PERSONAGENS
NA NOITE GUIADOS PELOS TRAÇOS FOSFORESCENTES DOS CARACÓIS
Raros são os que têm provado a necessidade
duma ajuda similar em pleno dia, — esse pleno dia em que o comum dos mortais
tem a amável pretensão de ver claro. Eles se chamam Gérard, Xavier, Arthur...
esses que souberam que, em vista do que estaria a atingir, os caminhos
traçados, tão feros de seus postes indicadores e não deixando nada a desejar em
relação ao bem tangível apoio do pé, não levam estritamente a nenhuma parte. Eu
digo que os outros, que se gabam de ter os olhos bem abertos, estão sem saber
perdidos num bosque. À vigília, o todo seria de recusar à falaciosa claridade o
sacrifício deste luzir de labradorita que nos derruba bem célere e tão vãmente
as premonições e as incitações do sonho da noite quando ela é tudo o que nós
temos de próprio para nos dirigir sem percalços no dédalo da rua.
A
ESTRELA MATINAL
Ela diz ao pastor: “Aproxima-te. Sou eu que te atraía criança àquelas
caves profundas onde o mar se retirando põe os ovos das tempestades aos quais
lustra o sargaço, com miríades de pálpebras abaixadas. Somente à luz frisante,
como se mete a mão sobre os soberbos fósseis ao longo da rota que se busca na
montanha dinamitada, tu ardias de ver brotar a aresta de um cofre de muito
antiga artesania que continha (não valendo mesmo a pena forçá-lo) tudo o que
pode escorrer de ofuscante no mundo. Eu te lhe concedo posto que és tu como cada dia a que teus sulcos cotoviam e que,
mais honrada que qualquer uma, tua companheira sorri ao te encontrar.”
Aquela que ama
o Amor, sabe-se que, por haver desejado lhe ver aclarando-o duma lâmpada
enquanto ele dormia, ela põe-lhe em fuga ao lhe deixar cair à mão uma gota de
óleo inflamada. É-lhe dito que ela não o reencontrará senão bem no alto da
Torre cuja escada começa como aquela do Hotel da Rainha Branca em Paris, mas se
rompe e se eriça de sempre mais obstáculos se elevando labirinto vertical em
corte de múrex caído em ruínas. Ver-se-á sem fôlego atingir o cume, sua gaze
mais dilacerada e lúcida do que uma noite de verão. Infelizmente, o deus não
está aí e as tentações de baixo, inumeráveis tocadoras de tímpanos com cabeça de grilo, vão
de lá em sua ronda para lhe bombear o coração: querida, isso será feito, tu não sentirás mais
nada. É então, mas somente então, que no inaudito se assegura e à toda a pressa retine a voz da Torre:
“Os olhos fechados, redesça por onde tu és vinda. Tu não te deterás ao nível do
solo. É quando novamente tu estiveres chegada aqui em reflexo que te será revelado o equilíbrio das forças e que tu
pousarás o dedo sobre o cofre de perfumes.”
A POETISA
A Bela
Cordoeira de nossos dias encontra sua missão, que é de fazer granizar o sal da
terra. Ela mira o instante em que o sol deve tornar-se “negro como uma saca
feita de pelo” e o vento juncar a terra de figos verdes. Tal está, parece,
arranjado, embora a lua persista em espalhar o odor de seringa. Os jogos do
amor e da morte se perseguem sob o peristilo em detonações de armas de fogo.
Das brenhas onde choca uma canção enfeitiçante furada por relâmpagos e ondula a
ponta do seio da beladona. Lamiel, o tição aos dedos, apronta-se a incendiar o
Palácio da Justiça.
ATÉ VER-SE O ARCO-ÍRIS
“22, 23, 24...”
Dum frumento mais fundente que a neve a rosa monstro do salto à corda se evade
no querido pátio gris quite enfim de suas janelas chilreantes. Dentre as
volutas da flor saibrosa se lança um coração de criança sempre mais alto até se
destacar em diabolô contra à fúcsia da mansarda. “38, 39, 40...” O chamariz
passa com a muleta do sangue que ferve e, de ofuscante ver-me, ver-se a haste
de vaga-lumes que sozinha funde da guarda insensível à força de presteza.
Enquanto que, do caldeirão imemorial donde sua cabeleira se subleva aos
corcovos em influxos de asas de corvo, se exala o alto aroma das esquivas e das
fintas, Concha soletra até, nele compreendida a palavra desmaiar, o alfabeto do
amor.
Seu devaneio se
aveluda da carne de um pensar proporcionado pelas dimensões do olho ciclópico
que abrem os lagos e cuja fixidez fascina quem deveria se fazer o terrível arauto
do Retorno Eternal. A bela esteira partindo do coração inerva as três pétalas
de base da imensa flor que voga se consumindo sem fim para renascer em um
flamejar de vitrais. Estes são os oratórios subjacentes, mais que profanos,
aonde se retiram as belas, cada uma em seu segredo. Elas ali se fazem em tapete
voador, sobre a maravilhosa nuvem do desconhecimento. É aqui que o vapor dos
alambiques faz colmeia e que o braço, que reflete a se equivocar o pescoço de
cisne, aponta distraidamente ao ângulo do mel. Mais, entre as palavras, a menor
brisa: o luxo está na volúpia. — Toda mulher é a Dama do Lago.
O PÁSSARO MIGRATÓRIO
Nos muros dos
pequenos burgos, dos vilarejos perdidos, esses belos signos a giz, ao carvão, é
o alfabeto dos vagabundos que se
desenrola: um quinhão de pão, talvez um copo três casas depois da forja;
castelo: abrigo do mastim que pode saltar a sebe. Alhures o pequeno homem nu,
que tem a chave das charadas, está sempre sentado em sua pedra. A quem queira
escutá-lo, o que é bem raro, ele ensina a língua
dos pássaros: “Quem encontra essa verdade de letras, de termos, em seguida
não pode jamais, ao se exprimir, cair abaixo de sua concepção.” Sob as pontes
de Paris, o rio amoeda, entre outras senhas, a lembrança das priapeias do tempo
em que o chefe dos jograis levava tributo sobre cada boba mulher. E cada um de
nós passa e repassa, rastreando incansavelmente sua quimera, a cabeça em cabaça
na ponta de seu bordão.
No glóbulo de
vida toda a chance e por isso ele se aglomera em si mesmo tantas vezes quanto a
gota de chuva em folha e vidraça, nos traçados não antes decididos que
desaparecidos de que ela guarda o segredo e ele em tantos sentidos quanto
indicam os raios do sol. É como as pérolas dessas caixinhas redondas da
infância brinquedo como não se vê mais que não teriam abandonado tanto que ao
preço de uma longa paciência não se havia pontuado até o último alvéolo uma
boca esboçando um sorriso. A cabeça de Ogmios coberta do javali soa sempre tão
clara pelo ondulado da aragem: para sempre ela nos oferece uma face batida da
mesmo quina que os céus. Ao centro, a beleza original, balbuciante de vogais,
servida de um supremo dedilhado pelos números.
O BELO PÁSSARO DECIFRANDO O DESCONHECIDO AO CASAL DE
NAMORADOS
Os bancos das
alamedas exteriores se encurvam com o tempo sob o abraço das lianas que se
estrelam bem baixo de belos olhos e lábios. Apesar de nos parecerem livres,
continuam ao redor deles a volitar e fundir umas sobre as outras essas flores
ardentes. Elas existem para nos traduzir em termos concretos o adágio dos
mitógrafos que deseja que a atração universal seja uma qualidade do espaço e a
atração carnal a filha dessa qualidade mas se esquece por demais de especificar
que cabe aqui à filha, para o baile, adornar a mãe. É suficiente um sopro para
liberar essas miríades de plumas plenas de aquênios. Entre sua ascensão e sua
recaída, conforme a curva sem fim do desejo, inscrevem-se em harmonia todos os
signos que engloba a partitura celeste.
A PASSAGEM DO PÁSSARO DIVINO
O mundo se
distende como a casca em impecável hélice de um limão verde. Cintila o volteio
daquele que suplica: “Mais um minuto, senhor carrasco!” E a desconcertante
cornamusa, concebida em tempos sempre recuáveis para esposar os movimentos do
coração ao qual ela se aplica estreitamente seja lá o que aconteça, dá de todos
os seus bordões à estrela do pastor. Onde se deslaça — de um fluxo de faixas de
Riemann — a beleza, quem a apreende tem já o pé sobre o pedal: “A parte
material da planta está absolutamente consciente em ser comida.” É bem
voluntariamente que a lagarta que a devora, se fez-se ela arrogante como aquela
da dicranura vinula, se expõe, no sutil do devir, a ser a presa do pássaro.
Mais nada transparece no aromal: “Um pássaro, uma borboleta não são jamais
tristes. As borboletas são muito elevadas em espírito; elas brincam com as
crianças; a borboleta o sabe e se diverte: ela escapa sempre, mesmo quando se
lhe prende e mata.”
Paris, outubro – dezembro de 1958.
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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO
1919-2019
Artista convidada: Amirah Gazel (Costa
Rica, 1964)
Poemas traduzidos por Davi Araújo (Brasil, 1979)
Poemas traduzidos por Davi Araújo (Brasil, 1979)
Agulha
Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número
136 | Junho de 2019
editor
geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
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assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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