segunda-feira, 8 de junho de 2020

FLORIANO MARTINS | Conversando com Isabel Meyrelles sobre Cruzeiro Seixas


Para a presente edição em homenagem ao centenário em vida de Cruzeiro Seixas um imperativo natural seria a presença de Isabel Meyrelles, sua grande amiga e imensa escultora igualmente ligada ao Surrealismo. Em uma de nossas trocas de e-mails decidimos que a melhor forma de sua participação seria a relação de uma entrevista improvisada em torno de alguns temas sugeridos por mim. Ao final da conversa Isabel escolheu um poema de Cruzeiro Seixas e o traduziu ao francês. [FM]

FM | Em que circunstância conheceste Cruzeiro Seixas? O Surrealismo foi o grande centro de afinidades entre vocês ou houve algo mais?

IM | Na realidade, não foi o surrealismo que me fez conhecer Mário Cesariny e Cruzeiro Seixas, mas sim uma carta que recebi, após a minha participação a uma exposição de Artes Plásticas, soi disant livre da presença da censura salazarista onde expus seis esculturas de arte bruta, e que dizia: não gostamos. Telefonei ao Mário Cesariny e marcamos um encontro, em que ele veio com o Cruzeiro Seixas. Conversamos longamente (mas não sobre o surrealismo) e ficamos amigos. A minha explicação desta simpatia era que eu tinha 20 anos e era diferente, livre dos preconceitos das mulheres que eles tinham conhecido.

FM | Quando publiquei no Brasil o primeiro livro de Cruzeiro Seixas organizado por mim (Homenagem à realidade. São Paulo: Escritura Editora, 2005), ali incluí uma série de seus desaforismos. Em um deles lemos que cada português é um labirinto sem saída. O que poderias nos dizer deste sentimento de Artur (já sei que assim o preferes chamar) em relação a Portugal e como o sentes tu?

IM | Cruzeiro Seixas era, e é, um labirinto sem saída. É um homem que está sempre na defensiva, tem uma mentalidade de anarquista que se ignora, daí essa sua recusa de aceitar que o considerem um artista, mas sim como um homem que faz “coisas”. Mesmo se todos os seus (raros) amigos o consideram como o MAIOR, e o demonstrem, ele não muda de opinião. No entanto, quando Artur está entre os seus, torna-se outro.
Posso contar-lhe como era nos anos 50, quando nos conhecemos. Artur ou Mário (não me lembro mais quem) tinha encontrado na Costa da Caparica, longe da cidade, uma espécie de casebre alugado a um velho pescador onde passávamos os nossos fins de semana, eu, Mário, Artur e António Tomás, um jovem artesão-aprendiz em tapeçaria, um rapaz adorável, amigo íntimo de Artur. Não se aguentava estar na cabana e passávamos o dia na praia. Artur, que não sabia nadar, entrava direto mar a dentro e como havia ondas gigantescas, tive que ir buscá-lo muitas vezes, mas ele era incorrigível e a cada fim de semana acontecia o mesmo. As condições de vida, de alimentação etc eram muito precárias. Tínhamos um fogareiro a petróleo e uma grande frigideira furada num lado onde eu fazia uma cozinha acrobática com o que encontrava. Era muitas vezes difícil de comer, mas éramos LIVRES e era o que importava e foi isso que cimentou a nossa amizade

FM | Acompanhaste os ritos de passagem de um grupo a outro no caso do Surrealismo em Portugal ou tua nova residência em Paris já te deixou de certa forma alheia a essas rupturas? Como percebias as reações de Artur em meio a tudo isto?

IM | Nunca participei em nenhum rito de passagem dos dois grupos, nessa altura eu estudava escultura e o surrealismo, que eu conhecia mal, era a literatura e a arte fantástica, os mitos celtas etc, pelos quais estava apaixonada, e os amigos surrealistas que eu conhecia não se interessavam de modo nenhum por isso. Era, independentemente, amiga dos participantes do primeiro grupo e do grupo dissidente, só conhecia o Mário Cesariny e o Cruzeiro Seixas, mas para os outros membros do grupo eu era um bicho estranho e assustador.
Mário, Artur e eu éramos muito amigos e vivemos aventuras que, pelo menos, nem o Artur nem eu esquecemos.
Perdemos um pouco o contato depois da minha ida para Paris e a partida dele como marinheiro e ignoro o fim da história.
Pessoalmente nunca aderi a nenhum grupo, e também ninguém me convidou a fazê-lo. Digamos que fui um compagnon de route dos surrealistas os quais, penso eu, nunca me consideraram como uma artista surrealista, era apenas uma amiga útil. Foi somente em Paris que encontrei por acaso Tristan Tzara, Philippe Soupault, Henri Michaux e outros surrealistas e me tornei surrealista, se quiser.

FM | Nos anos 1970 vocês aderiram ao grupo Phases, segundo relato de Rui Manuel Almeida. Foi decisão conjunta ou ali se encontraram casualmente? Considerando que ambos não integraram o grupo em torno de André Breton, qual o sentido naquela participação em Phases?

IM | Não me lembro como o Mário Cesariny e o Artur Cruzeiro Seixas entraram em contato com o Edouard Jaguer e a Anne Ethuin, sua mulher.
Anne Ethuin fazia colagens magníficas e sempre que fazia exposições em Paris, não perdia ocasião para ir vê-la e bater um papo com ela, seu marido e seus amigos.
Eu só servi de tradutora para os textos publicados na revista Phases e apesar de ser amiga deles, eles nunca me pediram para participar como artista na revista.

FM | Já nos anos 1980 fizeste uma escultura em terracota (Sem título, 1984) tomando por base um desenho de Artur. De qual dos dois surgiu a ideia? Chegaste a fazer outras esculturas a partir de desenhos dele?

IM | A ideia de fazer esculturas baseadas nos desenhos do Artur foi só minha. Para mim, como escultora, um desenho só monstra uma face, faltavam as dimensões das outras faces para melhor as compreender. Dá-se a volta em torno de uma escultura.
Como gostava muito dos desenhos do Artur, fiz um certo número de esculturas baseadas nos seus desenhos. Ele colaborou mesmo com uma delas acrescentando, sobre uma cabeça, uma bandeja com uma garrafa e um copo.

FM | Em minha correspondência com Artur ele me conta que havia deixado contigo 40 cadernos de um diário – ao qual ele se referia como não-diário – que pretendias selecionar e publicar. O que houve com esses 40 cadernos?

IM | Esses diários tinham sido vistos por uns rapazes que tinham roubado e posto os diários na maior desordem. Eu tive que revê-los, livro por livro, o que me deu muito trabalho. A Fundação Cupertino de Miranda quis comprá-los por 50.000 €. Como eu sabia que o Artur estava em apuros de dinheiro, pedi a Fundação que esse dinheiro fosse consagrado ao bem-estar do Artur.

FM | Também coube a ti a organização da obra poética de Artur, cujos dois primeiros volumes eu tenho aqui comigo. O terceiro volume eu conheci apenas através de um arquivo em pdf que a editora me enviou, de modo que desconheço se chegou a ser publicado. Quantos mais inéditos há ainda por publicar?

IM | Vou dar uma demonstração da sua indiferença pela opinião dos outros! Artur tinha, num canto da sua casa, uma pilha de folhas soltas de um metro de altura. Eram os poemas dele, que acumulava no dia-a-dia. Um dia perguntei-lhe porque não os publicava pois eu achava-os muito bons: resposta dele - até agora nenhum editor me fez uma proposta nesse sentido. Só tinha publicado um livro a pedido de uma galeria e que tinha passado completamente desapercebido. Propus-lhe pôr um pouco de ordem naquele monte de poemas, levei um ano, mas 3 volumes foram publicados pela Editora Quasi e também passaram quase desapercebidos porque foram mal distribuídos.

FM | As exposições que Artur realizou na África (1953, 1955) tinham como patronos Aimé Césaire e Lautréamont e sempre que me ponho a pensar em possíveis referências de afinidades poéticas de nosso querido, estes dois são os nomes que saltam de seus versos. Estás de acordo comigo, ou acaso encontras outros poetas que lhe tenham marcado a criação?

IM | Ignoro muita coisa do que se passou em África, exceto o que ele me contou, mas nunca me falou de influencias poéticas. Ele tinha um amigo em Luanda, Alfredo Margarido, que conheci mais tarde em Paris, que era um homem muito letrado e inteligente, foi talvez através dele que ele conheceu esses poetas de língua francesa.
É difícil encontrar na poesia do Artur influências de quem quer que seja, pelo menos eu não descobri, ou então muito de leve. Por outro lado, Artur não lê francês. Maldoror, publicado no século XIX, é uma descoberta de Breton e na época, não havia tradução dos autores citados para o português.

FM | Chegaste a realizar algum cadáver delicioso com Artur? Como era sua relação com o outro em criações coletivas?

IM | Fizemos de brincadeira vários cadavres-exquis com várias pessoas e um em escultura feito por mim, Artur e Benjamim Marques. Cada um fez um desenho e eu os integrei numa escultura. Que eu saiba, deve ser o único cadavre-exquis feito desta maneira, e até mesmo não sei se pode ser considerado como tal.

FM | Temos visto mais recentemente a publicação de alguns livros e catálogos de exposições que cuidam da parcela plástica da obra de Artur. Ele, no entanto, me escreve reiteradamente dizendo que se trata apenas de um mundo possível, considerando tanto a sua volúpia criativa quanto uma insatisfação que lhe caracteriza. No segundo volume de sua Obra poética te referes aos 470 desenhos doados por ele à Biblioteca Nacional. Qual o destino desses desenhos? E peço ainda que me faças uma espécie de balanço acerca do tratamento que crítica, mundo editorial e diversas instituições têm dado à sua obra? Cruzeiro Seixas tem sido bem tratado em seu país?

IM | Esses desenhos que foram entregues à Biblioteca Nacional, segundo o Artur me contou, estão guardados numa gaveta ao abandono e muitos teriam sido roubados. Como Artur é por vezes pessimista, não sei ao certo se é assim o que se passou. É preciso dizer que estou longe de Portugal há 60 anos e há muitas coisas que ignoro. Artur levou um certo tempo a ser conhecido, mas agora é louvado por todos os críticos, tem quadros em vários museus e a Fundação Cupertino de Miranda comprou-lhe centenas de desenhos e quadros e fez várias exposições dele. Pode-se dizer que é célebre em Portugal. Ora como é possível que o melhor desenhador a pena surrealista do século XX seja completamente desconhecido no mundo inteiro? Mistérios de Portugal…
Ouvi dizer que para festejar o seu centenário, haverá uma grande exposição da sua obra, creio que sera na UNESCO, em Paris. Enfim!

FM | Esquecemos algo?

IM | Ele ofereceu-me, quando desfez a casa dele, a sua mesa de trabalho coberta de desenhos lindíssimos, que ele fazia distraidamente quando falava ao telefone. Agora é a minha mesa de trabalho, traduzi a pensar nele, cercas de 100 poemas em francês, que provavelmente nunca serão publicados. É a minha maneira de homenagear o amigo inesquecível e o poeta tão desconhecido até agora. Felizmente os 3 volumes que preparei e que foram agora editados pela Porto Editora e espero que desta vez sejam enfim à la portée de tous.


[Crosne, 29 de maio de 2020]


[AMAR A TERRA]

Amar a terra
é abraçá-la com milhões e milhões
de braços
romper da escuridão
como uma coisa que cai
verticalmente
no meio de nós
…………….
Depois fica tudo escrito
A barnco e a negro
Nas paredes da casa branca e negra
Escoando-se por entre os dedos
Quase tudo compreensível
- pronto para ser odiado

(1955)

[AIMER LA TERRE]

Aimer la terre
c’est l’enlacer avec des millions et des millions
de bras
jaillir de l’obscurité
comme une chose qui tombe
verticalement
au milieu de nous
……..
Finalement tout est écrit
en blanc et noir
sur les murs de la maison
blanche et noire
qui s’écroule entre les doigts
presque tout est compréhensible
prêt à être abhorré

(Traduction d’Isabel Meyrelles)


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Agulha Revista de Cultura
UMA AGULHA NO MUNDO INTEIRO
Número 152 | Abril de 2020
Artista convidado: Cruzeiro Seixas (Portugal, 1920)
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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