quarta-feira, 4 de setembro de 2019

Agulha Revista de Cultura # 144 | Outubro de 2019


• O OLHAR SURREALISTA DE MÁRIO-HENRIQUE LEIRIA

Mário-Henrique Leiria (1923-1980) desliga-se do Surrealismo em 1952 e no ano seguinte morre António Maria Lisboa – duas irreparáveis perdas para o Surrealismo em Portugal que logo começa a dispersar-se. Leiria integrou apenas a segunda formação grupal, em 1948 – que durou até 1953 –, o grupo dissidente, após sua ruptura com a formação inicial, datada de 1947. Leiria chega ao Surrealismo em seu melhor momento e conta com a cumplicidade relevante de António Maria Lisboa, Fernando Alves dos Santos, Henrique Risques Pereira, Cruzeiro Seixas, Carlos Eurico da Costa, dentre outros, além de Mário Cesariny, este que já atuara no grupo anterior.
Leiria foi um iconoclasta em essência, ou, no dizer da crítica Joana Emídio Marques, um exilado no planeta Terra. A grande amizade que o unia a António Maria Lisboa, leva este a lhe escrever uma carta logo após seu desligamento do grupo Os Surrealistas, onde destacamos esta passagem:

Quanto ao envenenamento de que te julgas alvo, não foi nem é um envenenamento; pouco de resto tenho falado com os nossos comuns amigos, mas, de qualquer modo, só se tivesses decretado a minha pena de morte e disso fizesses bandeira da tua salvação eu me inibiria em te enviar aquilo que não é, penso, não será nunca, a tua pena de morte e respectiva propaganda. De resto, nisto de Penas de Morte cada um subscreve a sua; e é por saber que tu, seja quais forem os passos que deste ou hás-de dar só a tua subscreverás – e mais nenhuma, é que não vi razão para deixar de te enviar aquilo que também é teu, queiras ou não queiras. […] A uma consciência delirante sucede-lhe uma consciência sonambúlica, mas é ainda uma consciência esfíngica que está não só contida na primeira e na segunda, como verticalidade, como tende a totalizar-se nelas – ou a totalizar-se elas.

Curioso observar como, já em 1950, António Maria Lisboa escreve a Mário Cesariny uma extensa carta, onde fala de seus conceitos de uma metaciência, e assim a finaliza:

Cesariny, quanto gostaria de ver a meu lado tu e todos os outros – desta vez não com a sombra de um Breton – com os nossos próprios corpos! na conquista de mais um impossível, de mais um mundo que está perdido – a elaborar a imaginação do Mundo!

A avalição de erros e acertos dessas primeiras formações do Surrealismo em Portugal, que em muito se prolongaram até os dias atuais, certamente encontrará ou lugar para seu imperativo detalhamento. A presente edição, no entanto, dedica-se à vida e obra de Mário-Henrique Leiria, edição cuja organização comparto com a ensaísta Tania Martuscelli, responsável pela compilação das Obras Completas de Leiria. Para esta edição temos, como artista convidado, John Richardson (Inglaterra, 1958), poeta e artista plástico de expressão surrealista e intensa atuação crítica e criativa em seu país, nos diz que Contrariando o chamado senso comum, a ideologia capitalista, as ilusões religiosas e o miséria da vida cotidiana, com total revolta e uma imaginação irrestrita impregnada do amor ao irracional e da irracionalidade do amor, o surrealismo é acima de tudo uma aventura da mente que garante nós (não) deixaremos que os caminhos do desejo fiquem cobertos de vegetação (André Breton, Amor louco). Em suma, o surrealismo procura transformar nossa visão do que é e do que pode ser. Suas colagens, se observadas sequencialmente, possuem um fio narrativo intrigante, moldado no maravilhoso.

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TANIA MARTUSCELLI | Mário-Henrique Leiria

O carácter rebelde de Mário Henrique Leiria que surge na literatura em forma de sarcasmo e crítica social, foi bem recebido pelo público nos anos de 1970 com a publicação de Contos do gin tonic e Novos contos do gin. Entretanto, ao nos depararmos com a obra completa do autor-artista, que recentemente se disponibilizou pela editora portuguesa E-Primatur em três volumes (2017-2018-2019), percebemos que o experimentalismo com diversas estéticas, como uma postura de quem busca constantemente uma “arte verdadeira” – como um bom vanguardista que era, foram constantes em sua obra. Não se trata de aferir que o surrealismo foi uma vaga experimentalista que passou. O Surrealismo na obra leiriana foi o momento de liberdade completa no campo artístico, mas um bocado incomodativo no campo da figura de Breton, uma vez que os portugueses se sentiram postos de lado pelo francês.
A dimensão humana do poeta, notadamente sua dignidade enquanto homem-político, que não se separa da figura do homem-artista, é percebida e admirada pelos amigos. Artur do Cruzeiro Seixas, por exemplo, seu companheiro de surrealismo, afirma que “quase todo o espaço seu é o mais ferozmente ético dos espaços (…). A contrastar com seu corpo anquilosado, por dentro, está o mais maleável dos acrobatas. Creio-o, por exemplo, inteiramente consciente da parte de ideal e de mito que a esquerda representa.” Acrescenta ainda nesse que é um depoimento-prefácio a uma pequena edição bilíngue (espanhol-português) de Juan Carlos Valera, Claridad dada por el tiempo, que “[s]e a crítica fosse realmente desperta ou menos tímida, já teria encontrado nesta obra uma das mais representativas e exemplares de toda uma geração profundamente marcada, para além de tudo o mais, pelo anarquismo, e pelo dadaísmo.” (1996)
 O corpo anquilosado devido a uma doença degenerativa que acabou por lhe ser fulminante aos 57 anos (nasceu em 1923 e faleceu em 1980), foi representado em sua arte por grandes pernas, imensos abraços, caminhadas longas com duração quase de uma odisseia, etc.: tudo o que o surrealismo lhe permitiu fazer sem extrapolar os limites de uma realidade que, em nome da liberdade (física, mas também política, por exemplo), alcança os liames da surrealidade. Pode-se afirmar, de igual modo, que a experiência coletiva valeu-lhe uma maturidade enquanto artista. No entanto, não se pode negar, após verificar sua obra disponibilizada pela E-Primatur, que a tendência a experimentar com diversas estéticas, às vezes como exercício poético, outras como experimentalismo per se, dá-se desde o início quando o autor, ainda com 15 anos, quando criava jogos verbais com resultados poéticos próximos de imagens geométricas, influenciado por certo futurismo de Almada Negreiros, certo cubismo de Picasso, além de escrever uma sátira comesinha próxima da de um Bocage “repentista” ou de um Tolentino de veia sarcástica e caricatural. Mais tarde escreveu manifestos de vanguarda explicando e defendendo sua arte, autodenominou-se “hiper-moderno”, e deixou clara em alguns poemas que podem ser considerados parodísticos o peso de Fernando Pessoa teve em sua vida. Leiria viveu e produziu num momento em que ideias de vanguarda na arte pululavam em Portugal e no mundo.
Em 1949, ao reunir-se ao grupo de ex-alunos da António Arroio: Mário Cesariny, Cruzeiro Seixas, Pedro Oom (e ainda outros que não estudaram lá, como António Maria Lisboa, por exemplo) para oficializar-se como surrealista, já trazia na algibeira um curriculum assaz interessante para um artista revolucionário. Em 1942, quando era estudante de Arquitetura na Escola Superior de Belas Artes, as desavenças políticas custaram-lhe a matrícula no curso. Em 1948, Leiria chegou a colaborar muito brevemente com o grupo de J.-A. França, mas parece não ter se integrado muito bem com os colegas, como afirma numa carta a Mário Cesariny: “Fui e sou considerado por eles um mau surrealista, caso que se põe exactamente da mesma maneira de mim em relação a eles. Eles não são surrealistas na minha forma de ver (excepto o O’Neill que é de facto um surrealista)” (2019). Alexandre O’Neill, aliás, vai merecer um poema de Leiria, intitulado “É altura”, datado de 1951, ano em que o poeta se desoficializa do G.S.L., e publica Tempo de Fantasmas, com um polémico “Pequeno aviso do autor ao leitor” em que critica o movimento surrealista – o que inspira o poema leiriano – no fascículo 11 dos Cadernos de Poesia. Em 1952 foi preso pela PIDE e passou um mês no Forte de Caxias. Desoficializou-se neste mesmo ano do grupo surrealista, solidarizando-se, em certo sentido, com a postura de O’Neill, sobretudo quando se considera o que escreveu numa já célebre carta a Carlos Eurico da Costa: “Não acredito, actualmente, na salvação pelo Surrealismo como não acredito sequer que a salvação seja uma coisa encontrável assim como quem encontra uma chave que perdeu a semana passada” (2019).
 Iniciou então uma série de viagens pelo leste da Europa, casou-se com uma alemã, trabalhou em Portugal como tradutor e colaborou em jornais, descasou-se, e acabou por se auto-exilar em São Paulo, em 1961. Durante os nove anos que viveu no Brasil, praticamente não escreveu poemas. Ou ainda, quando os escreveu, deixou-os guardados na gaveta, mesmo aqueles dedicados a amigos que lhe eram muito próximos e inclusive chegaram a ajudá-lo financeiramente, uma vez que só conseguia trabalhos esporadicamente. Entretanto, chegou a trabalhar na editora Samambaia, hoje extinta, onde desenvolveu alguns projetos, tais como o de uma banda desenhada intitulada As terras paralelas que, no entanto, ficou inacabada, e antologias como os Clássicos do Erotismo em dois volumes.
Ao retornar a Portugal em 1970, o poeta voltou a colaborar em jornais (O Coiso – suplemento do jornal República –, Aqui) e revistas (Ele, a versão portuguesa da Playboy) tornou-se vastamente conhecido uma segunda vez, nomeadamente com os best-sellers, em 1973, Contos do Gin-Tonic. seguidos dos Novos Contos do Gin um ano depois. O sucesso dos Contos levou Maria Teresa Horta, então articulista do Expresso, a afirmar que o primeiro livro de Leiria tinha sido “o melhor livro de ficção de autor português durante o ano” (1973: 30). Também participou de exposições coletivas de pintura em que sua fase surrealista foi novamente celebrada.

BIBLIOGRAFIA
HORTA, Maria Teresa. “Contos do Gin Tónico”, Jornal Expresso [Lisboa] 12 de Maio, 1973: 30.
LEIRIA, Mário-Henrique. (ed.) Juan Carlos Valera. Claridad Dada por el Tiempo. Cuenca: Menú-
   Cuadernos de Poesía, 1996.
-----. Obras Completas de Mário-Henrique Leiria. Ficções. Vol. I. (ed.) Tania Martuscelli.
   Lisboa: E-Primatur, 2017.
-----. Obras Completas de Mário-Henrique Leiria. Poesia. Vol. II. (ed.) Tania Martuscelli. 
   Lisboa: E-Primatur, 2018.
-----. Obras Completas de Mário-Henrique Leiria. Manifestos, Textos Críticos e Afins. Vol. III.  
   (ed.) Tania Martuscelli. Lisboa: E-Primatur, 2019.

Os Editores


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• ÍNDICE

FERNANDO DIL | Entrevista com Mário-Henrique Leiria

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2019/09/fernando-dil-entrevista-com-mario.html

 

JOANA EMÍDIO MARQUES | Afinal quem era Mário-Henrique Leiria, o poeta que bebia Gin-Tonic?


MÁRIO-HENRIQUE LEIRIA | Beat Generation, Angry Young Men e os anos cinquenta

MÁRIO-HENRIQUE LEIRIA | Cartas

MÁRIO-HENRIQUE LEIRIA | Dez poemas

MÁRIO-HENRIQUE LEIRIA | Dicionário modesto para famílias de poucos haveres

MÁRIO-HENRIQUE LEIRIA | Linhas manifestas

MÁRIO-HENRIQUE LEIRIA | O micróbio da música

MÁRIO-HENRIQUE LEIRIA | Razões surrealistas

TANIA MARTUSCELLI | Mário-Henrique Leiria, surrealista ele mesmo



John Richardson



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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidado: John Richardson (Inglaterra, 1958)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 144 | Outubro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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TANIA MARTUSCELLI | Mário-Henrique Leiria, surrealista ele mesmo


A experiência de exílio, ou do processo de exílio, pode ser elemento-chave para a escritura de ficção. Apesar do trauma ou traumas que tal experiência possa causar, como defendem os psicanalistas León e Rebeca Gringberg ao afirmar que “in any migration a constellation of factors combine to produce anxiety and sorrow” (1989), um aspecto positivo, segundo Michael Rossner, sublinhado por Sonja Steckbauer, é a criação literária ou ainda, o surgimento da literatura de exílio enquanto gênero. O gênero de exílio não deixa de representar a ansiedade e o sofrimento referidos por Gringberg e Gringberg, como também representa outras “sete pragas” vividas pelo imigrante, de acordo com Mario Benedetti. Para o uruguaio, as sete pragas do exílio são “el pesimismo, el derrotismo, la frustración, la indiferencia, el escepticismo, el desánimo y la inadaptación” (Steckbauer, 2005). Note-se que o processo criativo, ainda segundo Gringberg e Gringberg, normalmente não se dá de maneira imediata ou concomitante à experiência migratória. Segundo os autores de Psychoanalytic Perspectives on Migration and Exile, “A deprived immigrant, through sustained loss of reliable objects in his environment, also suffers from diminished creative capacity. His ability to regain his skills will depend upon his capacity to work through and overcome this deprivation” (1989).
Evidentemente, há uma diferença entre exílio forçado e exílio espontâneo, se bem que os fatores que levam um indivíduo a autoexilar-se não devem ser menos dolorosos que aqueles que levam outro indivíduo a ser expatriado. Note-se, contudo, que apesar de as razões para a emigração poderem afastar a experiência de cada indivíduo, a experiência de imigração aproxima-os. É Andrew Gurr quem observa que o exilado “does not leave home with the intention of acquiring the superiority of the international traveler… The pressures on him are negative, in the sense that he is impelled not to visit other countries but simply leave his own.” (1989).
Pense-se, sob este ponto de vista, na experiência de Mário-Henrique Leiria. Segundo o autor nos informa na contracapa de seu best-seller, Contos do gin tonic, em 1973 visitou “a Europa cristã e ocidental, o Mediterrâneo norte-africano, o Oriente Médio e até, dizem, os países socialistas.” E também os Balcãs e “Em 1958 meteram-se-lhe ideias na cabeça e foi até Inglaterra, para aprender coisas. Não aprendeu e voltou… Em 1961 foi para a América Latina donde voltou nove anos depois.” Num primeiro momento, é possível inferir que Leiria se encaixa na definição de Gurr que diferencia um viajante internacional de um exilado. Leiria foi um turista por quase 10 anos. Entretanto, é de notar certa nebulosidade no que concerne a tais viagens, sobretudo em relação à questão financeira.
Uma das hipóteses possíveis de se aventar é a de que o Partido Comunista lhe dava fundos para montar os “relais” necessários para “haver mais margem de entrada e saída das cartas da nossa gente” ao redor da Europa, como explica Leiria numa carta a Isabel Alves da Silva Turner escrita em Dukla, no dia 30 de Novembro de 1961 (Leiria, 1997). Aliás, Mário Cesariny afirmou em Verso de Autografia que “O Mário Henrique Leiria, já cheio de desespero, aderiu ao Partido Comunista, com o Carlos Eurico da Costa” (Cesariny). Ou ainda, como escreveu Leonor Correia de Matos, na contracapa de Depoimentos Escritos, as cartas que Leiria escreve a Isabel Turner, vão “preencher aquela quota de esperança numa felicidade pessoal de que ele, revolucionário sempre e homem de partido, nem por isso prescinde.” (grifo meu).
De fato, os poemas de Leiria escritos entre 1952 e 1961, alguns publicados em revistas literárias, tal é o caso de Notícias do Bloqueio, podem ser organizados na prateleira da literatura de viagens, cuja essência é de crítica social e empenhamento político. Quanto às informações referentes à sua participação ativa no Partido Comunista Português, não haveria dúvidas nenhumas se não fossem os depoimentos daqueles que conviveram no Brasil com ele por nove anos.
Eugénia Tabosa, ex-esposa do primo de Leiria, Mário Seabra, repetiu mais de uma vez numa entrevista que fizemos em 1 de Julho de 2008 que “O Mário Leiria acho que nunca foi filiado, mas sempre foi comunista”, acrescentando ainda na mesma entrevista que  “ele era um pouco anarca”. Tabosa opina com certa autoridade, pois conviveu com o poeta em sua casa em São Paulo por dois anos. Acrescentem-se, contudo, as informações dadas por Mário Seabra, primo e padrinho de casamento do poeta: “O Leiria atuava como tal [como comunista], mas nunca chegou a me dizer. Eu tenho quase certeza que era. Mas ele . . . devia ser contrário a tudo aquilo. Tanto que o Manuel da Fonseca e ele fundaram um partido de esquerda, e não era o PCP.” Isto ocorreria nos anos 70, depois de Leiria retornar a Portugal.
Outra hipótese – ou outras – referente(s) ao financiamento das viagens de Leiria pela Europa e consequente auto-exílio no Brasil seria a de que, como era comum na época, ele tivesse se alistado na marinha mercante, como seu companheiro de Surrealismo, Cruzeiro Seixas, por exemplo. Segundo afirma ainda na contra-capa dos Contos do gin tonic, “Teve vários empregos, marinha mercante, caixeiro de praça, operário metalúrgico, construção civil… pelas terras onde andou”. Cruzeiro Seixas assinala numa carta que me enviou em Março de 2008 que naqueles “anos distantes sonhávamos com longas viagens, e Paris era meta mítica! Aqui o país é pequeno, e estamos sempre a encontrar as mesmas pessoas. Sem dinheiro para satisfazer tais sonhos fiz-me marinheiro, o que foi uma muito dura experiência”. Caminho semelhante traçou Jorge de Sena, e registrou-o nos contos de Os Grão-Capitães. Segundo Eugénia Tabosa acredita, a marinha mercante “era uma carreira promissora e, no caso do Leiria, tudo indica que foi verdade.”
Ainda existe a hipótese de que Leiria pagava por suas viagens com seu próprio dinheiro, que ganhava sobretudo com as traduções diversas que fazia. Os familiares do poeta no Brasil confirmam e contrastam a vida que tinha em Lisboa com a que teve em São Paulo. Tabosa observa que “em Portugal ele vivia muito bem, do trabalho dele… quando ele veio aqui para o Brasil teve dificuldade em arranjar trabalho, porque ele dizia que nunca tinha ganho tão pouco. . . Ele não estava dentro do maquinismo. Isto deve ter ajudado ele a se desestabilizar.” Mário Seabra lembra-se das circunstâncias em que se davam as entrevistas de trabalho: O curriculum dele “era rico, porque ele sabia várias línguas, além disso ele escrevia bem. E tinha quadros dele espalhados pelo mundo, da época surrealista. Olhavam o curriculum e diziam: ‘o senhor tem gabarito demais!’” –  e não lhe davam trabalho.
A ideia de mudar-se para o Brasil é um tanto nebulosa, se não uma combinação de fatores. Uma das razões foi o cerco da polícia, como afirma Leiria numa carta de 14 de Janeiro de 1961: “é uma fatalidade que tenho de aceitar e que, neste momento, me é imposta por uma série de factos concretos contra os quais nada posso fazer, a não ser deixar-me esmagar ou ir parar ao Forte de Caxias. Ora eu não quero nem uma nem outra coisa” (Leiria, 1997). O poeta já tinha sido preso uma vez em 1952. Outro fator que influenciou sua decisão de ir ao Brasil era o de que seu primo já estava instalado no país e, talvez um motivo mais forte, o de que sua ex-esposa, a alemã Dietlinde Hartel, por quem “tinha uma paixão impossível”, como afirmou Cesariny, também estava lá, vivendo em Recife. Segundo nos informou Mário Seabra, Leiria estava “meio chateado da vida porque tinha perdido a Fipsy. A mulher fugiu com um brasileiro.” Além disso, informou-nos o primo que : “…eu o convidei para ele vir ter comigo. Ele estava com muito trabalho, tal, e ele disse, ‘Mário, olha, daqui a um ano eu vou para o Brasil’. E exatamente depois de um ano ele chegou ao Brasil. Fui esperá-lo em Santos, ele veio de navio.”
Aquando de seu retorno a Portugal, em 1971, apesar de já debilitado por problemas ósseos, Leiria reencontrou a fama de tempos surrealistas. Participou de exposições, foi redator de jornais marcadamente de esquerda e publicou os Contos do gin tonic, e Novos contos do gin um ano depois. Ambos os livros estiveram na lista dos best-sellers do jornal Expresso, que, aliás, pelas mãos de Maria Teresa Horta, enalteceu mais de uma vez o talento de Leiria. Horta afirma num artigo de 12 de Maio de 1973 que “Esta é a terceira vez que escrevemos acerca de: ‘Contos do Gin-Tónic’, de Mário-Henrique Leiria. Supomos, pois, não ser preciso acrescentar mais nada para se perceber quanto este livro nos entusiasmou” (1973). Leiria publicou ainda Imagem Devolvida: Poema-mito em 1974, além de Casos de direito galáctico. O mundo inquietante de Josela em 1975 e Lisboa ao voo do pássaro em 1979, com fotos de João Freire, dentre outros textos que experimentavam com diversos media, como é o caso de uma banda desenhada com texto seu e desenhos de Isabel Lobinho, Mário e Isabel também publicada em 1975.
Na entrevista dada a Fernando Dil publicada na Vida Mundial, o leitor fica sabendo que “(Falou-se da vida de Leiria na América Latina, da sua intensa participação no processo histórico em alguns países do continente nos anos 60)” (1974). Tendo Leiria concluído: “Penso que valeu a pena… foi óptimo… saí correndo sei lá como, pá… passei pelo Chile, raspei-me para Cuba, tive no México…” (idem). E quanto à produção literária afirma: “Nunca tive preocupação de ordem literária… nem hoje… de ordem literária não tenho, pá… deixo isso para o Namora etc…” (idem). A imagem de revolucionário criada por Leiria em seus textos corrobora com sua figura (inventada) no plano da realidade. Cite-se ainda a nota biográfica sobre o poeta presente na antologia Cem poemas do riso e do maldizer, organizada por José Fanha e José Jorge Letria, na edição de 2003: “Poeta e contista ligado ao movimento surrealista, esteve muitos anos ausente de Portugal, tendo vivido uma vida aventurosa, participando nomeadamente na luta armada contra a ditadura militar no Brasil”.
Contudo, e muito surpreendentemente, parece ter sido somente na ficção – e nesse termo inclua-se também o gênero epistolar – que tal participação na luta armada, bem como as passagens por Cuba ou pelo Chile e México, etc., se deram. Em contraponto com o que normalmente ocorre na chamada “literatura de exílio”, em que as experiências do exilado influenciam o espaço da ficção, no caso de Leiria, foi seu talento como escritor e postura política (mas não necessariamente de militante armado, senão de pensador que era), além de uma traumática experiência de exílio interior, que acabaram por consubstanciar – e atrevo-me aqui a afirmar – num heterónimo seu.
Em São Paulo, Leiria viveu com os Seabra de 1962 a 1964, e posteriormente com Lys e Acácio Assunção. Por pouco tempo viveu sozinho num apartamento alugado. Conseguiu trabalhos esporádicos, tendo vivido a maior parte do tempo graças à ajuda dos amigos. Segundo Lys Assunção numa entrevista concedida no dia 1 de Outubro de 2008:

Nossa lembrança era dele como uma pessoa disponível, sem trabalho fixo e vivendo da ajuda de amigos. O tempo que morou só em um apartamento trabalhava na editora do Gil Clemente. [A extinta editora Samambaia] Quando teve um problema ósseo na perna e foi operado. Esteve se recuperando em nossa casa… Eu o levava para seções de fisioterapia na Santa Casa. Conseguimos o dinheiro para que ele voltasse a Portugal com jantares portugueses, creio que 5, que fizemos em casa.

Quanto a viagens, Lys Assunção menciona duas, desconhecendo aquelas que o poeta afirmou ter feito fora do estado de São Paulo e até do país: “Viajou conosco para São Sebastião no litoral paulista e para Araraquara, interior paulista”. Nesta viagem a Araraquara, aliás, como informou Lys Asunção, visitaram Jorge de Sena, “professor na faculdade, tinha uma porção de filhos, se não me engano nove. Foi bem interessante o encontro dos dois.”
A “literatura de exílio” pode se basear numa ilusão, ou em diversas, dentre elas a ilusão biográfica, como argumenta Sonja M. Steckbauer em seu artigo, “Exilio y ilusión en la obra de Juan Carlos Herzen: El mercader de ilusiones”. A autora menciona o caso do escritor paraguaio, Augusto Roa Bastos, que saiu de sua terra natal em 1947, ano em que foi viver na Argentina e, mais tarde, em 1976, instalou-se em Tolouse, na França. Nesta época,  Bastos assinalou “en más de una ocasión su situación de exiliado”, tendo inclusive se autodenominado “‘el decano de los exiliados’”. Contudo, foi somente em 1982 que seu exílio se deu pelas mãos de Stroessner. O motivo de sua expulsão do Paraguai foi justamente o de ter mentido por tantos anos acerca de sua condição de emigrante.
Com este exemplo, Steckbauer demonstra que o termo “escritor exiliado” também pode servir “como un recurso publicitário, incluso llegando a emprender – en el caso de que sea necesario – algunos cambios en la biografia del mismo” (2005). Pode-se pensar que Leiria adotou um método semelhante ao de Bastos tanto em suas cartas a Isabel Turner, advogada de sua ex-esposa, por exemplo, em que menciona um natal que passa na floresta amazônica com os índios e viagens a Cuba, ao Rio de Janeiro, à Bahia, além de prisões e sessões de tortura, quanto na sua obra de ficção publicada em Portugal após sua reentrada no país.
Fernando Dil, animado em sua conversa com Leiria, afirma o seguinte: “o que eu estou a levantar é a questão do homem que está dentro de si e o homem que expõe aquilo que é… Tu, por exemplo, expões nos teus livros o que sentes, deduzo, o que és…, tá lá todo um rufar de sentimentos, de solidão…, todo o teu sol, a tua limpidez…” Ao que Leiria responde: “Não sei se está, pá…” E Dil acrescenta: “Eu tou te a dizer que está… eu sou o leitor…” e Leiria: “Tá bem, pá, tu és o leitor… eu sou o tipo que escreveu… não tenho culpa nenhuma…” (1974). De outro modo, é interessante notar o que Hugh Hazelton assinalou como “los efectos regeneradores de la vuelta del exiliado – sea para una visita o para quedarse permanentemente – a su tierra natal” (2005), em seu trabalho intitulado “Exilio, marginación y resolución en las obras de cinco autores chileno-canadienses”.
Os problemas que Leiria encontrou no exílio transformaram-se em força vital. Leiria se regenera de todos os traumas depois que se reintegra em seu país, um Portugal ainda em crise, ainda sob o regime da ditadura, enquanto que, no Brasil, esteve prestes a matar-se, como conta Eugénia Tabosa:

Houve uma altura que ele bebeu todo o álcool da casa. Então o que é que se podia fazer? Era não termos tanto álcool em casa. Só que foi tudo, ele bebeu o álcool destilado, o álcool da farmácia. Aí eu zanguei-me com ele, eu disse ‘olha, se tu quiseres te matar, mata-te em outro lugar, não aqui em casa, porque tem as crianças…’ e ele era o ídolo delas… Em Portugal eu nunca o vi beber tanto.

Podemos inferir que a persona leiriana então celebrada em Portugal, sobretudo nos pós-25 de Abril foi uma figura ficcional, heterónima dele mesmo, que surgiu em sua literatura e foi transposta a sua imagem graças às suas atuações (também literárias) nos jornais de esquerda, e na cena revolucionária portuguesa. O físico não-prodigioso do cinquentenário que desse criança sofria da degenerescência óssea, torna-se invisível diante de sua mente portentosa e talento artístico. O surrealismo, neste caso, passa a ser realidade – a sua realidade que, redimensionada aos parâmetros médicos da condição do homem, seriam facilmente refutadas pelo público. No entanto, a figura do herói revolucionário, surrealista, permanece entre seus leitores, e lá deve ficar, pois, desse modo, Mário-Henrique Leiria encontra sua liberdade.

BIBLIOGRAFIA
ASSUNÇÃO, Lys. Entrevista por e-mail. 1 de Outubro de 2008.
DIL, Fernando. “Entrevista com Mário-Henrique Leiria”, Vida Mundial, 7 de Março de 1974: 17-23.
GRINBERG, León, e Rebeca Grinberg. Psychoanalytic Perspectives on Migration and Exile. New Haven; London: Yale University Press, 1989.
GURR, Andrew. Writers in Exile: the Identity of Home in Modern Literature. New Jersey: Humanities Press; Sussex: The Harvester Press, 1981.
HAZELTON, Hugh. “Exilio, marginación y resolución en las obras de cinco autores chileno-canadienses.” Aves del Paso: autores latinoamericanos entre exilio y transculturación (1970-2002). Ed. Birgit Mertz-Baumgartner, e Erna Pfeiffer. Madrid: Iberoamericana; Frankfurt: Vervuert, 2005. 165-74.
HORTA, Maria Teresa. “Contos do Gin Tónico”, Jornal Expresso [Lisboa] 12 de Maio, 1973: 30.
MACEDO, Helder. E-mail. 27 de Outubro de 2008.
MARQUES, Álvaro Belo (1982), “Memória (com inéditos) de Mário-Henrique Leiria”, suplemento “Ler e Escrever”, Diário de Lisboa, 9 Dez., pp.1-3.
---. “Memória (com inéditos) de Mário-Henrique Leiria”, suplemento “Ler e Escrever”, Diário de Lisboa, 17 Dez., pp.1-3.
SEABRA, Mário. Entrevista pessoal. 6 de Julho de 2008.
SEIXAS, Artur M. Cruzeiro. Carta pessoal à autora. 19 de Março de 2008: 1-3.
SENA, Jorge de. Os grão capitães. Lisboa: Edições 70, 1989.
STECKBAUER, Sonja M. “Exilio e illusion en la obra de Juan Carlos Herken: El mercader de ilusiones.” Aves del Paso: autores latinoamericanos entre exilio y transculturación (1970-2002). Ed. Birgit Mertz-Baumgartner, e Erna Pfeiffer. Madrid: Iberoamericana; Frankfurt: Vervuert, 2005. 141-54.
TABOSA, Eugénia, e Carlos Seabra. Entrevista pessoal. 1 de Julho de 2008.


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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidado: John Richardson (Inglaterra, 1958)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 144 | Outubro de 2019
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MÁRIO-HENRIQUE LEIRIA | Razões surrealistas


EVIDÊNCIA SURREALISTA

Para nós, que estamos a caminho da grande barreira da sombra, nada mais inesperado que o encontro súbito da verdade que existe nos olhos que nos fixam. Para acreditar na evidência do olhar é preciso ter encontrado o amor; não o amor vulgar, mas o amor pelo inesperado, desconhecido animal que nos espreita há séculos, a ave que parte para o infinito, a sombra das existências já perdidas.
De nós sai agora o grande conhecimento das coisas ocultas que parte para os vossos olhos.
Entre o sonho e a pedra nada mais existe que isto:
Os dois caminhos formados para uma exaustiva procura.
O braço, praia e noite por onde caminhamos até ao desconhecido, forma única que está por descobrir e que por si só é já a escada líquida que subiremos um dia:
é a carta, o Arcano XVII, a estrela dos magos, cujo norte é a estrada longa e muito branca
que leva à vida e à morte.
Do encontro súbito e muito rápido destes dois objectos nasce a força, nossa própria força de atacar e de ferir, nosso desejo de destruição e, ainda que não pareça, o nosso subir à última nuvem, à altura inultrapassada onde o próprio sangue para, onde o seco nada mais é que a própria forma humana, onde a luta e a raiva dão origem à flor por descobrir.
Para ser mais claro, poderei afirmar que este conhecimento me veio da aventura que um dia me aconteceu:
ia por uma rua longa, muito longa e completamente deserta. Era noite e não existiam luzes, talvez porque tivesse faltado a corrente eléctrica, talvez porque nunca tivesse existido luz naquela rua. Era um vulgar caminho de volta para casa, tão vulgar que não dava para ele. De repente abriu-se uma porta à minha frente. Fiz os três sinais; o primeiro de alto a baixo com a mão aberta, o segundo à esquerda, horizontal, só com o polegar e o último, o maior, circular e muito nítido em frente da cara. Depois entrei. Uma escada enorme, cheia de luz levou-me até ao fundo, à sala onde pequenas serpentes caminhavam velozmente para a floresta petrificada que se projectava ao fundo. Segui-as. Já não podia parar, devido principalmente à inclinação da sala. Entrei na floresta. Enormes figuras que ainda hoje não posso classificar me apareceram então, lentas, armadas de longas lanças, e me empurraram brutalmente para uma praça de calcário exaustivamente brando onde um corpo de mulher jazia sangrando, sem cabeça. Para atravessar a praça vi-me forçado a passar por cima desse corpo e então verifiquei que ele estava atravessado por um lindíssimo garfo de prata. Nada mais havia a fazer e, portanto, segui o meu caminho. Do outro lado da praça havia uma outra porta, monumental, rutilante como um Sol. Abri-a. Nessa altura, uma forma esférica me caiu em cima da cabeça. Creio bem que desmaiei. Quando, de manhã, dois amigos me encontraram caído na mesma rua, um pouco mais à frente apenas, eu estava abraçado a uma cabeça de mulher cujos lindíssimos e negros cabelos se enrolavam no meu pescoço. Nos seus olhos verdes havia lágrimas. Julgo ter ficado três dias de cama, mas depois o conhecimento de todos estes acontecimentos trouxe-me a descoberta do que se segue:

NÓS REDUZIREMOS A ARTE À SUA EXPRESSÃO MAIS SIMPLES, QUE É O AMOR
– Evidência Surrealista –

Só a imaginação transforma. Só a imaginação transtorna: é imaginação o livre exercício do espírito que, servindo-se de um (ou mais) aspectos do real, passa lenta ou rapidamente ao extremo limite dele (humor negro, etc.) para encontrar pouco importa em que margens, o objecto real de um irreal conquistado no espírito. Acelerar este processo, encontrar um objecto onde tudo, simultaneamente, tenha as propriedades da verdade e do erro, do uno e do múltiplo, do que foi encontrado e do que está perdido, é transformar (violentar) a realidade depois de a ter transtornado; é fixar um novo real poético uno. Esse real poético dá-o o SURREALISMO reunindo, até aqui insuperavelmente, Apolo e Dionísio, Vênus Celeste e Vênus Terrena, Ocultismo e Magia.
Para nós – que estamos longe de requerer o exclusivo da constatação – toda a imaginação forte é actuação forte no mundo, todo o acto está por si mesmo encontrado e perdido, intensamente desejado e intensamente temido. A “poesia surrealista” tende constantemente, como no acto amoroso, a fundir num só total delirante “explosivo-fixo, solene-circunstancial” todas as presenças, ligando estreitamente a coisa a possuir e os meios de possui-la, numa viagem que só se termina quando ardem por completo não apenas o carvão que movia a locomotiva, mas a locomotiva, a estação de chegada, os rails e os passageiros.
À “reabilitação do real quotidiano” opomos simplesmente o espectáculo dos quartos e das ruas. Quanto à teorética correspondente, é de fins literários e, à transparência, preparadamente confusos e confundidos. Para o poeta, que é Imaginação, não há nem pode haver compartimentos estanques no real das coisas – na presença das coisas. Ele é, por si, voluntária ou involuntariamente, o mais alto compartimento de relação, junto ao qual todos os outros são mero artifício geográfico ou económico. NÃO É para um par de sapatos que alienamos a vida e quando ela, para nós, está ausente é porque está MAIS ALTO.
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Não ama aquele que ama tão somente a humanidade, mas aquele que ama através de um indivíduo bem determinado (Charles Fourier).

Lisboa – Outubro de 1951

Mário Henrique Leiria
Mário Cesariny de Vasconcelos
Carlos Eurico da Costa
Artur do Cruzeiro Seixas



Realidade Surrealista

Quem se interessa tem obrigação de conhecer.
Quer dizer que a má interpretação da experiência ou a sua catalogação não invalidam o fundamento da própria experiência.
Escolhemos o Surrealismo porque ele é para nós a única base autêntica duma realização procurada e urgente, mas não nos empenhamos demasiado na força mítica do rótulo. Hoje, realizados certos dados da experiência, continua a ser um caminho para a sua persecução a aceitarmos verdadeiramente qualquer outro movimento que garanta a liberdade atingida. Sabemos, no entanto, que tal não se deu ainda. É bom dizer que sem abstrair da nossa própria miséria, nós vemos a miséria ambiente, o medo circundante, a luta pelo sucesso fácil, a adaptação à conveniência (saída duma sala para a outra, com bater de portas) e, sobretudo, a inércia secular dum público de que alguns teóricos extremistas garantem a existência, mas que nos parece estar por experimentar e até por existir.



Mas para que havemos de sonhar um novo mundo ideal, quando estamos tão bem naquele em que vivemos?
O ideal não existe senão na fantasia dos poetas e dos filósofos sonhadores.
Não fomos nós que nos fizemos assim como somos; e daí?
Deixemos, pois, as coisas como estão.
São fruto da experiência, são o resultado das forças que se combatem, dos atritos que se formam no combate dos instintos e da razão.
Quando for preciso uma reforma, ela se fará por si; porque as coisas necessárias se realizam sem e contra a nossa vontade, sem precisão de livros, de conferências e de leis.



Antes de começar quero fazer uma prevenção aos que estão ouvindo: tudo o que aqui se vai afirmar tem o valor exacto que as palavras lhe dão. Não há simbolismos ou disfarces.
Quando eu disser merda, é mesmo merda que quero dizer. Quando eu disser lua, é mesmo lua que quero dizer.
As afirmações e negações que vou fazer são minhas. E por mim se representam agora uns tantos – poucos – que ainda têm força para afirmar e negar. Com respeito aos que irão talvez patear e gritar, são-me tão indiferentes como os que vão aplaudir, se o quiserem fazer.
Mais uma vez digo: a afirmação e negação é minha e os nomes que por acaso aparecerem representam de facto aquilo que são.
Se alguém está disposto a ir-se embora será óptimo que o faça. As presenças inúteis só servem para encher sem servirem para coisa alguma.
E agora entremos na análise cuidadosa o mais possível das


RAZÕES PORQUE SOU SURREALISTA

Nasci em 2 de Janeiro de 1923.
Morri, como todos sabem, em 3 de Fevereiro de 1759. Fui acompanhado nesse acto eminentemente económico e irracional por trinta e nove sanguessugas, primatas já por si predispostos para a aceitação de qualquer acção construtiva e revolucionária. Talvez por isso, e mesmo por isso, uma velha máquina de costura se encontrou (e quando digo encontrou ponho, evidentemente, o caso do sexualismo actuante) com uma locomotiva que, de cabelos desgrenhados, uivava perdida na noite. É esta a razão do nascimento dos elicópteros metafísicos, que todos os anos descem do ninho para fazer análises de urinas e de actos de devoção. Então cada elicóptero traz uma pequena esfera metálica com que se alimenta e é nessa altura que lhes é dada autorização para viver 73 anos (incluindo os passados na tropa) e para se desmoronar quando lhes apeteça. O desmoronamento dum elicóptero é sempre um espetáculo digno e emocionante: primeiro todas as mães de família não ocupadas ou em estado de gravidez adiantada, se reúnem numa dança de roda e afirmam as suas convicções. Em seguida começam a rolar laranjas e é dado o início à sagração. As estruturas caem com grande estrondo dentro do ouvido de cada espectador e o regozijo é geral. Formam-se por essa ocasião pequenos aglomerados pustulentos que devem ser extraídos com todo o cuidado e postos a secar em lugares elevados e onde hajam pessoas de compleição débil. A justaposição contínua desses aglomerados dá frequentes vezes como resultado o aparecimento de doenças venéreas e toda a espécie de perturbações na vista, que logo são remediadas com aplicações frequentes de massagens eléctricas e banhos mornos em água não muito açucarada (isto à falta de ácido nítrico, evidentemente).
Bem, mas o essencial para obter boas torneiras e chaves é, como já foi dito, usar de toda a circunspecção e uma boa dose de glicerina de preferência a do Cáucaso. Depois nada mais há a fazer do que mexer tudo e pôr em banho-maria até as orelhas começarem a tomar uma transparência vítrea que muito facilita a observação dos fenómenos climatéricos. A evidência dos actos aparece então, perfeitamente nítida.
Afirmo até que a razão de ser do esmalte dos dentes não é, como parece à primeira vista, um caso de raciocínio, mas sim uma posição moral, bastando para isso observar como andam os caranguejos e as fases da lua por ocasião do aparecimento de símbolos agnósticos.
Tudo está, portanto, esclarecido até atingir a devida incompreensão necessária e pedida, tanto mais que os aparelhos ortopédicos se fizeram para educação das crianças.
São estas as razões porque sou surrealista...


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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidado: John Richardson (Inglaterra, 1958)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 144 | Outubro de 2019
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editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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