
Como sangue ele se encaminha pela vala da estrada
Ele é límpido e rola os seixos de brasa sobre tudo o que eu empreendi
jamais
Uma mulher adormecida desliza em sua luz
O RAIO CAIU
O raio caiu esta noite sobre os pássaros
Há muito tempo que ela rodou em volta do manto dos antigos chefes do
Havaí
E eis que ela alcançou seus fins
Todos os cavalos estão de joelhos diante de seus cavaleiros em campo
aberto
As barras das prisões serpenteiam azuis na grama
As parteiras vão correndo de porta em porta
Elas desenham uma estrela na porta às vezes duas
De longe se poderia crer de volta aos belos tempos da peste
Mas isso não quer dizer senão a nuvem de gafanhotos humanos
Assume ao contrário uma extraordinária densidade
Não é a toa que se anunciava o verdadeiro começo do mundo para o ano
dois mil
Um pescador apareceu coberto de escamas ele disse
Que não se voltava de outra forma do baile de Lícia
Que deixava longe aquele dos Ardentes
As estátuas das praças públicas se põem a mendigar
A começar pelos trens se engatam bizarramente
Um casal se enlaça sem nada ver e sem nada ouvir atrás de um muro de
fábrica
Entre os juncos de cinco metros e os feixes do inferno
A mulher é loira ainda e as martas fazem círculo ao redor dela
Seus braços ao redor do pescoço do homem são cometas de palha
E quando ela inverte a cabeça as neves se iluminam ao sol levante sobre
as montanhas
A PESCA AOS LAGOSTINS
Pelos penacho e concha uma retina
Se forja o adorável múrice crepuscular
A umbela de sangue salta na sala de estar
O lençol que floreia a menta e a terebentina
O mobiliário sabido em sombra se aglutina
Uma peneira empoeirada dera a vez ao lagar
Aos furões no espelho que é preciso
interrogar
Uma mosca de maio de longe em longe acetina
Ao bom fogo que lhe lambe o infante sob o
orvalho
Vira apontar os dois seis que dormem ao
contrário
Mudar do fundo dos tempos o cavaleiro azul
real
Aquele que se oferecerá mais tarde a lhe
conduzir
Quando sonha do castelo sem volta no temporal
Rumo à moita oculta ardendo sempre de luzir
*****
EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO
DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Amirah
Gazel (Costa Rica, 1964)
Poemas traduzidos por Davi Araújo (Brasil, 1979)
Poemas traduzidos por Davi Araújo (Brasil, 1979)
Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 136 | Junho de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO
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