Quando o poeta francês Benjamin Péret chega
no Brasil, em fevereiro de 1929, tem 30 anos de idade e quase dez anos de atividade
no seio do grupo que fundou o surrealismo. Trata-se de um homem com uma trajetória
e um pensamento já conformados, arraigados numa experiência juvenil determinante
para o curso de sua vida. Posteriormente, a um questionário que perguntará: “Estreia
na vida?”, responderá ironicamente: “A Guerra de 1914, o que facilitou tudo!”[1]
Péret
faz parte da jovem geração que sobreviveu à primeira maior carnificina dos tempos
modernos, após sofrer na própria carne o autoritarismo obtuso do exército francês,
no qual sua mãe obrigou-o a se alistar na véspera da guerra. O abalo moral provocado
em Péret, bem como em outros de sua geração, pelo que consideram ser a manifestação
da falência moral e histórica da ordem ocidental, desencadeará nele uma revolta
absoluta, que guardará intacta até o fim de sua vida, com uma capacidade especial
de renúncia e de denúncia. O homem que desembarca no Rio, em 1929, está engajado
numa aventura cujo ponto de partida é uma convicção arraigada: é inaceitável a ordem
social, moral, intelectual e artística que legitimou, mesmo que parcialmente, a
barbárie na qual uma parte da humanidade desapareceu. Desse homem — do qual Paul
Éluard dirá: “Quem é Benjamin Péret? Um homem que parece um homem” — esta convicção
fez um homem intransigente. Mas também um homem aberto, disponível a tudo que permitisse
encontrar uma saída. Esse poeta — que, fiel aos seus engajamentos juvenis até o
fim de sua vida, permanecerá, junto com André Breton, o último membro do núcleo
histórico a impulsionar o movimento surrealista — não hesitará, em 1944, em propor
ao mesmo Breton o abandono da sigla surrealismo, tal seu temor de que o conservantismo
dos epígonos desfigurasse e fossilizasse o movimento. Já em 1922, Péret havia manifestado
a mesma disponibilidade e tinha sido um dos primeiros a chamar à ruptura com Dadá.
Algumas semanas após a publicação do texto de Breton intitulado “Larguem tudo”,
escrevia um outro apelo, também publicado na revista Littérature:
Dadá morreu, Dadá morreu, Dadá morreu.
Dadá se propunha a destruir, mas ele próprio
se desagregou antes que sua ação se fizesse sentir. [...]
Abandono os óculos Dadá e, pronto para
ir embora, olho de onde vem o vento sem me preocupar em saber o que será nem onde
levará.
Amanhã, estarei ainda pronto a pegar carona
no carro de meu vizinho, caso ele se disponha a tomar uma outra direção do que a
minha.[2]
Sete
anos depois, no momento em que se defronta com um país novo, com um mundo diferente,
é importante apreciar a disponibilidade de Péret: sem ser um eclético ou um nômade
profissional, não está disposto a ficar preso a padrões que impediriam sua movimentação.
Se decidiu partir para o Brasil — quando os surrealistas estão engajados numa luta
interna determinante que desembocará, no final de 1929, na proclamação do Segundo
manifesto do surrealismo —, é porque aquilo que o impele a esse país é muito forte.
Efetivamente, durante aqueles três anos de estada no Brasil, Péret abrir-se-á à
essa nova experiência. Entretanto, para compreender por que, ao final desse período,
continuará num relativo isolamento intelectual e artístico, apesar dos numerosos
contatos com os modernistas, é necessário precisar alguns traços de seu itinerário
e de sua personalidade.
“POETA, ISTO É, REVOLUCIONÁRIO”[3]
É em 1920 que Péret encontra em Paris
o núcleo que fundará o surrealismo: André Breton, Louis Aragon, Philippe Soupault
e Paul Éluard, reagrupados em torno de Littérature,
reunidos pela mesma revolta e seduzidos pelo projeto dadaísta de destruição de todos
os valores tradicionais. Nesse grupo, o que caracteriza Péret?
É
um dos mais radicais na vontade de unir a ação e a palavra, de unificar sua vida
num engajamento total. Assim, em 1921, por ocasião do julgamento de Barrès,[4] Péret escolhe
o papel mais provocador. Aparece vestido com a farda francesa, representando o “soldado
desconhecido”, símbolo de todos os militares franceses desaparecidos durante a Primeira
Guerra Mundial e mito da França vitoriosa na mesma. Mas esse soldado desconhecido
desfila com passo de ganso e fala alemão. Imperturbável diante dos gritos de ódio
do público, Péret atinge, assim, os valores que denunciará durante toda a sua vida.
Completa, à sua maneira, o ato de acusação contra Barrès, redigido e lido por André
Breton por ocasião do julgamento. Desta forma, ambos centram seu ataque naquilo
que, para eles, constitui um obstáculo à progressão revolucionária do espírito,
já se diferenciando do gênero de negação cega e nihilista de Dadá. No registro do
humor violento e do sarcasmo escabroso, isto representa para Péret como que um ensaio
teatral do enfrentamento ideológico e poético no qual vai lançar-se com toda sua
vitalidade e radicalidade.
Após
a ruptura com Dadá, Péret torna-se diretor da revista do grupo: La Révolution surréaliste (A Revolução Surrealista).
Breton justifica assim a escolha:
No início, a ênfase da revista está colocada
sobre o surrealismo puro — o surrealismo, digamos, em estado nativo —, motivo pelo
qual sua direção é confiada a Pierre Naville e Benjamin Péret, que podem ser então
considerados como os mais integralmente animados do novo espírito e os mais rebeldes
a qualquer concessão.[5]
Péret
participa com todas as suas forças à vida do grupo surrealista, forma de atividade
coletiva que os surrealistas sempre sustentaram ser, de longe, superior a qualquer
outra. Engaja-se, sem restrições, na prática sistemática da “escritura automática”,
demonstrando uma aptidão mais desenvolvida que muitos de seus amigos em desligar
as conexões alimentadoras dos circuitos do pensamento dirigido, no sentido de permitir
a manifestação do “funcionamento real do pensamento” com mais liberdade. O crítico
Jean-Christophe Bailly observa:
Oferecendo a menor resistência possível
à escritura automática e à completa honestidade que ela implica, Benjamin Péret
terá sido o maior fator de aceleração mental no movimento surrealista.[6]
Claro,
ele não se recusa em utilizar formas de expressão e de ação conscientes e refletidas,
mas essas são apenas o indispensável complemento ao caráter profundamente irracional
de sua poesia. Segundo o professor Ferdinand Alquié,
É dedicando-se a criar uma poesia objetivamente
não interpretável que o surrealismo trouxe à tona a essência de toda a poesia. Com
suas imagens evidentes e desprovidas de sentido lógico, imagens que desencorajam
toda e qualquer explicação de estilo racional ou escolar, Benjamin Péret desempenhou
nessa purificação um papel essencial.[7]
Uma
voz e um mundo afirmam-se através dos poemas e contos publicados até a véspera de
sua partida para o Brasil.[8] Posteriormente,
Buñuel e Dalí explicarão a importância que essa poesia teve para eles, em 1928-1929,
quando Péret, então no Brasil, não os havia ainda encontrado. Nas palavras de Buñuel,
ele
era o poeta surrealista por excelência:
liberdade total de uma inspiração límpida, fluindo como fonte, sem nenhum esforço
cultural e no mesmo instante recriando um outro mundo.[9]
Nos
seus poemas como nos seus contos aparece o mesmo jorro de imagens, a mesma ausência
de premeditação. Evocam o estado de desligamento do sonho e aproximam-se das histórias
contadas com voz doce por Péret durante a fase dos sonos hipnóticos. Daí o traço
que, a partir de 1929, domina a obra de Péret: sua analogia com o mundo primitivo,
o mundo de antes do “pecado original”, da época em que se enraízam os mitos, época
na qual o extraordinário era a regra. É em sintonia com os narradores primitivos
que o poeta francês expressa-se, mesmo se seu mundo não evoca espíritos de cuja
boa vontade dependeria nossa sobrevivência. Mas, para ele, o ato poético tem a mesma
gravidade, produto de uma trajetória visando à restituição dos poderes perdidos,
dos quais o homem foi espoliado, durante séculos, pelo racionalismo estreito e pelos
tabus religiosos e sociais. Tudo isto inscreve-se na vontade de mudar a vida, que
é o móvel do grupo surrealista.
Mudar a vida,
mas também transformar o mundo: Péret
pesará na guinada rumo ao engajamento político do grupo a partir do verão de 1925.
Claro, a necessidade de uma mudança econômica e social que colocasse um fim às injustiças
gritantes jamais foi dissolvida na reivindicação surrealista, por mais absoluta
que fosse no início; mas é a partir de 1925 que os surrealistas dedicam, de maneira
sistemática, sua atenção à descoberta dos meios através dos quais tal transformação
pode ser efetivada. Neste sentido, Péret participa na elaboração dos manifestos
que marcam o engajamento dos surrealistas em prol da revolução social e em defesa
da Revolução Russa, numa trajetória que vai da colaboração com os animadores da
revista Clarté (um grupo de intelectuais
simpatizantes do comunismo) até a entrada no Partido Comunista Francês – PCF, onde
o domínio da burocracia stalinista não é ainda definitivo.[10] Nesta atuação,
expressa-se a vontade dos surrealistas em evitar um abstencionismo social que poderia
reconduzir o surrealismo a um plano meramente literário e artístico, mesmo se, para
além da condição social, sua grande preocupação continue sendo a condição humana.
Embora prontos a utilizar “martelos materiais” para quebrar a escravidão na qual
uma parte ínfima do gênero humano subjuga a outra, nem por isto abandonam a reivindicação
e a atividade surrealistas no que elas têm de específico. Péret permanecerá um poeta
e um militante revolucionário até o fim de sua vida, sem jamais misturar os dois
planos de atividade.
PÉRET E ELSIE HOUSTON
Em 1928, Péret casa-se, na França, com
Elsie Houston, cantora lírica brasileira, exímia intérprete de Villa-Lobos. Elsie
é filha de Dona Arinda, carioca, separada de um dentista norte-americano, o doutor
Houston, com quem tinha casado no Rio. Conforme Antonio Bento,
Na casa de dona Arinda Houston, onde se
reunia um grupo de intelectuais e artistas adeptos dos modernos, havia também um
ambiente de simpatia e interesse pela pintura de Ismael [Nery], graças ao espírito
aberto daquela senhora e de suas filhas, Celina Veloso Borges, Mary Houston Pedrosa
e Elsie Houston. Aliás, esta cantora, que possuía uma voz de timbre inesquecível,
incluía em seu repertório peças modernas, tendo se tornado, mais tarde, uma recitalista
de câmara de renome internacional.[11]
Com
efeito, a irmã de Elsie, Mary, casou-se com Mário Pedrosa, um jovem advogado e jornalista,
que, junto com seu amigo Lívio Xavier, entrou em 1926 no Partido Comunista Brasileiro.
Formados pelo historiador e professor da faculdade de direito do Rio, Edgardo Castro
de Rebelo, que os orientou em direção ao marxismo, leitores das revistas Clarté e La Révolution surréaliste, suportam mal a atmosfera provinciana e reacionária
do fim da Velha República. Cartas trocadas entre Mário Pedrosa e Lívio Xavier, publicadas
pelo professor José Castilho Marques Neto, mostram dois jovens desejosos de escapar
a dois perigos: aquele “de fazer da Revolução um ideal abstrato, longínquo, transcendental,
no plano do espírito, exclusivamente, [...], um idealismozinho vagabundo como outro
qualquer, capaz de contentar cérebros almofadinhas e [ilegível no texto original]
de poetas pequeno-burgueses”; por outro lado, o perigo do "otimismo necessário,
a limitação intelectual”, sobre a qual escreveu Pedrosa, “eis onde não posso chegar”.[12] Sabe-se,
aliás, por Antonio Bento, que Mário Pedrosa teria tido o projeto, com Lívio Xavier
e com o próprio A. Bento, de “lançar um manifesto, mais ou menos dentro do espírito
do surrealismo” nos primeiros meses de 1926.[13]
Em
1928, Pedrosa, enviado a Moscou para seguir a escola de quadros da Internacional
Comunista, convenceu-se, em Berlim — onde teve que interromper sua viagem por razões
de saúde — que o processo de degenerescência da direção do Partido Comunista Russo,
sob a direção de Stalin, exigia que se unisse à luta da Oposição Internacional de
Esquerda dirigida por Trotski. Pedrosa entra em contato com Pierre Naville, um ex-surrealista
que se tornara um dos quadros da corrente trotskista. É nesse momento que Mário
Pedrosa e Benjamin Péret se encontram e se conhecem.
Esse
encontro contribuirá para a evolução política de Péret. Segundo Pierre Naville,
em entrevista que nos concedeu em 1985, Péret teria manifestado, na véspera de sua
partida para o Brasil, a vontade de concretizar um contato com ele, então representante
de Trotski na Europa. Em todo o caso, entrando na família Houston, Péret encontra
um meio propício ao prosseguimento de sua reflexão tanto no terreno poético como
naquele da ação social. Por seu lado, Elsie Houston, em ligação com Villa-Lobos
e Mário de Andrade, desenvolve pesquisas sobre as canções populares brasileiras,
sobre as influências indígena e africana nessa arte. Inclusive, Elsie escreve e
publica um livro em francês sobre o tema: Canções
populares do Brasil, editado pela livraria orientalista Paul Geuthner. O interesse
pela arte e pensamento primitivos foi, sem dúvida nenhuma, um elemento determinante
para impulsionar Péret e Elsie a viajarem para o Brasil. Não esqueçamos o irresistível
apelo exercido pelas “artes selvagens” sobre os poetas e pintores surrealistas,
uma vez que “desnudam as raízes da criação artística e, consequentemente, contribuem
de uma maneira decisiva, à definição ou à verificação dos modos de intervenção do
surrealismo nas artes plásticas”[14] e na poesia.
Entre 1926 e 1928, as exposições dos pintores surrealistas foram acompanhadas de
exposições de objetos das ilhas da Oceania ou dos índios da Colômbia britânica,
do Novo México, da Colômbia e do Peru.
Entretanto,
a arte primitiva do Brasil é inteiramente desconhecida para eles. Péret deseja,
sem nenhuma dúvida, abrir um novo caminho de conhecimento. Tal perspectiva — vinculada
ao acordo político que se esboça entre Péret e Pedrosa e ao amor intenso que reúne
Benjamin e Elsie — afasta-o, portanto, fisicamente, do grupo surrealista no momento
preciso em que este está engajado nos embates que desembocarão, em 1929, no Segundo
manifesto do surrealismo.
Uma
carta de Péret, datada de 5 de dezembro de 1928 e dirigida a A. Guinle, rico mecenas
carioca, o comprova: ele pede um financiamento para uma viagem ao Brasil, com os
seguintes objetivos: “1) busca e compra de objetos pré-colombianos; 2) realização
de um filme documentário e de um filme romanceado sobre as lendas e costumes dos
índios; 3) artigos para publicação no Petit
Journal [do qual Péret é repórter] assim como projeto de um livro; 4) coleção
de cantos e músicas populares indígenas.”[15] O itinerário
projetado lhe faria percorrer a Amazônia, o Peru (Iquitos, Lima, as costas peruanas,
Cuzco), o norte da Bolívia, o Mato Grosso (Goiás) e, enfim, o rio Araguaia até o
mar. Guinle recusará financiar a viagem, apesar de se propor a facilitar os passos
e esforços do poeta francês.
Muitas
cartas de Péret evidenciam a seriedade com a qual encara esses objetivos. Assim,
confirma-se um interesse que vai ocupá-lo até o fim de sua vida e que suas estadas
no Brasil e no México reforçarão. O livro, do qual ele fala desde 1928 enquanto
um projeto, será terminado em 1959, algumas semanas antes de sua morte e publicado
postumamente na França, pela editora Albin Michel, em 1960, com o título Antologia dos mitos, lendas e contos populares
da América. Não há nenhuma dúvida que suas discussões, já em 1928, com Elsie,
Villa-Lobos e Pedrosa sobre esse assunto, fazem-lhe pressentir o parentesco de sua
obra e dessas artes.
Péret
embarcará com Elsie no início do ano de 1929, munido de mais de dez cartas de recomendação
escritas e assinadas por Villa-Lobos, nas quais é descrito como “um talentoso escritor,
poeta e jornalista francês” e Elsie como “uma admirável cantora, primogênita de
nossa nova raça brasileira, genuína em físico, alma e espírito”; ambos são apresentados
como desejosos de “conhecer o coração dos vários estados do Brasil”. São cartas
dirigidas para todas as pessoas que podem facilitar sua viagem de estudos na Amazônia,
no Mato Grosso e no norte do Brasil e, também, para todos os diretores de jornais
do Rio e de São Paulo e alguns da Paraíba. Villa-Lobos deseja que os dois sejam
bem recebidos, “à brasileira”, pela imprensa nacional.[16]
PÉRET NO BRASIL: 1929-1931
Péret e Elsie desembarcam no Brasil na
primeira quinzena de fevereiro de 1929. Sua chegada recebe uma boa cobertura da
imprensa. Frente à confusão e ignorância vigentes em relação à compreensão do surrealismo,
Péret opta por uma tática inicial de esclarecimento, visando a explicar, por exemplo,
numa entrevista publicada no Correio da Manhã,
que
o surrealismo não é nem o supra-realismo
como é corrente denominá-lo aqui, nem um realismo mais acusado, como aquele de Zola.
É um realismo espiritual que não admite a separação do valor moral da personalidade
individual.
Ao
mesmo tempo, mostra a importância e contribuição da obra de Freud para o surrealismo,
salientando que é uma das fontes, das bases do surrealismo. Explica também que o
surrealismo
repousa sobre a crença numa realidade
superior de certas formas de associações até então negligenciadas, na onipotência
dos sonhos, no jogo desinteressado do pensamento. Ele tende a arruinar definitivamente
todos os mecanismos psíquicos e a substituí-los na resolução dos principais problemas
da vida.[17]
Cita
a definição do surrealismo como “automático psíquico puro” (primeiro Manifesto de
Breton) e refere-se à pintura de Joan Miró e de Giorgio de Chirico como as mais
representativas do movimento. Em sua viagem a São Paulo, em março, em vários jornais
(como por exemplo, o Diário de São Paulo,
o Correio Paulistano), e em particular
na sua famosa conferência, “O espírito moderno: do simbolismo ao surrealismo”, proferida
em 18 de março no salão vermelho do Hotel Esplanada, irá sentir novamente a necessidade
de precisar sua definição, diferenciando-se dos simbolistas, em particular de Mallarmé
e Valéry, poetas em quem “a arte, segundo o ponto de vista extremado deles, anula
sua relação com a vida.” Péret destaca a dívida do surrealismo para com Apollinaire
e o cubismo, para com o humor em particular e para com a inspiração que ocupa um
lugar de destaque durante o período da guerra e aquele anterior à mesma. Tal conferência
e todo esse trabalho de esclarecimento permitirão, a partir de seu contato com o
movimento antropófago, uma clarificação, uma matização por parte do grupo de Oswald
de Andrade em relação ao surrealismo.
A
Revista de Antropofagia saúda a chegada
de Péret nos seguintes termos:
Não nos esqueçamos que o surrealismo é
um dos melhores movimentos préantropofágicos. A liberação do homem como tal, através
do ditado do inconsciente e de turbulentas manifestações pessoais, foi sem dúvida,
um dos mais empolgantes espetáculos para qualquer coração de antropófago que nestes
últimos anos tenha acompanhado o desespero do civilizado. [...]. Nunca antes soprara
tão alto o desespero final dos cristianizados.
Depois do surrealismo, só a antropofagia.
Benjamin Péret [...] é um antropófago
que merece cauins de cacique.[18]
O
número seguinte da revista saúda a conferência de Péret: “Foi uma lição. O ocidente
que nos tem mandado tanta coisa ruim, desta vez nos enviou uma exceção. Péret trouxe
a magnífica coragem de uma liberdade.”[19]
Naquele
mesmo momento, desenvolve-se uma polêmica pública entre Péret e o crítico de arte
Raul de Polillo, nas páginas do Diário de
São Paulo. Os títulos dos artigos dão uma ideia dos preconceitos enfrentados
por Péret:
-
Raul de Polillo: “Que é super-realismo? Uma entrevista com o Sr. Péret, em que não
se disse nada de mais e de menos, mas que deve ser lida” (02.03.1929);
-
Raul de Polillo: “O super-realismo não é coisa alguma. Vagas considerações lógicas
em torno de uma teoria literária que ninguém encara com seriedade” (05.03.1929);
-
Benjamin Péret: “O que é o surrealismo. Resposta a um imbecil” (07.03.1929); - Benjamin
Péret: “Onde estás?” (14.03.1929);
-
Raul de Polillo: “Os aventureiros da literatura. Paris é a rua 25 de março das Artes
e das Ciências Universais” (21.03.1929);
-
Benjamin Péret: “Pequeno panorama da pintura moderna” (27.03.1929).
Com
efeito, Péret e Elsie chegam ao Brasil num momento bem particular, em que agoniza
o sistema político da Velha República, cujos limites foram denunciados no terreno
estético pelos artistas modernistas de 1922 (ano que também testemunha o início
do movimento tenentista e a fundação do Partido Comunista Brasileiro); o casal chega
ao último período de vida desse regime, numa situação em que, no terreno da arte,
os modernistas conhecem, entre si, uma fase de diferenciação muito profunda. O movimento
mais radical — a Antropofagia, de Oswald — está envolvido numa tarefa de denúncia
e superação do caráter limitado dos objetivos anteriormente traçados pelo próprio
Oswald no seu Manifesto da poesia Pau-Brasil
(1924), objetivos que podem ser resumidos nos seguintes termos:
Incorporados ao nosso meio, à nossa vida,
é dever tirar dos recursos imensos do país, dos tesouros de cor, de luz de bastidores
que os circundam, a nossa arte que se afirma, ao lado de nosso intenso trabalho
material de construção de cidades e desbraçamento de terras, uma manifestação superior
de nacionalidade.
A
partir desse retorno ao genuinamente brasileiro (depois da denúncia da poesia da
Colônia que importava e imitava toda a arte da Europa), Oswald começa a denunciar
uma arte que se limita a registrar a realidade brasileira sem criticá-la, um flagrante
fixado, embora nativista, uma atitude esteticista por excelência. Para isto, utiliza
a Revista de Antropofagia que fazia junto
com Mário de Andrade, num momento em que tentará ampliar a diferenciação. Há testemunhas,
em particular Geraldo Ferraz, de que a presença de Benjamin Péret entre os antropófagos
foi um elemento chave para impulsionar aquela diferenciação. Após ter evocado suas
lembranças da chegada de Péret e Elsie Houston em São Paulo, Geraldo Ferraz explica:
Foi por aí que a Revista
de Antropofagia cessou sua publicação. As
dissidências que fermentavam dentro do grupo inicial, e que tinham transformado
aquele veículo de combate e criação num repositório de literaturas de todo jeito,
não dariam mesmo longa vida à publicação [...]. Passamos todos algumas semanas de
expectativa [...]. Oswald de Andrade reunira, em torno de si, além de Tarsila, Raul
Bopp, Jaime Adour de Câmara, Clóvis Gusmão, Nélson Tabajara, Osvaldo Costa, e a
aquisição mais recente da Antropofagia, o poeta surrealista Benjamin Péret [...].
Ainda não se declarara a cisão, mas pouco tempo depois ela se concretizaria. Os
fatos se precipitariam, com a tomada de posição de Benjamin Péret, de que recebi
o livro Et les seins mouraient, dedicado
a Elsie.[20]
Como
se sabe, a publicação, em 17 de março, do primeiro número da “2ª dentição” da Revista de Antropofagia, dirigida por Oswald
coincide com o início da estada de Péret no Brasil.
A
diferenciação será tal entre os antropófagos que Carlos Drummond de Andrade rompe
com Oswald porque o movimento “ainda não jantou o Benjamin Péret”.[21] Isto é,
Drummond estima que a presença de Péret foi um elemento intragável, o que o leva
à ruptura com o caminho tomado pela Revista.
Benedito Nunes é quem melhor analisa esse momento particular do grupo de antropófagos,
quando este recebe o pleno impacto da influência surrealista:
[...] considerando que o alvo dos tiros
era a sociedade, a moral convencional, o casamento monogâmico, a dominação política
da Igreja, a desigualdade social, podemos afirmar que o emprego das armas utilizadas
tinha muito mais do calor revolucionário surrealista do que da confusão dadaísta
que não queria dizer nada e que não queria fazer nada.[22]
Mas
a situação é contraditória. Não esqueçamos que, em 1929, Oswald pertence ainda ao
partido de Washington Luis, o PRP, e que fará campanha pela eleição de Júlio Prestes;
também, no congresso dos cafeicultores, defenderá publicamente a política do governo
de Washington Luis. A Revista de Antropofagia
publica alguns breves encartes de citações de Marx (talvez sob influência de Péret),
mas, ao mesmo tempo, apresenta “a viagem filosófica do conde Keyserling”, em julho
de 1929, como “outro grande acontecimento”, de igual importância e no mesmo plano
que a próxima (e primeira) exposição de Tarsila no Rio de Janeiro: “[...] Keyserling
é o grandioso desespero ocidental e a ânsia de renovamento de que só a América natural
possui a chave”.[23] No mesmo momento em que Oswald
de Andrade recebe de braços abertos o filósofo alemão, Benjamin Péret escreve um
artigo virulento (“Keyserling, filósofo reacionário? — resposta à sua conferência”)
que tenta publicar na imprensa paulista.
Nesse
texto político, um dos primeiros que se conhece de Péret, encontrado nos arquivos
de Lívio Xavier, ele critica as posições metafísicas e confusionistas de Keyserling,
embora demonstrando um manuseio ainda sumário do marxismo. Nas suas cartas à Elsie,
em outubro de 1929, Péret duvida da publicação do artigo na imprensa brasileira
“porque está cheirando demais a comunismo”; em seguida, confirma que o artigo foi
recusado tanto pelo Correio Paulistano
como pelo Diário de São Paulo.
No
presente estágio das pesquisas, a ausência de documentos não permite seguir passo
a passo as relações de Péret e dos membros do grupo da Revista de Antropofagia (cujo último número será aquele de 01.08.29).
Sabe-se que a tentativa de realizar o Congresso de Antropofagia, em outubro de 1929,
não será concretizada e que o grupo cessará suas atividades em 1930. Mas, é em torno
do verão de 1929 que a atividade e a elaboração comuns, dos antropófagos com Péret,
parecem encontrar seus limites. Não há dúvida que o engajamento político e poético
revolucionários de Péret irá dissuadir os antropófagos de avançar mais além com
o surrealismo. Para Péret e os surrealistas, não há hiatos entre o poeta e o militante
revolucionário. Há indivíduos dirigidos por uma ação poética do espírito tentando
reunificar o homem mutilado e dividido. Há a exigência absoluta de uma unidade que
engloba a vida cotidiana e a existência social num mesmo projeto de transformação
revolucionária do mundo e das relações humanas. Péret e seus amigos cortaram as
amarras com o mundo da “literatura”, o qual, aceitando a ruptura entre a vida e
a obra do escritor, remete esta última ao quadro das estruturas alienadas; vivem
na tensão ética da luta pela vitória da revolução social, integrada à sua ação poética
e elemento da mesma. O “sucesso”, no sentido arrivista do termo, não lhes interessa.
Desejam ser os precursores da nova sociedade onde o clima das obras de experimentação
e de investigação por eles reclamados será o próprio clima da vida, onde não existirá
mais a divisão entre trabalho intelectual e trabalho manual, o antagonismo entre
elite artística e massas incultas.
Após
a chamada Revolução de 1930, Oswald de Andrade, então casado com Pagú, conhecerá
uma evolução, que o levará à adesão, em 1931, ao Partido Comunista Brasileiro, que
então vive uma fase ultra sectária (dita do “terceiro período dos partidos comunistas”),
quando todo aderente de origem intelectual é tido como suspeito. Numa análise sobre
os “surrealismos periféricos”, em particular aqueles da América Latina, o professor
francês Pierre Rivas explica:
[...] 1930 marca, como é sabido, em toda
parte, o tempo do refluxo, o retorno ao tema, ao realismo, passagem da vanguarda
à modernidade. É sobretudo o tempo do confronto entre vanguarda e realismo: populismo
socialista, neorrealismo, literatura proletária. Este confronto está no coração
do Segundo manifesto do surrealismo [...]. A especificidade histórico-política destes
países periféricos traduzir-se-á por uma colocação entre parênteses do avanço surrealista.
As ditaduras existentes [...] e as urgências sociais irão condenar o artista a uma
má consciência ou a uma
renúncia. As oposições entre revolta burguesa e revolução social, vanguarda e subdesenvolvimento,
engajamento e formalismo, conduzem àquela espécie de terrorismo personificado por Pablo Neruda [...].[24]
É
o período no qual numerosos artistas aceitam a dependência em relação a seu Estado
burguês nacional ou em relação ao Estado burocrático stalinista (a União Soviética),
momento em que o espaço por uma arte revolucionária independente deverá ser conquistado
a duras penas: à contracorrente, ao preço de um retraimento e de um grande isolamento.[25]
De
fato, a via de uma cooperação estreita com uma fração de intelectuais radicais brasileiros
fechar-se-á para Benjamin Péret, que se chocará, além disso, com os limites das
opções estéticas dos meios de esquerda brasileiros e com a influência esterilizante
de um marxismo brasileiro muito marcado pelo positivismo e por um materialismo mecanicista.
No
decorrer dos anos 1930 e 1931, Péret lançar-se-á a fundo na atividade política internacionalista.
Junto com o grupo dirigido por Mário Pedrosa, Lívio Xavier e Aristides Lobo, será
um dos fundadores, em 21 de janeiro de 1931, da Liga Comunista do Brasil, seção
brasileira da Oposição Internacional de Esquerda (trotskista), tornando-se Secretário
do Comitê da região do Rio de Janeiro, com o pseudônimo de Maurício.[26]
É
aqui que intervém um novo mal-entendido. A ação política de Péret, em comum com
esses jovens — que, como vimos, tinham tido o desejo de lançar, em 1926, um manifesto
inspirado no manifesto surrealista — havia criado para ele um meio de fraternidade
militante cujo caráter harmônico manter-se-á até o fim de sua vida, apesar das separações
e das divisões políticas ulteriores. Mas, um incidente acontecido em 1932 — quando
ele já está na França, após sua expulsão do Brasil, no fim de 1931, por Getúlio
Vargas, devido à sua ação revolucionária — é revelador do isolamento no qual o poeta
surrealista encontrava-se no Brasil (embora seja necessário esperar o resultado
do trabalho dos pesquisadores do CEMAP, particularmente do professor José Castilho,
sobre o arquivo Lívio Xavier, para precisar as posições de uns e de outros no seio
da Liga Comunista Brasileira e esclarecer o contexto no qual se produziu o incidente).
Após o seu retorno à França, Péret vê-se frente a uma exigência do líder da Liga
Comunista Francesa, Pierre Naville (um ex-surrealista, que havia deixado a atividade
surrealista, opondo à mesma sua militância política): esse reclama de Péret uma
condenação pública das posições surrealistas, para poder tornar-se membro da seção
francesa da Oposição Internacional de Esquerda. Recusando com indignação essas injunções
típicas de um “sectarismo stalinista”, Péret solicita, numa carta, o testemunho
e a solidariedade de seus camaradas brasileiros. Esses, através da voz da Comissão
Executiva da Liga Brasileira, ratificam e aprovam as posições de Naville, alinhando-se,
assim, com seu sectarismo estreito.
Como
explicar tal resposta? Uma conferência, proferida por Mário Pedrosa, em junho de
1933, permite compreendê-lo parcialmente, pela luz que joga sobre o estado de espírito
de numerosos militantes brasileiros da Oposição de Esquerda. Aquele que tornar-se-á,
mais tarde, no Brasil, o defensor da arte abstrata independente, critica, então,
os artistas que, como Picasso,
são marcados por um latente subjetivismo
[...] e tomam como estalão universal a própria personalidade [...]. Impressionistas
na interpretação do mundo, estes artistas desumanizam-se, separando-se da sociedade,
isto é, dos seus problemas vitais, corrompem-se e idiotizam-se, restringindo o seu
plano social e as suas preocupações estéticas a um puro jogo pueril de formas e
naturezas mortas. [...] o campo artístico está dividido estética e socialmente:
de um lado, a arte desses criadores [...] desligados completamente da sociedade,
em parte por estreiteza mental, em parte para não tomar uma atitude em frente à
implacável batalha das duas classes inimigas [...] eles se estiolam num irrespirável
individualismo egocentrista a serviço de uma casta parasitária ou no hermetismo
diletante para meia dúzia de iniciados [...]. No outro lado, colocam-se os artistas
sociais, aqueles que se aproximam do proletariado [...]. É o que explica o realismo
do proletariado e dos artistas que o exprimem. [...]. É uma arte partidária e tendenciosa.
Mas que assombrosa universalização! É que, representando a expressão social da nova
classe [...], o que ela espira é um novo humanismo superior, um autêntico e novo
classicismo surgido dramática e espontaneamente da própria vida.[27]
Tais
posições, de um materialismo vulgar, determinista e objetivista, estão bem longe
daquelas dos surrealistas que reivindicam, com força, os direitos da subjetividade
criadora. Estão longe também das reflexões de Trotski que, em Literatura e revolução, defende as aquisições
universais da cultura, opõe-se à noção de cultura proletária e exige que a arte
seja, antes de mais nada, julgada segundo suas próprias leis. Sabe-se que essas
duas trajetórias paralelas reunir-se-ão no manifesto Por uma arte revolucionária independente (1938), no qual os autores,
Breton e Trotski, reivindicarão “Toda licença em arte. [...] para a criação intelectual,
[a revolução] deve, já desde o começo, estabelecer e assegurar um regime anarquista
de liberdade individual.”[28] Para o surrealista
e para o dirigente revolucionário, o processo de criação intelectual, artística
ou científica, geralmente subjetivo e individual, é realizado segundo leis específicas
que não podem sofrer nenhuma pressão exterior, toda criação artística autêntica
sendo um ato de protesto contra as condições impostas ao homem no mundo atual. Ambos
opõem-se a uma “literatura de propaganda”, sem deixar, entretanto, de considerar
que a arte não deve se refugiar numa torre de marfim, mas, ao contrário, exprimir
o conteúdo latente de uma época, girar em torno do “eixo invisível” da revolução.
Claro,
mais tarde, no início dos anos 40, Mário Pedrosa fará seus os termos do manifesto
de 1938, que publicará no seu jornal. Mas o que importa para o período que nos interessa
é que suas posições refletem os preconceitos dos militantes com os quais Péret mantém,
no Brasil, no seio do mesmo partido, relações bastante estreitas, o que permite
entender, em parte, portanto, a incompreensão com as quais defrontar-se-á durante
a sua estada. Pois, Péret mantém intacta sua atividade surrealista ao longo de sua
permanência no Brasil. Ao mesmo tempo em que colabora na revista parisiense,[29] interessa-se
de perto pelos trabalhos do Dr. Osorio Cesar sobre a arte dos loucos, mas é no pensamento
mítico brasileiro que concentra toda a sua atenção. Péret tenta realizar a viagem
prevista entre as comunidades indígenas para entrar em contato direto com seus ritos,
sua arte e suas lendas — viagem que somente será efetivada quando de sua segunda
vinda ao Brasil, em 1955. Começa a reunir a documentação e o material para seu projeto
de uma antologia de contos e lendas indígenas, num contexto em que se manifesta,
também no Brasil, um grande interesse pela tradição oral dos índios. Será apenas
em 1959, no último ano de sua vida, depois de um longo período no México (onde aprofundará
e alargará seu conhecimento do pensamento mítico) e depois de sua segunda estada
no Brasil, em 1955-1956 — que Benjamin Péret conseguirá concretizar esse projeto
que o tinha acompanhado ao longo de sua vida: sua Antologia dos mitos, lendas e contos populares da América.
Entretanto,
já durante o período 1929-1931, Péret descobrirá e poderá estudar de muito perto
o pensamento mítico de origem africana, assistindo a numerosas cerimônias de candomblé
e macumba nos terreiros do Rio de Janeiro. No início do primeiro artigo (de uma
série de 13) que publicou sobre as religiões africanas na imprensa brasileira, ele
explica:
Eu as considerei sobretudo sob o ponto
de vista poético, pois, ao contrário do que se passa com as outras religiões mais
evoluídas, delas transborda uma poesia primitiva e selvagem que é quase, para mim,
uma revelação.[30]
Mas
“a precisão descritiva de Péret que se situa como um etnógrafo perfeito, retratando
com fidelidade os detalhes e os ritmos dos atos”, sendo “impressionante como ele
conseguiu aquilo que era simbolicamente significativo na cerimônia e o transmitiu
ao leitor”, leva o professor Clóvis Moura a propor uma reedição daquele estudo,
por ser “um marco significativo dos estudos afro-brasileiros, levando-se em consideração,
inclusive, o seu pioneirismo, pois ele precede a Gilberto Freyre, Artur Ramos, Edson
Carneiro e os demais africanistas brasileiros.”[31]
Na
conclusão da série de artigos, Péret condena o papel castrador e opressor da Igreja
Católica, sublinhando o caráter de resistência cultural e social desempenhado pelas
religiões negras no Brasil. Seu anticlericalismo militante, cuja radicalidade chocou
seus amigos antropófagos, não é o produto de uma pose de parisiense provocador,
mas o grito do poeta, para o qual, como escreverá mais tarde, “nos mitos e lendas
animistas das primeiras idades fermentam os deuses que vão por na poesia a camisa
de força dos dogmas religiosos.”[32] Isto é,
para Péret,
[...] se a poesia cresce no rico terreno
da magia, os miasmas pestilentos da religião que se erguem a partir deste mesmo
terreno estiolam-na, e será preciso erguer bem alto o seu cume, para além da camada
venenosa, a fim de a poesia encontrar de novo o seu vigor.[33]
Péret
procura exprimir essa ação poética através da tentativa de realização de um filme
no qual o grande palhaço paulista Piolim deveria ser a vedete.[34] Péret o
tinha encontrado por ocasião do “Primeiro festim” antropofágico organizado por Oswald
de Andrade, no primeiro semestre de 1929. Na sua correspondência, pode-se seguir,
passo a passo, seus esforços para conseguir o financiamento para o filme, do qual
ele termina o script de 338 cenas, 1500 metros de filme, preocupando-se com os meios
técnicos de sua sonorização. Infelizmente nem os patrocinadores contatados, nem
a ideia de uma sociedade de subscritores permite seu financiamento. Pior ainda,
do script no qual Péret reservou a Piolim “um ministério de primeira ordem”, encontramos
apenas um fragmento de uma folha inutilizável. Estamos, assim, privados de um filme
de Péret onde o espírito de seus contos, muito próximos algumas vezes da verve dos
filmes burlescos norte-americanos, teria podido se desenvolver, filme que teria
sido o exato contemporâneo de A idade de ouro
de Luis Buñuel e Salvador Dalí.
Esse
interesse de Péret pelo cinema leva-o a propor, numa reunião da Comissão Executiva
da Liga Comunista Brasileira, em 1º de fevereiro de 1931, a criação de uma cooperativa
cinematográfica para a exibição de “filmes revolucionários”; leva-o, também, a assinar
um prefácio para um livro de F. Slang, editado em 1931, em São Paulo, O Encouraçado Potemkim, história da revolta
da esquadra russa na bahia de Odessa, no ano de 1905, que segue, passo a passo,
a ação do filme de Eisenstein.
A
recriação e a análise que Péret faz de outra revolta de marinheiros — desta vez,
em 1910, dos marinheiros brasileiros liderados pelo marinheiro negro João Cândido
contra os castigos corporais na esquadra brasileira — precipitam, talvez, as condições
de sua prisão e de sua expulsão, em 30 de dezembro de 1931. Com efeito, Péret apaixonou-se
pelo movimento conhecido como “A Revolta da chibata” e sobre ele escreveu um livro
chamado O Almirante Negro.
Como
diz, em sua comunicação, Clovis Moura: “O assunto não é apenas político e polêmico:
é também perigoso. João Cândido, cognominado de Almirante Negro, é um dos nomes
proibidos até hoje na marinha brasileira que se sentiu desprestigiada pelo fato
de um simples marinheiro negro ter assumido o comando da esquadra brasileira récem-chegada
da Inglaterra, quando a sua oficialidade ainda estava aprendendo com os oficiais
ingleses como manejá-la.”[35]
Após
ter acumulado uma documentação extremamente rica, em particular nos Arquivos Nacionais
da Marinha, aos quais, segundo Clóvis Moura, teve acesso, Péret escreve um livro
tendo como pano de fundo a luta de classes daquela época e estabelece um paralelo
com a revolta do Encouraçado Potemkin. Infelizmente, quando foi preso pela polícia
do Rio, em novembro de 1931, a edição inteira do livro foi confiscada e o original
desapareceu. Somente quatro folhas do texto foram encontradas pelo pesquisador Dainis
Karepovs: testemunham o vigor que deveria ter sido o conjunto da obra, cujo manuscrito
estava terminado em setembro de 1931.
Algumas
semanas após, um decreto assinado por Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro, em 10 de
dezembro de 1931, determinava:
O Chefe do Governo Provisório da República
dos Estados Unidos do Brasil, considerando que o francês Benjamin Péret, conforme
foi apurado pela polícia desta capital, se tem constituído elemento nocivo à tranquilidade
pública e à ordem social, resolve expulsá-lo do território nacional.[36]
*****
EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO
DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: José Ángel
Leyva (México, 1958)
Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 137 | Julho de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO
MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019
[1] PÉRET, Benjamin. Resposta ao
questionário para o Nouveau Dictionnaire
des contemporains (Novo dicionário dos contemporâneos). O questionário e as
respostas de Péret estão reproduzidos in: PÉRET. Amor sublime (Ensaio e poesia). Org. Jean Puyade. Trad. Sérgio
Lima, Pierre Clemens. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 200.
[2] Idem.
“À travers mes yeux”, 1922. Citado por BÉDOUIN, Jean-Louis. Benjamin Péret. Paris: Seghers, 1961.
Coll. “Poètes d’aujourd’hui”. p. 31-32.
[3] Idem.
Le Déshonneur des poètes. (México, 1945). Paris: José Corti/ACTUAL,
1986. p. 14.
[4] O julgamento de Barrès foi um tribunal
simulado promovido em 13 de maio de 1921, em Paris, pelo movimento Dadá a
partir de uma proposta de André Breton e Louis Aragon. O acusado, o francês
Maurice Barrès (1862-1923), fora autor de romances que Breton e Aragon tinham
valorizado por sua pregação de uma nova maneira de pensar baseada na liberdade
e no individualismo. Posteriormente, Barrès tinha participado da campanha
anti-semita contra Dreyfus e se destacado pelo seu ultranacionalismo, seu
patriotismo revanchista contra a Alemanha e sua defesa exacerbada da Primeira
Guerra Mundial. Em Entretiens
(1913-1952), Breton explicou que “a questão [do caso Barrès] é saber em que
medida pode ser considerado culpado um homem que a sede de poder levou a
tornar-se campeão de ideias conformistas completamente opostas às de sua
juventude”.
[5]
BRETON, André. “Entretien radiophonique avec André Parinaud, nº 8”. In: Idem. Entretiens (1913-1952). (1952). Nouvelle
édition, revue et corrigée. Paris: Gallimard, 1969, coll. “Idées”. p. 110.
[6]
BAILLY, Jean-Christophe. Au-delà du
langage. Paris: Éric Losfeld. Coll. “Le Désordre”, 1971.
[7]
ALQUIÉ, Ferdinand. Philosophie du
surréalisme. Paris: Flammarion, 1955. Coll.
“Nouvelle Bibliothèque scientifique”.
[8] Poemas e contos de Benjamin Péret
publicados antes de sua viagem ao Brasil: Le
Passager du Transatlantique (O passageiro do transatlântico, 1921),
ilustrado por Hans Arp; Au 125 du
boulevard Saint-Germain (No 125 do bulevar Saint-Germain, 1923), ilustrado
por Max Ernst; Immortelle maladie
(Doença imortal, 1924), ilustrado por Man Ray; Il était une boulangère (Era uma vez uma padeira, 1925); 125 proverbes mis au goût du jour (125
provérbios adaptados ao gosto do dia), escrito em colaboração com Éluard: Dormir, Dormir dans les pierres (Dormir,
dormir nas pedras, 1927), ilustrado por Yves Tanguy; Le Grand Jeu (O grande jogo, 1929); Et les seins mouraient (Os seios morriam, 1928), ilustrado por
Miró.
[9]
BUÑUEL, Luis. Mon Dernier Soupir. Paris, Robert Laffont, 1982. Coll.
“Ramsay-Poche-Cinéma”. p. 133.
[10] Engajando-se com toda a radicalidade,
Péret adere ao PCF em 1927 (com Breton, Aragon, Éluard e Unik) onde, sem
descuidar de suas tarefas surrealistas, é militante e crítico de cinema, em L’Humanité, jornal daquele partido.
Péret será rapidamente sensível ao processo de stalinização e começará, antes
que os seus companheiros, a dirigir-se para a luta da “oposição de esquerda” e
a tornar-se um intransigente e encarniçado adversário do stalinismo.
[11] BENTO, Antonio. “O ambiente no Rio ao
tempo de Ismael Nery”. Cadernos
Brasileiros, nº 35. Rio de Janeiro, 1966. Nesta citação, assim como nas
demais da época, utiliza-se a grafia atual.
[12] As cartas de Mário Pedrosa a Lívio
Xavier foram publicadas em Leia, n.
140. São Paulo, junho de 1990, p. 3336, com apresentação de José Castilhos
Marques Neto.
[13]
BENTO, art. cit.
[14]
PIERRE, José. André Breton et
la peinture. Lausanne (Suisse). L’Âge d’Homme, 1986. Coll. “Cahiers des avant-gardes”.
[15] Carta de Péret à A. Guinle, de 5 de
dezembro de 1928. Encontra-se na seção “Péret” do Arquivo Lívio Xavier (CEMAP,
São Paulo). O inventário da seção “Péret” foi realizado por Miriam Fragoso
Xavier e Jean Puyade, para o CEMAP (SP) e a ACTUAL (Paris, França).
[16] Cartas de Villa-Lobos. Encontram-se na
seção “Péret” do Arquivo Lívio Xavier (CEMAP, SP).
[17] Correio
da Manhã, Rio de Janeiro, 21 de fevereiro de 1929.
[18] CUNHAHMBEBINHO. “Péret”. Revista de Antropofagia, 2ª dentição, nº
1. In: Diário de São Paulo,
17.03.1929.
[19] SEM AUTOR. “A conferência de Péret”. Revista de Antropofagia, 2ª dentição, nº
2. In: Diário de São Paulo,
24.03.1929.
[20] FERRAZ, Geraldo. Depois de Tudo. Rio de Janeiro: Paz e Terra/São Paulo: Secretaria
Municipal de Cultura, 1983. Col. “Depoimentos”. p. 43 e 45.
[21] Carta de Carlos Drummond de Andrade. Revista de Antropofagia, 2ª dentição, nº
11. In: Diário de São Paulo,
19.06.1929.
[22] NUNES, Benedito. “Antropofagismo e
surrealismo”. Remate de Males, n. 6.
Campinas: UNICAMP, junho de 1986. p.24.
Uma das manifestações
de simpatia em favor do surrealismo por parte dos antropófagos exprime-se
claramente no breve encarte aparecido na Revista
de Antropofagia, 2ª dentição, n. 13 (Diário
de São Paulo, 04.07.1929):
O poeta empastelado Menotti del Piccolo
continua irremediavelmente analfabeto. Supõe que todo nome francês tem Le na
frente. É assim que em vez do conhecido nome de André Breton, ele escreve Le
Breton! Fica mais bonito Le Bossuet, Le Voltaire!
O nosso grande Aníbal Machado interpelado
sobre se queria responder as grosserias do chefe do fascio do Bexiga, replicou
por telegrama:
Menotti não
conhece o surrealismo.
Eu não conheço
Menotti.
Le Diderot
[23] SEM AUTOR. “Dois grandes acontecimentos
no Brasil: a primeira exposição de Tarsila e a viagem filosófica do conde
Keyserling”. Revista de Antropofagia,
2ª dentição, n. 12. In: Diário de São
Paulo, 26.06.1929.
[24]
RIVAS, Pierre. “Periphérie et marginalité dans les surréalismes d’expression
romane: Portugal, Amérique latine”. In: Surréalisme
périphérique. Actes du colloque “Portugal, Québec. Amérique latine: un
surréalisme périphérique?”. Présentés et edités par Luís de Moura Sobral.
Montréal (Québec, Canada): Université de Montréal, 1984. p. 14-15.
[25] Será preciso esperar os anos 40 para que
esta situação comece a mudar. Pagú — após ter animado, na sua saída das prisões
de Getúlio Vargas, no início dos anos 40, no jornal de Mário Pedrosa, Vanguarda Socialista, uma polêmica
sistemática contra as teorias e práticas do “realismo socialista” — publicará
com Geraldo Ferraz, em 1948, um balanço crítico desse processo que bloqueou uma
geração de escritores e artistas brasileiros, derivação, no terreno da
expressão artística, da tragédia que o ascenço e a influência hegemônica do
stalinismo representaram para a luta pela emancipação do espírito e do homem em
escala mundial.
[26] Dainis Karepovs e Fulvio Abramo, do
CEMAP, descreveram esta atividade em “Benjamin Péret, poète révolutionnaire au
Brésil” (Traduit du portugais par J. Puyade et G. Prévan. Cahiers Léon Trotsky, nº 25. Grenoble: Institut Léon Trotsky, mars
1986. p. 65-80), completado pelo artigo de Karepovs, “Um audacioso indesejável”
(D.O. Leitura, n.s., nº 7 [antiga
série: nº 81]. São Paulo: Governo do Estado de São Paulo, fev. 1989. p. 5).
[27] PEDROSA, Mário. “As tendências sociais
da arte e Käthe Kollwitz”. In: Idem. Arte
necessidade vital. Rio de Janeiro: Livraria Editora da Casa do Estudante do
Brasil, 1949.
[28] BRETON, André; TROTSKI, Leon. “Por uma
arte revolucionária independente”. In: FACIOLI, Valentim (Org.). Por uma arte revolucionária independente.
Apresentação de Gérard Roche. Tradução de Carmem Sylvia Guedes e Rosa Maria
Boaventura. Rio de Janeiro: Paz e Terra/São Paulo: CEMAP, 1985. p. 42-43.
[29] Péret colaborará no último número de La Révolution surréaliste, em fins de
1929, e, a seguir, nos números 1 e 2 de Le
Surréalisme au service de la Révolution (O surrealismo ao serviço da
Revolução), de julho e outubro de 1930, para os quais enviará poemas vibrantes
de revolta e indignação, que farão parte da coletânea Je ne mange pas de ce pain-là (Desse pão, eu não como) e o conto
satírico “Morts ou vifs” (Mortos ou vivos), tomando, assim, parte na polêmica
aberta pelo Segundo manifesto do surrealismo.
[30] PÉRET, Benjamin. “Candomblê e makumbá, 1”.
Diário da Noite, São Paulo,
25.11.1930.
[31] MOURA, Clóvis. “Três vertentes de
interesse de um poeta francês sobre o negro brasileiro”. Comunicação
apresentada na “Semana Surrealista”, organizada pela Aliança Francesa de São
Paulo, em 1985. Citação feita a partir de uma cópia do original datilografado.
[32] PÉRET, Benjamin. “A Palavra a Péret”
(Cidade do México, Novembro de 1942). In: PÉRET, B.; GOMBROWICZ, Witold. Contra os Poetas. Tradução, introdução e
notas de Júlio Henriques. Lisboa, Antígona, 1989. p. 51.
[33] Ibid.
[34] Não esqueçamos que Péret foi crítico de
cinema, no jornal L’Humanité, e foi
dos primeiros a ser fascinado, assim como seus amigos surrealistas, não apenas
pela obra de Charlie Chaplin, considerada por eles como um gênio, mas por todo
o burlesco norte-americano.
[35] MOURA, art. cit.
[36] Citado in: SEM AUTOR. “Determinada a
soltura do escritor Benjamin Péret”. Folha
da Manhã, São Paulo, 15.04.1956.
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