sexta-feira, 14 de junho de 2019

ANDRÉ BRETON 1936-1946 ESPARSOS E INÉDITOS V


MUNDO

No salão da Senhora de Ricochetes
Os espelhos são em grãos de rocio espremidos
O console é feito de um braço em hera
E o tapete morre como as vagas
No salão da senhora de Ricochetes
O chá de lua é servido em ovos de noitibó
As cortinas amanham o fundir das neves
E o piano em perspectiva perdida sombreia de um só bloco no nácar
No salão da senhora de Ricochetes
As lâmpadas baixas por sob as folhas de álamo
Dão em cima da chaminé em escamas de pangolim
Quando senhora de Ricochetes tilinta
As portas se fendem a liberar passagem aos serventes sobre balanços


O POÇO ENCANTADO

De fora o ar está a esfriar
O fogo extinto sob a botija azul de madeira

A natureza cospe em sua pequena lata de noite
Sua escova sem espessura começa a fazer luzir as arestas dos arbustos e dos navios

A cidade com longas agulhadas de fulgores
Sobe até se perder
Ao longo de uma rampa de canções que gira em gavinha nas ruas desertas

Quando as amarelinhas abandonadas se voltam uma após a outra no céu

Bem no fundo do funil
Nas samambaias torcidas do olhar
Eu tenho um encontro com a dama do lago

Eu sei que ela virá
Como se eu tivesse adormecido sob as fúcsias
É ali
No lugar da suspensão do debaixo na casa das nuvens

Um poço de ascensor nas paredes do qual rebenta em tufos de roupa de mulher
Que mais e mais verdece

A mim

A mim a flor do grisu
O ludião humano o cação branco
A grande adivinha sagrada
Melhor que ao fio d’água Ofélia no balé das moscas de maio

Eis ao reflexo do fio de prumo aquela que está no segredo das toupeiras

Eu vejo a sola de poeira de diamante eu vejo o pavão branco que faz a roda atrás da tela da chaminé

As mulheres que se desenha ao revés são as únicas que não foram jamais vistas

Seu sorriso é feito para a expiação dos mergulhadores de pérolas
Nos pulmões mudados em corais
É Medusa encasquetada cujo busto pivoteia lentamente na vitrine
De perfil eu acaricio seus seios com bicos alados

Minha voz não lhe alcançá-lo estes são dois mundos
E mesmo
Nada serviria jogar em sua torre uma carta toda aberta aos ângulos da cola

Foram-me postas as algemas cintilantes de Peter Ibbetson
Eu sou um telhador que ficou louco
Que arranca pelas placas e acabará bem por lançar abaixo todo o teto da casa
Para melhor ver como a tromba se eleva do mar
Para se misturar à batalha das flores
Quando uma coxa transborda da caixa e entra em jogo o pedal do perigo

A bela invenção
Para substituir o cuco o relógio de baloiço
Que marca o tempo suspenso

Pingente do lustre central da terra
Minha ampulheta de rosas
Tu que não reascenderás à superfície
Tu que me olhas sem me ver nos jardins da provocação pura
Tu que me envias um beijo da porteira de um trem que foge


SIGA-AS TODAS

A Benjamin Péret.

No coração do território índio de Oklahoma
Um homem sentado
Cujo olho é como um gato que gira ao redor de um pote de canícula

Um homem cercado
E por sua janela
O concílio das divindades enganosas inflexíveis
Que se levantam cada manhã em maior número do nevoeiro
Fadas furiosas
Virgens à espanhola inscritas no estreito triângulo isósceles
Cometas fixos de que o vento descolore os cabelos

O petróleo como os cabelos de Eleonora
Borbulha acima dos continentes

E em sua voz transparente
A perder de vista há as armadas que se observam
Há os cantos que viajam sob a asa de uma lâmpada
Há a esperança de ir tão veloz
Que em teus olhos
Se mesclam ao fio do vidro as folhagens e as luzes

No encruzilhada das rotas nômades
Um homem
Ao redor de quem se traçou um círculo
Como ao redor de uma galinha

Enterrado vivo no reflexo das toalhas azuis
Empilhadas ao infinito em seu armário

Um homem de cabeça costurada
Nos meiões do sol poente
E cujas mãos são de peixes-cofres

Esse país se assemelha a uma imensa casa noturna
Com suas mulheres vindas do fim do mundo
Em cujos ombros rolam os seixos de todos os mares
As agências americanas não têm esquecido de prover esses chefes índios
Sobre as terras dos quais são furados os poços
E que não restam livres de se deslocar
Senão nos limites impostos pelo tratado de guerra

A riqueza inútil
As mil pálpebras da água que dorme

O curador passa todo mês
Ele põe sua cartola sobre o leito recoberto de um véu de flechas
E de sua maleta de foca
Se espalham os últimos catálogos das manufaturas
Alados da mão que lhes abria e lhes fechava quando nós éramos crianças

Uma vez sobretudo uma vez
Era um catálogo de automóveis
Apresentando o carro de noiva
O sedã que se estende por uma dezena de metros
À sua traseira
O carro de grande pintor
Talhado em um prisma
O carro de governador
Similar a um ouriço de que cada espinho é um lança-chamas

E havia sobretudo
Um carro preto rápido
Coroado de águias de nácar
E cravejado em todas suas facetas de adornos de chaminés de salão
Como pelas vagas
Uma carruagem não podendo ser movida senão à relâmpago
Como aquela na qual erra com os olhos fechados a princesa Acanto
Um carriola gigante toda em lesmas grises
E em línguas de fogo como aquela que aparece nas horas fatais no jardim da torre São Tiago
Um peixe rápido preso em uma alga e multiplicando os golpes de cauda
Um grande carro de cerimônia e de luto
Para o último passeio de um santo imperador por vir
De fantasia
Que tornaria obsoleta a vida inteira

O dedo tem desenhado sem hesitação a imagem congelada
E desde então
O homem com a crista de tritão
Ao seu volante de pérolas
A cada tarde vem bordar o leito da deusa do milho

Eu guardo pela história poética
O nome desse chefe despossuído que é um pouco o nosso
Desse homem solitário metido no grande circuito
Desse homem soberbamente enferrujado em uma máquina nova
Que põe o vento a meio mastro

Ele se chama
Ele leva o nome flamejante de Siga-as todas
A vida a morte siga de uma vez as duas lebres
Siga tua chance que é uma revoada de sinos de festa e de alarme
Siga as criaturas de teus sonhos que desfalecem rodadas em suas anáguas brancas
Siga o anel sem dedos
Siga a cabeça da avalanche

29 de outubro de 1938.


A CASA DE YVES

A casa de Yves Tanguy
Somente à noite se entra ali

Com a lâmpada-tempestade

Fora do país transparente
Em seu elemento um vidente

Com a lâmpada-tempestade
Com a serraria tão laboriosa que não mais se viu

E o pano de Jouy celestial
— Vós, caçai o sobrenatural
Com a lâmpada-tempestade
Com a serraria tão laboriosa que não mais se viu
Com todas as estrelas de santoanil

Ela é de laços, de perninhas pernada
Da cor do lagostim que nada
Com a lâmpada-tempestade
Com a serraria tão laboriosa que não mais se viu
Com todas as estrelas de santoanil
Com os trâmueis em todos os sentidos virados às suas sós antenas

O espaço atado, o tempo arrocho
Ariadne em seu quarto-estojo

Com a lâmpada-tempestade
Com a serraria tão laboriosa que não mais se viu
Com todas as estrelas de santoanil
Com os trâmueis em todos os sentidos virados às suas sós antenas
Com a crina sem fim do argonauta

As esfinges fazem o servicinho
Com os olhos cobertos de linho
Com a lâmpada-tempestade
Com a serraria tão laboriosa que não mais se viu
Com todas as estrelas de santoanil
Com os trâmueis em todos os sentidos virados às suas sós antenas
Com a crina sem fim do argonauta
Com a mobília fulgurante do deserto

Aqui nos matamos nos curamos aqui
Desabrigados conspiramos daqui

Com a lâmpada-tempestade
Com a serraria tão laboriosa que não mais se viu
Com todas as estrelas de santoazul
Com os trâmueis em todos os sentidos virados às suas sós antenas
Com a crina sem fim do argonauta
Com a mobília deslumbrante do deserto
Com os signos que trocam de longe os enamorados

É a casa de Yves Tanguy


QUAIS PREPARATIVOS

Os armários abobadados do campo
Deslizam silenciosamente sobre os trilhos de leite
É a hora em que as meninas levadas pela cheia da noite que rola as carlinas
Se enrijecem contra a mordida do arminho
Cujo grito
Vai moldar as pontas de sua garganta

Os eventos de uma outra ordem são absolutamente desprovidos de interesse
Não me fale desse papel de parede decorado de amoras
Que nada tem de mais urgente
Que dilacerar a si mesmo

As chamas negras lutam na grade com as línguas de erva
Um galope distante
É a carga subterrânea soada no bosque de violeta e no buxo
Todo o quarto se inverte
O esplêndido alinhamento das medidas de estanho se esgota em uma só que por acréscimo é o vinho gris
A coxa sempre muito cedo despachada sobre o quadro de giz na tormenta de dia

As jazidas de homens os lagos de murmúrios
O pensamento tirando a seu colar de velhos nichos
Que me deixam de uma vez por todas com isso

Os diabos-moscas veem nessas unhas
As gravinhas do quadrante de maçã do rocio
Devolvido do fundo da vida
O corpo todo em peixes surge da rede transbordante
No buxal
Do ar ao redor do leito
O argos da deriva cara os olhos fixos meio abertos meio fechados

Poitiers, 9 de maio de 1940.


LOUREIRA

Minhas malas não têm mais peso as etiquetas são os luzeiros correndo sobre um charco
Será isso de todo bastante para esta comarca aonde vai bem após ser posta de parte a diligência da noite
Toda em cristal preto ao longo das mós rodando de codornizes
Castelo que treme e eu juro que acaba de pousar ante mim um relâmpago
Local frustrado de tudo o que poderia lhe tornar habitável
Eu não vejo mais que estreitos corredores emaranhados
Escadas em parafuso
Somente no alto da torre de vigia
Rebenta o ar talhado em rosa
Banida supersticiosamente a área primitiva de uma braçada de juncos para se esticar
O arquiteto louco do que restava de espaço livre
Parece ter sonhado uma garagem para mil mesas redondas
Em cada um delas são presumidos cear ao caviar ao champanhe
Comigo os bustos de cera uns mais bonitos que os outros mas por entre eles incognoscível deslizou um busto vivo
Bustos pois não há mais que uma toalha com reflexos cambiantes para todas as mesas
Assaz lacunar para aprisionar o talhe de todas essas mulheres falsas e verdadeiras
Tudo o que é ou deixa de ser por baixo da toalha se esconde na música
Oráculo esperado da naveta de um sapato
Mais brilhante do que um peixe jogado na erva
Ou uma panturrilha que faz um buquê de lâmpadas de mineiro
Ou o joelho que lança uma peteca no meu coração
Ou uma boca que pende que pende a verter seu perfume
Ou uma mão de início meio à margem no instante mesmo em que parece que ela não evita um contato de asas com a minha mão
Ó meniscos
Para além de todos os presentes permitidos e proibidos
Em dorso de elefantes esses pilares que se estreitam até o fio de seda nas grutas
Meniscos adorável cortina de tangência quando a vida não é mais que uma garça que bebe
E dizes tu que tão bem eu não te verei mais


PASSAGEM DE NÍVEL

De um toque de varinha haverão sido as flores
E o sangue
O raio pousa sobre a janela congelada
Ninguém
Pfff  compreendeu-se que o espaço se desbordava
Depois o travesseiro de ar deslizou sob o sanfeno
As avalanches ergueram a cabeça
E no interior das pedras as espáduas se sublevaram
Os olhos estavam ainda fechados na água desconfiada
Das profundezas subia o triplo colarinho
Que ia fazer o orgulho do armário
E a canção das cigarras segurava seu bilhete
Na gare ainda envelopada de todos os seus fios
A mulher mordia uma maçã de vapor
Sobre os joelhos de uma grande besta branca
Nas oficinas sobre os estabelecimentos silenciosos
A plaina da lua alisava as folhas cortantes
E a mó cuspia suas borboletas
Sobre a borda do papel em que escrevo


GUERRA

Eu observo a Besta enquanto ela se lambe
Para melhor se confundir com tudo o que a circunda
Seus olhos cor de marulho
De improviso são a lagoa atraindo para ela a roupa suja os detritos
Aquela que detém sempre o homem
A lagoa com sua pequena praça da Ópera no ventre
Pois a fosforescência é a chave dos olhos da Besta
Que se lambe
E sua língua
Lançada não se sabe de antemão jamais para onde
É uma encruzilhada de fornalhas
Desde baixo eu contemplo seu palácio
Feito de lâmpadas em sacos
E sob a abóbada azul de rei
De arções desdourados em perspectiva um no outro
À medida que corre o sopro feito da generalização ao infinito daquele desses miseráveis o torso nu que se apresentam em praça pública engolindo tochas a petróleo em uma acre chuva de tostões
As pústulas da Besta resplendecem dessas hecatombes de jovens gentes com que se empanturra o Número
Os flancos protegidos pelas rutilantes escamas que são as armadas
Abombadas de que cada uma gira à perfeição sobre sua dobradiça
Se bem que elas dependam umas das outras não menos que os galos que se insultam à aurora de monturo a monturo
Tocamos na falta de consciência enquanto alguns persistem a sustentar que o dia vai nascer
A porta eu quis dizer a Besta se lambe sob a asa
E se vê é de rir se convulsionar os gatunos ao fundo de uma taberna
Essa miragem de que se tinha feito a bondade se arrazoa
Essa é uma jazida de mercúrio
Aquela podia bem se tragar de um só golpe
Cri que a Besta se virava para mim revi a imundície do relâmpago
Que ela é branca em suas membranas no desliado de seus bosques de bétulas onde se organiza a vigília
Nos cordames de seus navios à proa dos quais mergulha uma mulher que as fadigas do amor adornaram de um dominó verde
Falso alerta a Besta guarda suas garras em coroa erétil ao redor dos seios
Eu tento não balançar tanto quando ela sacode a cauda
Que é de uma vez a carruagem biselada e o golpe de flagelo
No odor sufocante de cicindela
De sua liteira manchada de sangue negro e de ouro contra a lua ela aguça um dos seus cornos na árvore entusiasta do agravo
Encalacrando-se com langores aterrorizantes
Lisonjeada
A Besta se lambe o sexo eu nada disse


MOTE A MANTE

A Matta.

I

A CURTA ESCALA

Passa uma névoajoelhada
Diante das palavras que são a lua
(Os chifres da girafágua-furtada)
Eu demandei um cafélino
... Não um croassãntos-dumont
O que era desenlacetona
Faz-se moscadafalso
Para a ação toda nova
Vide o vidraceiro à veneziana
Em língua totêmica Mattatucanoctiluz
Mattalismãncenilheira

II

A PORTA BATE

A por       por       porta       por
Em ja       ne       la
Da qual odor amaro de limurarda
Aqui mera memória apele Milady de Winter
Alisando seu struzave detrás dos losangos da chuva
Pafrura-brifrusas o soalho é tão velho
Que através se vê o fogo da terra
Todas as bonitinhas a seu escupecolho
Como as andorinhas
Sobre os fios       em que eu toco       nestas gotas
De um instrumento desconhecido
Olmiovidosotista
No coração desse nó de serpentes
Que é a cruz suas quatro ventas fugidias suspensas em mamatas pi cardeais

Novembro de 1942 – janeiro de 1943.


O ENTARDECER É UMA PÁ

O entardecer é uma pá na mão de um deus. O que ele rejeita atrás de si pelo campo se abate sobre os pequenos castelos de vidro onde evoluem as serviçais cor de estrelas. Ali, em um montículo, os pós de beleza se medem para o dia seguinte em pirâmides a que serve um arco-íris do comprimento de teu braço. As carruagens de bancos mordem as luzes insólitas da granja e a sombra desce em filete de leite das tetas de cabras que grimpam as últimas a colina saltitante e paramentada. Ao longo dos riachos o pavio processionário se oculta pouco a pouco em direção ao molinete da preguiça e as estalactites negras aparecem nas salas de jantar. O deus repousa um momento e se esponja a fronte com um ninho. Depois os epídotos glaciais surgem nas encruzilhadas. Elas contêm as estátuas de Antígonas que se agrupam ligeiramente sobre as praças. O passante único dessas horas — ele não pode ser senão o único e sua memória é interrompida à meia-noite — se circunda de um manto de pirilampos e seu chapéu está picado por uma flecha indicando o lugar onde procurar a barca que imobilize Órion.

8 de maio de 1946, manhã.



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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Amirah Gazel (Costa Rica, 1964)
Poemas traduzidos por Davi Araújo (Brasil, 1979)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 136 | Junho de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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