sexta-feira, 14 de junho de 2019

ANDRÉ BRETON 1959 CONSTELAÇÕES


PERSONAGENS NA NOITE GUIADOS PELOS TRAÇOS FOSFORESCENTES DOS CARACÓIS

Raros são os que têm provado a necessidade duma ajuda similar em pleno dia, — esse pleno dia em que o comum dos mortais tem a amável pretensão de ver claro. Eles se chamam Gérard, Xavier, Arthur... esses que souberam que, em vista do que estaria a atingir, os caminhos traçados, tão feros de seus postes indicadores e não deixando nada a desejar em relação ao bem tangível apoio do pé, não levam estritamente a nenhuma parte. Eu digo que os outros, que se gabam de ter os olhos bem abertos, estão sem saber perdidos num bosque. À vigília, o todo seria de recusar à falaciosa claridade o sacrifício deste luzir de labradorita que nos derruba bem célere e tão vãmente as premonições e as incitações do sonho da noite quando ela é tudo o que nós temos de próprio para nos dirigir sem percalços no dédalo da rua.


A ESTRELA MATINAL

Ela diz ao pastor: “Aproxima-te. Sou eu que te atraía criança àquelas caves profundas onde o mar se retirando põe os ovos das tempestades aos quais lustra o sargaço, com miríades de pálpebras abaixadas. Somente à luz frisante, como se mete a mão sobre os soberbos fósseis ao longo da rota que se busca na montanha dinamitada, tu ardias de ver brotar a aresta de um cofre de muito antiga artesania que continha (não valendo mesmo a pena forçá-lo) tudo o que pode escorrer de ofuscante no mundo. Eu te lhe concedo posto que és tu como cada dia a que teus sulcos cotoviam e que, mais honrada que qualquer uma, tua companheira sorri ao te encontrar.”


AO 13 A ESCADA ROÇARA O FIRMAMENTO

Aquela que ama o Amor, sabe-se que, por haver desejado lhe ver aclarando-o duma lâmpada enquanto ele dormia, ela põe-lhe em fuga ao lhe deixar cair à mão uma gota de óleo inflamada. É-lhe dito que ela não o reencontrará senão bem no alto da Torre cuja escada começa como aquela do Hotel da Rainha Branca em Paris, mas se rompe e se eriça de sempre mais obstáculos se elevando labirinto vertical em corte de múrex caído em ruínas. Ver-se-á sem fôlego atingir o cume, sua gaze mais dilacerada e lúcida do que uma noite de verão. Infelizmente, o deus não está aí e as tentações de baixo, inumeráveis tocadoras de tímpanos com cabeça de grilo, vão de lá em sua ronda para lhe bombear o coração: querida, isso será feito, tu não sentirás mais nada. É então, mas somente então, que no inaudito se assegura e à toda a pressa retine a voz da Torre: “Os olhos fechados, redesça por onde tu és vinda. Tu não te deterás ao nível do solo. É quando novamente tu estiveres chegada aqui em reflexo que te será revelado o equilíbrio das forças e que tu pousarás o dedo sobre o cofre de perfumes.”


A POETISA

A Bela Cordoeira de nossos dias encontra sua missão, que é de fazer granizar o sal da terra. Ela mira o instante em que o sol deve tornar-se “negro como uma saca feita de pelo” e o vento juncar a terra de figos verdes. Tal está, parece, arranjado, embora a lua persista em espalhar o odor de seringa. Os jogos do amor e da morte se perseguem sob o peristilo em detonações de armas de fogo. Das brenhas onde choca uma canção enfeitiçante furada por relâmpagos e ondula a ponta do seio da beladona. Lamiel, o tição aos dedos, apronta-se a incendiar o Palácio da Justiça.


ATÉ VER-SE O ARCO-ÍRIS

“22, 23, 24...” Dum frumento mais fundente que a neve a rosa monstro do salto à corda se evade no querido pátio gris quite enfim de suas janelas chilreantes. Dentre as volutas da flor saibrosa se lança um coração de criança sempre mais alto até se destacar em diabolô contra à fúcsia da mansarda. “38, 39, 40...” O chamariz passa com a muleta do sangue que ferve e, de ofuscante ver-me, ver-se a haste de vaga-lumes que sozinha funde da guarda insensível à força de presteza. Enquanto que, do caldeirão imemorial donde sua cabeleira se subleva aos corcovos em influxos de asas de corvo, se exala o alto aroma das esquivas e das fintas, Concha soletra até, nele compreendida a palavra desmaiar, o alfabeto do amor.


MULHERES À BEIRA DE UM LAGO DE SUPERFÍCIE IRISADA PELA PASSAGEM DE UM CISNE

Seu devaneio se aveluda da carne de um pensar proporcionado pelas dimensões do olho ciclópico que abrem os lagos e cuja fixidez fascina quem deveria se fazer o terrível arauto do Retorno Eternal. A bela esteira partindo do coração inerva as três pétalas de base da imensa flor que voga se consumindo sem fim para renascer em um flamejar de vitrais. Estes são os oratórios subjacentes, mais que profanos, aonde se retiram as belas, cada uma em seu segredo. Elas ali se fazem em tapete voador, sobre a maravilhosa nuvem do desconhecimento. É aqui que o vapor dos alambiques faz colmeia e que o braço, que reflete a se equivocar o pescoço de cisne, aponta distraidamente ao ângulo do mel. Mais, entre as palavras, a menor brisa: o luxo está na volúpia. — Toda mulher é a Dama do Lago.


O PÁSSARO MIGRATÓRIO

Nos muros dos pequenos burgos, dos vilarejos perdidos, esses belos signos a giz, ao carvão, é o alfabeto dos vagabundos que se desenrola: um quinhão de pão, talvez um copo três casas depois da forja; castelo: abrigo do mastim que pode saltar a sebe. Alhures o pequeno homem nu, que tem a chave das charadas, está sempre sentado em sua pedra. A quem queira escutá-lo, o que é bem raro, ele ensina a língua dos pássaros: “Quem encontra essa verdade de letras, de termos, em seguida não pode jamais, ao se exprimir, cair abaixo de sua concepção.” Sob as pontes de Paris, o rio amoeda, entre outras senhas, a lembrança das priapeias do tempo em que o chefe dos jograis levava tributo sobre cada boba mulher. E cada um de nós passa e repassa, rastreando incansavelmente sua quimera, a cabeça em cabaça na ponta de seu bordão.


CIFRAS E CONSTELAÇÕES ENAMORADAS DE UMA MULHER

No glóbulo de vida toda a chance e por isso ele se aglomera em si mesmo tantas vezes quanto a gota de chuva em folha e vidraça, nos traçados não antes decididos que desaparecidos de que ela guarda o segredo e ele em tantos sentidos quanto indicam os raios do sol. É como as pérolas dessas caixinhas redondas da infância brinquedo como não se vê mais que não teriam abandonado tanto que ao preço de uma longa paciência não se havia pontuado até o último alvéolo uma boca esboçando um sorriso. A cabeça de Ogmios coberta do javali soa sempre tão clara pelo ondulado da aragem: para sempre ela nos oferece uma face batida da mesmo quina que os céus. Ao centro, a beleza original, balbuciante de vogais, servida de um supremo dedilhado pelos números.


O BELO PÁSSARO DECIFRANDO O DESCONHECIDO AO CASAL DE NAMORADOS

Os bancos das alamedas exteriores se encurvam com o tempo sob o abraço das lianas que se estrelam bem baixo de belos olhos e lábios. Apesar de nos parecerem livres, continuam ao redor deles a volitar e fundir umas sobre as outras essas flores ardentes. Elas existem para nos traduzir em termos concretos o adágio dos mitógrafos que deseja que a atração universal seja uma qualidade do espaço e a atração carnal a filha dessa qualidade mas se esquece por demais de especificar que cabe aqui à filha, para o baile, adornar a mãe. É suficiente um sopro para liberar essas miríades de plumas plenas de aquênios. Entre sua ascensão e sua recaída, conforme a curva sem fim do desejo, inscrevem-se em harmonia todos os signos que engloba a partitura celeste.


A PASSAGEM DO PÁSSARO DIVINO

O mundo se distende como a casca em impecável hélice de um limão verde. Cintila o volteio daquele que suplica: “Mais um minuto, senhor carrasco!” E a desconcertante cornamusa, concebida em tempos sempre recuáveis para esposar os movimentos do coração ao qual ela se aplica estreitamente seja lá o que aconteça, dá de todos os seus bordões à estrela do pastor. Onde se deslaça — de um fluxo de faixas de Riemann — a beleza, quem a apreende tem já o pé sobre o pedal: “A parte material da planta está absolutamente consciente em ser comida.” É bem voluntariamente que a lagarta que a devora, se fez-se ela arrogante como aquela da dicranura vinula, se expõe, no sutil do devir, a ser a presa do pássaro. Mais nada transparece no aromal: “Um pássaro, uma borboleta não são jamais tristes. As borboletas são muito elevadas em espírito; elas brincam com as crianças; a borboleta o sabe e se diverte: ela escapa sempre, mesmo quando se lhe prende e mata.”

Paris, outubro – dezembro de 1958.



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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Amirah Gazel (Costa Rica, 1964)
Poemas traduzidos por Davi Araújo (Brasil, 1979)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 136 | Junho de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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