sexta-feira, 14 de junho de 2019

ANDRÉ BRETON 1948 OS ALFINETES TRÊMULOS | XENÓFILOS | ESQUECIDOS


 OS ALFINETES TRÊMULOS


A INSCRIÇÃO BIALADA

Ao longo das ruas farfalhantes, as belas insígnias policromas desbotadas esgotam todas as variedades de caracteres românticos. Uma delas um momento me detém sob o encanto perverso dos quadros da época negativista de René Magritte. Mas o que eu contemplo de longe é dum Magritte extremamente nuançado — com a realidade em vias de ruptura ou conciliação? Em que se representa, do porte duma águia, uma borboleta azul-celeste sobre a qual se lê em letras brancas a palavra pombo. Não obstante, um naturalista desse nome, simplesmente...


FERRETES DA RAINHA NEGRA

Na outra extremidade da arcada, o mercado de peixes desenrola seus fastos aos lumes siderais do diodon, do cofre e de toda a gama, do amarelo-enxofre ao violeta-bispo pelas mais ousadas zebruras, os mais sabidos mosqueados, as mais caprichosas coberturas, de verdadeiros peixes-paraíso ardentes como as gemas. O que confere a esta pobre lucarna em pleno céu o seu turvo caráter, é assim que vêm até ela morrer algumas centelhas do luxo e do fogo das grandes profundezas. Sob a bancada espelhante ao infinito, na sombra se amontoando, imbuídas de rosas vermelhas e rosas, as conchas vazias de lambis através das quais foi soada a revolta negra tão sangrenta de 1848.


A PROVIDÊNCIA TORNA

Aliás, na escala dos sabores, as estranhas frutas despertam todas as surpresas — às quais se mesclam sabidamente certas decepções — do improvado. Sob sua veste oblonga eriçada, a graviola, semi-lampião semi-folhagem, entrega sua carne de sorvete nevoso; próximo a um poço o caimito faz deslizar ao centro de um outono derretendo sua corrente de sementes negras; sem esquecer esse figo de rubor violáceo ao qual se está proibido de morder: entre o palato e a língua, toda sorte de pequenos diabos-colmeiros tecem logo os fios de cola e assentam as ardósias da pior adstringência. E esses reis do pomar tropical, que Giorgio de Chirico teve o prazer de imobilizar em plena pujança junto à cabeça de Júpiter.


A LANTERNA SURDA

A Aimé Césaire, Georges Grattant, René Ménil.

E os grandes órgãos são a chuva como ela cai aqui e se perfuma: quê estação para a chegada em todos os sentidos sobre mil trilhos, para a manobra sobre outras tantas plataformas giratórias de seus expressos de vidro! A toda hora ela se carrega as suas lanças brancas e pretas, as couraças voando em faíscas de meio-dia para essas armaduras antigas feitas de estrelas que eu não havia ainda visto. O grande dia de preparativos que pode preceder a noite de Valburga no fosso de Absalão! Nele estou! Por pouco que a luz se vele, toda a água do céu pica em seguida sua tenda, de onde pendem os aparatos de vertigem e da água de novo se goteja para o acorde dos altos instrumentos de cobre verde. A chuva pousa seus vidros de lâmpada ao redor dos bambus, as arandelas dessas flores de vermelho agarradas às ramas pelos cotilédones, em torno dos quais há num minuto todas as figuras da dança ensinadas por duas borboletas de sangue. Então tudo se desenvolve ao fundo da tigela à feição das flores japonesas, aí uma clareira se entreabre: o heliotropismo salta em sapatos de bico curvo e unhas retorcidas. Ele prende todos os corações, recolhe de uma garça a sensitiva e desmaia a samambaia cujo broto ardente é a roda do tempo. Meu olho é uma violeta fechada ao centro da elipse, na ponta do chicote.


 XENÓFILOS


À NOITE NO HAITI

À noite no Haiti as fadas negras sucessivas levam a sete centímetros acima dos olhos as pirogas do Zambeze, os fogos síncronos dos morros, os campanários encimado por um combate de galos e os sonhos de éden que se sacodem afrontosamente ao redor da desintegração atômica. É a seus pés que Wilfredo Lam instala seu “vever”, quer dizer, o maravilhoso e sempre cambiante resplendor tombando dos vitrais inverossimilmente elaborados da natureza tropical sobre um espírito liberado de toda influência e predestinado a fazer surgir deste esplendor as imagens dos deuses. Em um tempo como o nosso, não se ficará surpreso ao ver se prodigalizar, aqui munida de chifres, a loa Encruzilhada Elegguà em Cuba que sopra sobre as asas das portas. Testemunho único e fremente sempre como se fosse pesado em balanças de folhas, revoada de garças à frente do estanque onde se elabora o mito de hoje, a arte de Wilfredo Lam se difunde desse ponto onde a fonte vital reflete a árvore-mistério, quero dizer, a alma perseverante da raça, para inundar de estrelas o DEVIR onde deve estar o melhor-estar humano.

Janeiro de 1946.


O MENOR RESGATE

No país de Elisa.

Tu que róis a mais odorante folha do atlas
Chile
Lagarta da mariposa-lua 1

Tu de que toda a estrutura desposa
A tenra cicatriz da ruptura da lua com a terra 2
Chile das neves
Como o lençol que uma bela rejeita ao se levantar

Em um clarão o tempo de descobrir
De toda a eternidade o que me predestina a ti
Chile
Da lua na sétima casa do meu mapa astral

Eu vejo a Vênus do Sul
Nascendo não mais da espuma do mar
Mas de um rio de azurita em Chuquicamata
Chile
Dos brincos araucanos em poços de lua

Tu que emprestas às mulheres os mais belos olhos de bruma
Tocados por uma pluma de condor
Chile
Do olhar dos Andes não se saberia dizer melhor

Acorda o órgão do meu coração às estridências dos altos veleiros de estalactites
Rumo ao cabo Horn
Chile
Erguido sobre um espelho

E me devolva o que ela está sozinha a segurar
O ramo de mimosa ainda trêmula no âmbar
Chile dos cateadores
Terra de meus amores

[NOTAS]
1. É uma grande borboleta verde amêndoa finalizando em clave de sol que passa perto da meia-noite. Eu não a conhecia antes de me ir à América. Ela me visitou pouco depois em uma casa situada em pleno bosque. Sua vinda e sua insistência me pareceram augurais.
2. “Los geólogos han descubierto un hecho adicional que presta una fuerte base a la hypotesis de que la cuenca del Pacifico es realmente el ‘agujero’ dejado en la superficie de la Tierra por la separación de su satélite.” (George Gamow: Biografía de la Tierra).


ULI

Por certo tu és um grande deus
Eu te vi dos meus olhos como nenhum outro
Tu estás ainda coberto de terra e de sangue tu acabas de criar
Tu és um velho camponês que não sabe nada
Para te restaurares tu comestes como um porco
Tu estás coberto de manchas de homem
Vê-se que tu te hás forrado até as orelhas
Tu não escutas mais
Tu nos perscrutas de um fundo de concha
Tua criação te diz mãos ao alto e tu ameaças ainda
Tu dás medo tu maravilhas


RANO RARAKU

Que belo é o mundo
A Grécia jamais existiu
Eles não passarão
Meu cavalo encontra seu cocho na cratera
Os homens-pássaros os nadadores curvos
Voaram em torno da minha cabeça pois
Sou eu também
Quem estou ali
Com três quartos atolado
Prazenteando os etnólogos
Na amical noite do Sul
Eles não passarão
A planície é imensa
Aqueles que avançam são ridículos
As altas imagens estão tombadas


 ESQUECIDOS


ESCUTA À CONCHA

Eu não havia começado a te ver tu eras ALBA

Nada estava desvelado
Todos os barcos se berçavam na costa
Desatando os favores (tu sabes) dessas caixas de guloseimas
Rosas e brancas entre as quais ambula uma naveta de prata
E eu te nomeei Alba a tremer
Alba a tremer

Dez anos depois
Eu te reencontro na flor tropical
Que se abre à meia noite
Um só cristal de neve que transbordaria a taça de tuas duas mãos
Se chama na Martinica a flor do baile
Ela e tu vós compartis o mistério da existência
O primeiro grão de rocio passando de longe todos os outros loucamente irisados contendo tudo

Eu vejo o que me está oculto para todo sempre
Quando tu dormes na clareira do teu braço sob as borboletas de teus cabelos
E quando tu renasces da fênix da tua fonte
Na menta da memória
Do chamlote enigmático da semelhança em um espelho sem fundo
Tirando o alfinete dessa que se não verá senão uma vez

No meu coração todas as asas da milkweed
Fretam o que tu me dizes

Tu levas um vestido de verão que tu não te conheces
Quase imaterial ele é constelado em todos os sentidos de ímãs em ferradura de um belo vermelho mínio com pés azuis


No mar, 1946.



NA ROTA DE SAN ROMANO

A poesia se faz na cama como o amor
Seus lençóis desfeitos são a aurora das coisas
A poesia se faz nos bosques

Ela tem o espaço de que precisa
Não este aqui mas o outro que condicionam

O olho do milhafre
O orvalho sobre um equisseto
A lembrança de uma garrafa de Traminer embaçada sobre um prato de prata
Uma alta verga de turmalina sobre o mar
E a rota da aventura mental
Que sobe a pique
Uma pausa ela se embrenha de súbito

Isso não se grita sobre os telhados
É inconveniente deixar a porta aberta
Ou chamar as testemunhas

Os bancos de peixe as sebes de chapins
Os trilhos à entrada de uma grande estação
Os reflexos das duas margens
Os sulcos no pão
As bolhas do riacho
Os dias do calendário
A milfurada

O ato de amor e o ato de poesia
São incompatíveis
Com a leitura do jornal em alta voz

O sentido do raio de sol
A luz azul que religa os talhes de machado do lenhador
O fio do papagaio em forma de coração ou de nassa
O batimento a compasso da cauda dos castores
A diligência do relâmpago
O jorro das drágeas do alto dos velhos degraus
A avalanche

A câmara dos prestígios
Não senhores essa não é a oitava Câmara
Nem os vapores da camarada um domingo à noite

As figuras da dança executadas em transparência acima dos pântanos
A delimitação contra um muro de um corpo de mulher ao lançar de punhais
As volutas claras da fumaça
Os cachos de teus cabelos
A curva da esponja das Filipinas
Os laceados da serpente coral
A entrada da hera nas ruínas
Ela tem todo o tempo diante dela

O abraço poético como o abraço de carne
Enquanto dura
Impede toda escapada pela miséria do mundo

1948.
  


*****

EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Amirah Gazel (Costa Rica, 1964)
Poemas traduzidos por Davi Araújo (Brasil, 1979)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 136 | Junho de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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