No salão da Senhora de Ricochetes
Os espelhos são em grãos de rocio espremidos
O console é feito de um braço em hera
E o tapete morre como as vagas
No salão da senhora de Ricochetes
O chá de lua é servido em ovos de noitibó
As cortinas amanham o fundir das neves
E o piano em perspectiva perdida sombreia de um só bloco no nácar
No salão da senhora de Ricochetes
As lâmpadas baixas por sob as folhas de álamo
Dão em cima da chaminé em escamas de pangolim
Quando senhora de Ricochetes tilinta
As portas se fendem a liberar passagem aos serventes sobre balanços
O POÇO ENCANTADO
De fora o ar está a
esfriar
O fogo extinto sob
a botija azul de madeira
A natureza cospe em
sua pequena lata de noite
Sua escova sem
espessura começa a fazer luzir as arestas dos arbustos e dos navios
A cidade com longas
agulhadas de fulgores
Sobe até se perder
Ao longo de uma
rampa de canções que gira em gavinha nas ruas desertas
Quando as
amarelinhas abandonadas se voltam uma após a outra no céu
Bem no fundo do
funil
Nas samambaias
torcidas do olhar
Eu tenho um
encontro com a dama do lago
Eu sei que ela virá
Como se eu tivesse
adormecido sob as fúcsias
É ali
No lugar da
suspensão do debaixo na casa das nuvens
Um poço de ascensor
nas paredes do qual rebenta em tufos de roupa de mulher
Que mais e mais
verdece
A mim
A mim a flor do
grisu
O ludião humano o
cação branco
A grande adivinha
sagrada
Melhor que ao fio
d’água Ofélia no balé das moscas de maio
Eis ao reflexo do
fio de prumo aquela que está no segredo das toupeiras
Eu vejo a sola de
poeira de diamante eu vejo o pavão branco que faz a roda atrás da tela da
chaminé
As mulheres que se
desenha ao revés são as únicas que não foram jamais vistas
Seu sorriso é feito
para a expiação dos mergulhadores de pérolas
Nos pulmões mudados
em corais
É Medusa
encasquetada cujo busto pivoteia lentamente na vitrine
De perfil eu
acaricio seus seios com bicos alados
Minha voz não lhe
alcançá-lo estes são dois mundos
E mesmo
Nada serviria jogar
em sua torre uma carta toda aberta aos ângulos da cola
Foram-me postas as
algemas cintilantes de Peter Ibbetson
Eu sou um telhador
que ficou louco
Que arranca pelas
placas e acabará bem por lançar abaixo todo o teto da casa
Para melhor ver
como a tromba se eleva do mar
Para se misturar à
batalha das flores
Quando uma coxa
transborda da caixa e entra em jogo o pedal do perigo
A bela invenção
Para substituir o
cuco o relógio de baloiço
Que marca o tempo
suspenso
Pingente do lustre
central da terra
Minha ampulheta de
rosas
Tu que não
reascenderás à superfície
Tu que me olhas sem
me ver nos jardins da provocação pura
Tu que me envias um
beijo da porteira de um trem que foge
SIGA-AS TODAS
A Benjamin Péret.
No coração do território índio de Oklahoma
Um homem sentado
Cujo olho é como um gato que gira ao redor de um pote de canícula
Um homem cercado
E por sua janela
O concílio das divindades enganosas inflexíveis
Que se levantam cada manhã em maior número do nevoeiro
Fadas furiosas
Virgens à espanhola inscritas no estreito triângulo isósceles
Cometas fixos de que o vento descolore os cabelos
O petróleo como os cabelos de Eleonora
Borbulha acima dos continentes
E em sua voz transparente
A perder de vista há as armadas que se observam
Há os cantos que viajam sob a asa de uma lâmpada
Há a esperança de ir tão veloz
Que em teus olhos
Se mesclam ao fio do vidro as folhagens e as luzes
No encruzilhada das rotas nômades
Um homem
Ao redor de quem se traçou um círculo
Como ao redor de uma galinha
Empilhadas ao infinito em seu armário
Um homem de cabeça costurada
Nos meiões do sol poente
E cujas mãos são de peixes-cofres
Esse país se assemelha a uma imensa casa noturna
Com suas mulheres vindas do fim do mundo
Em cujos ombros rolam os seixos de todos os mares
As agências americanas não têm esquecido de prover esses chefes índios
Sobre as terras dos quais são furados os poços
E que não restam livres de se deslocar
Senão nos limites impostos pelo tratado de guerra
A riqueza inútil
As mil pálpebras da água que dorme
O curador passa todo mês
Ele põe sua cartola sobre o leito recoberto de um véu de flechas
E de sua maleta de foca
Se espalham os últimos catálogos das manufaturas
Alados da mão que lhes abria e lhes fechava quando nós éramos crianças
Uma vez sobretudo uma vez
Era um catálogo de automóveis
Apresentando o carro de noiva
O sedã que se estende por uma dezena de metros
À sua traseira
O carro de grande pintor
Talhado em um prisma
O carro de governador
Similar a um ouriço de que cada espinho é um lança-chamas
E havia sobretudo
Um carro preto rápido
Coroado de águias de nácar
E cravejado em todas suas facetas de adornos de chaminés de salão
Como pelas vagas
Uma carruagem não podendo ser movida senão à relâmpago
Como aquela na qual erra com os olhos fechados a princesa Acanto
Um carriola gigante toda em lesmas grises
E em línguas de fogo como aquela que aparece nas horas fatais no jardim
da torre São Tiago
Um peixe rápido preso em uma alga e multiplicando os golpes de cauda
Um grande carro de cerimônia e de luto
Para o último passeio de um santo imperador por vir
De fantasia
Que tornaria obsoleta a vida inteira
O dedo tem desenhado sem hesitação a imagem congelada
E desde então
O homem com a crista de tritão
Ao seu volante de pérolas
A cada tarde vem bordar o leito da deusa do milho
Eu guardo pela história poética
O nome desse chefe despossuído que é um pouco o nosso
Desse homem solitário metido no grande circuito
Desse homem soberbamente enferrujado em uma máquina nova
Que põe o vento a meio mastro
Ele se chama
Ele leva o nome flamejante de Siga-as todas
A vida a morte siga de uma vez as duas lebres
Siga tua chance que é uma revoada de sinos de festa e de alarme
Siga as criaturas de teus sonhos que desfalecem rodadas em suas anáguas
brancas
Siga o anel sem dedos
Siga a cabeça da avalanche
29 de outubro de 1938.
A casa de Yves Tanguy
Somente à noite se entra ali
Com a lâmpada-tempestade
Fora do país transparente
Em seu elemento um vidente
Com a lâmpada-tempestade
Com a serraria tão laboriosa que não mais se viu
E o pano de Jouy celestial
— Vós, caçai o sobrenatural
Com a lâmpada-tempestade
Com a serraria tão laboriosa que não mais se viu
Com todas as estrelas de santoanil
Ela é de laços, de perninhas pernada
Da cor do lagostim que nada
Com a lâmpada-tempestade
Com a serraria tão laboriosa que não mais se viu
Com todas as estrelas de santoanil
Com os trâmueis em todos os sentidos virados às suas sós antenas
O espaço atado, o tempo arrocho
Ariadne em seu quarto-estojo
Com a lâmpada-tempestade
Com a serraria tão laboriosa que não mais se viu
Com todas as estrelas de santoanil
Com os trâmueis em todos os sentidos virados às suas sós antenas
Com a crina sem fim do argonauta
As esfinges fazem o servicinho
Com os olhos cobertos de linho
Com a lâmpada-tempestade
Com a serraria tão laboriosa que não mais se viu
Com todas as estrelas de santoanil
Com os trâmueis em todos os sentidos virados às suas sós antenas
Com a crina sem fim do argonauta
Com a mobília fulgurante do deserto
Aqui nos matamos nos curamos aqui
Desabrigados conspiramos daqui
Com a lâmpada-tempestade
Com a serraria tão laboriosa que não mais se viu
Com todas as estrelas de santoazul
Com os trâmueis em todos os sentidos virados às suas sós antenas
Com a crina sem fim do argonauta
Com a mobília deslumbrante do deserto
Com os signos que trocam de longe os enamorados
É a casa de Yves Tanguy
QUAIS PREPARATIVOS
Os armários
abobadados do campo
Deslizam silenciosamente
sobre os trilhos de leite
É a hora em que as
meninas levadas pela cheia da noite que rola as carlinas
Se enrijecem contra
a mordida do arminho
Cujo grito
Vai moldar as
pontas de sua garganta
Os eventos de uma
outra ordem são absolutamente desprovidos de interesse
Não me fale desse
papel de parede decorado de amoras
Que nada tem de
mais urgente
Que dilacerar a si
mesmo
As chamas negras
lutam na grade com as línguas de erva
Um galope distante
É a carga
subterrânea soada no bosque de violeta e no buxo
Todo o quarto se
inverte
O esplêndido
alinhamento das medidas de estanho se esgota em uma só que por acréscimo é o
vinho gris
A coxa sempre muito
cedo despachada sobre o quadro de giz na tormenta de dia
As jazidas de
homens os lagos de murmúrios
O pensamento
tirando a seu colar de velhos nichos
Que me deixam de
uma vez por todas com isso
Os diabos-moscas
veem nessas unhas
As gravinhas do
quadrante de maçã do rocio
Devolvido do fundo
da vida
O corpo todo em
peixes surge da rede transbordante
No buxal
Do ar ao redor do
leito
O argos da deriva
cara os olhos fixos meio abertos meio fechados
Poitiers, 9 de maio de 1940.
Minhas malas não têm mais peso as etiquetas são os luzeiros correndo
sobre um charco
Será isso de todo bastante para esta comarca aonde vai bem após ser
posta de parte a diligência da noite
Toda em cristal preto ao longo das mós rodando de codornizes
Castelo que treme e eu juro que acaba de pousar ante mim um relâmpago
Local frustrado de tudo o que poderia lhe tornar habitável
Eu não vejo mais que estreitos corredores emaranhados
Escadas em parafuso
Somente no alto da torre de vigia
Rebenta o ar talhado em rosa
Banida supersticiosamente a área primitiva de uma braçada de juncos para
se esticar
O arquiteto louco do que restava de espaço livre
Parece ter sonhado uma garagem para mil mesas redondas
Em cada um delas são presumidos cear ao caviar ao champanhe
Comigo os bustos de cera uns mais bonitos que os outros mas por entre
eles incognoscível deslizou um busto vivo
Bustos pois não há mais que uma toalha com reflexos cambiantes para
todas as mesas
Assaz lacunar para aprisionar o talhe de todas essas mulheres falsas e
verdadeiras
Tudo o que é ou deixa de ser por baixo da toalha se esconde na música
Oráculo esperado da naveta de um sapato
Mais brilhante do que um peixe jogado na erva
Ou uma panturrilha que faz um buquê de lâmpadas de mineiro
Ou o joelho que lança uma peteca no meu coração
Ou uma boca que pende que pende a verter seu perfume
Ou uma mão de início meio à margem no instante mesmo em que parece que
ela não evita um contato de asas com a minha mão
Ó meniscos
Para além de todos os presentes permitidos e proibidos
Em dorso de elefantes esses pilares que se estreitam até o fio de seda
nas grutas
Meniscos adorável cortina de tangência quando a vida não é mais que uma
garça que bebe
E dizes tu que tão bem eu não te verei mais
PASSAGEM DE NÍVEL
De um toque de varinha haverão sido as flores
E o sangue
O raio pousa sobre a janela congelada
Ninguém
Pfff
compreendeu-se que o espaço se desbordava
Depois o travesseiro de ar deslizou sob o
sanfeno
As avalanches ergueram a cabeça
E no interior das pedras as espáduas se
sublevaram
Os olhos estavam ainda fechados na água
desconfiada
Das profundezas subia o triplo colarinho
Que ia fazer o orgulho do armário
E a canção das cigarras segurava seu bilhete
Na gare ainda envelopada de todos os seus
fios
A mulher mordia uma maçã de vapor
Sobre os joelhos de uma grande besta branca
Nas oficinas sobre os estabelecimentos
silenciosos
A plaina da lua alisava as folhas cortantes
E a mó cuspia suas borboletas
Sobre a borda do papel em que escrevo
GUERRA
Eu observo a Besta enquanto ela se lambe
Para melhor se confundir com tudo o que a circunda
Seus olhos cor de marulho
De improviso são a lagoa atraindo para ela a roupa suja os detritos
Aquela que detém sempre o homem
A lagoa com sua pequena praça da Ópera no ventre
Pois a fosforescência é a chave dos olhos da Besta
Que se lambe
E sua língua
Lançada não se sabe de antemão jamais para onde
É uma encruzilhada de fornalhas
Desde baixo eu contemplo seu palácio
Feito de lâmpadas em sacos
E sob a abóbada azul de rei
De arções desdourados em perspectiva um no outro
À medida que corre o sopro feito da generalização ao infinito daquele
desses miseráveis o torso nu que se apresentam em praça pública engolindo
tochas a petróleo em uma acre chuva de tostões
As pústulas da Besta resplendecem dessas hecatombes de jovens gentes com
que se empanturra o Número
Os flancos protegidos pelas rutilantes escamas que são as armadas
Abombadas de que cada uma gira à perfeição sobre sua dobradiça
Se bem que elas dependam umas das outras não menos que os galos que se
insultam à aurora de monturo a monturo
Tocamos na falta de consciência enquanto alguns persistem a sustentar
que o dia vai nascer
A porta eu quis dizer a Besta se lambe sob a asa
E se vê é de rir se convulsionar os gatunos ao fundo de uma taberna
Essa miragem de que se tinha feito a bondade se arrazoa
Essa é uma jazida de mercúrio
Aquela podia bem se tragar de um só golpe
Cri que a Besta se virava para mim revi a imundície do relâmpago
Que ela é branca em suas membranas no desliado de seus bosques de
bétulas onde se organiza a vigília
Nos cordames de seus navios à proa dos quais mergulha uma mulher que as fadigas
do amor adornaram de um dominó verde
Falso alerta a Besta guarda suas garras em coroa erétil ao redor dos
seios
Eu tento não balançar tanto quando ela sacode a cauda
Que é de uma vez a carruagem biselada e o golpe de flagelo
No odor sufocante de cicindela
De sua liteira manchada de sangue negro e de ouro contra a lua ela aguça
um dos seus cornos na árvore entusiasta do agravo
Encalacrando-se com langores aterrorizantes
Lisonjeada
A Besta se lambe o sexo eu nada disse
MOTE A MANTE
A Matta.
I
A CURTA ESCALA
Passa uma névoajoelhada
Diante das palavras que são a lua
(Os chifres da girafágua-furtada)
Eu demandei um cafélino
... Não um croassãntos-dumont
O que era desenlacetona
Faz-se moscadafalso
Para a ação toda nova
Vide o vidraceiro à veneziana
Em língua totêmica Mattatucanoctiluz
Mattalismãncenilheira
II
A PORTA BATE
A por
por porta por
Em ja
ne la
Da qual odor amaro de limurarda
Aqui mera memória apele Milady de Winter
Alisando seu struzave detrás dos losangos da
chuva
Pafrura-brifrusas o soalho é tão velho
Que através se vê o fogo da terra
Todas as bonitinhas a seu escupecolho
Como as andorinhas
Sobre os fios em que eu toco nestas gotas
De um instrumento desconhecido
Olmiovidosotista
No coração desse nó de serpentes
Que é a cruz suas quatro ventas fugidias
suspensas em mamatas pi cardeais
Novembro de 1942 – janeiro de 1943.
O ENTARDECER É UMA PÁ
O entardecer é
uma pá na mão de um deus. O que ele rejeita atrás de si pelo campo se abate
sobre os pequenos castelos de vidro onde evoluem as serviçais cor de estrelas.
Ali, em um montículo, os pós de beleza se medem para o dia seguinte em
pirâmides a que serve um arco-íris do comprimento de teu braço. As carruagens
de bancos mordem as luzes insólitas da granja e a sombra desce em filete de
leite das tetas de cabras que grimpam as últimas a colina saltitante e
paramentada. Ao longo dos riachos o pavio processionário se oculta pouco a
pouco em direção ao molinete da preguiça e as estalactites negras aparecem nas
salas de jantar. O deus repousa um momento e se esponja a fronte com um ninho.
Depois os epídotos glaciais surgem nas encruzilhadas. Elas contêm as estátuas
de Antígonas que se agrupam ligeiramente sobre as praças. O passante único
dessas horas — ele não pode ser senão o único e sua memória é interrompida à
meia-noite — se circunda de um manto de pirilampos e seu chapéu está picado por
uma flecha indicando o lugar onde procurar a barca que imobilize Órion.
8 de maio de 1946, manhã.
*****
EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO
DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Amirah
Gazel (Costa Rica, 1964)
Poemas traduzidos por Davi Araújo (Brasil, 1979)
Poemas traduzidos por Davi Araújo (Brasil, 1979)
Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 136 | Junho de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO
MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019
Nenhum comentário:
Postar um comentário