Para a presente edição em homenagem ao centenário em vida de Cruzeiro Seixas
um imperativo natural seria a presença de Isabel Meyrelles, sua grande amiga e imensa
escultora igualmente ligada ao Surrealismo. Em uma de nossas trocas de e-mails decidimos
que a melhor forma de sua participação seria a relação de uma entrevista improvisada
em torno de alguns temas sugeridos por mim. Ao final da conversa Isabel escolheu
um poema de Cruzeiro Seixas e o traduziu ao francês. [FM]
FM | Em que circunstância
conheceste Cruzeiro Seixas? O Surrealismo foi o grande centro de afinidades entre
vocês ou houve algo mais?
IM | Na realidade, não foi o surrealismo que me
fez conhecer Mário Cesariny e Cruzeiro Seixas, mas sim uma carta que recebi, após
a minha participação a uma exposição de Artes Plásticas, soi disant livre
da presença da censura salazarista onde expus seis esculturas de arte bruta, e que
dizia: não gostamos. Telefonei ao Mário Cesariny e marcamos um encontro,
em que ele veio com o Cruzeiro Seixas. Conversamos longamente (mas não sobre o surrealismo)
e ficamos amigos. A minha explicação desta simpatia era que eu tinha 20 anos e era
diferente, livre dos preconceitos das mulheres que eles tinham conhecido.
FM | Quando publiquei
no Brasil o primeiro livro de Cruzeiro Seixas organizado por mim (Homenagem à
realidade. São Paulo: Escritura Editora, 2005), ali incluí uma série de seus
desaforismos. Em um deles lemos que cada português é um labirinto sem
saída. O que poderias nos dizer deste sentimento de Artur (já sei que assim
o preferes chamar) em relação a Portugal e como o sentes tu?
IM | Cruzeiro Seixas era, e é, um labirinto sem
saída. É um homem que está sempre na defensiva, tem uma mentalidade de anarquista
que se ignora, daí essa sua recusa de aceitar que o considerem um artista, mas sim
como um homem que faz “coisas”. Mesmo se todos os seus (raros) amigos o consideram
como o MAIOR, e o demonstrem, ele não muda de opinião. No entanto, quando Artur
está entre os seus, torna-se outro.
Posso contar-lhe
como era nos anos 50, quando nos conhecemos. Artur ou Mário (não me lembro mais
quem) tinha encontrado na Costa da Caparica, longe da cidade, uma espécie de casebre
alugado a um velho pescador onde passávamos os nossos fins de semana, eu, Mário,
Artur e António Tomás, um jovem artesão-aprendiz em tapeçaria, um rapaz adorável,
amigo íntimo de Artur. Não se aguentava estar na cabana e passávamos o dia na praia.
Artur, que não sabia nadar, entrava direto mar a dentro e como havia ondas gigantescas,
tive que ir buscá-lo muitas vezes, mas ele era incorrigível e a cada fim de semana
acontecia o mesmo. As condições de vida, de alimentação etc eram muito precárias.
Tínhamos um fogareiro a petróleo e uma grande frigideira furada num lado onde eu
fazia uma cozinha acrobática com o que encontrava. Era muitas vezes difícil de comer,
mas éramos LIVRES e era o que importava e foi isso que cimentou a nossa amizade
FM | Acompanhaste
os ritos de passagem de um grupo a outro no caso do Surrealismo em Portugal ou tua
nova residência em Paris já te deixou de certa forma alheia a essas rupturas? Como
percebias as reações de Artur em meio a tudo isto?
IM | Nunca participei em nenhum rito de passagem dos
dois grupos, nessa altura eu estudava escultura e o surrealismo, que eu conhecia
mal, era a literatura e a arte fantástica, os mitos celtas etc, pelos quais estava
apaixonada, e os amigos surrealistas que eu conhecia não se interessavam de modo
nenhum por isso. Era, independentemente,
amiga dos participantes do primeiro grupo e do grupo dissidente, só conhecia o Mário
Cesariny e o Cruzeiro Seixas, mas para os outros membros do grupo eu era um bicho
estranho e assustador.
Mário, Artur e eu
éramos muito amigos e vivemos aventuras que, pelo menos, nem o Artur nem eu esquecemos.
Perdemos um pouco
o contato depois da minha ida para Paris e a partida dele como marinheiro e ignoro
o fim da história.
Pessoalmente nunca
aderi a nenhum grupo, e também ninguém me convidou a fazê-lo. Digamos que fui um
compagnon de route dos surrealistas os quais, penso eu, nunca me consideraram
como uma artista surrealista, era apenas uma amiga útil. Foi somente em Paris que
encontrei por acaso Tristan Tzara, Philippe Soupault, Henri Michaux e outros surrealistas
e me tornei surrealista, se quiser.
FM | Nos anos 1970
vocês aderiram ao grupo Phases, segundo relato de Rui Manuel Almeida. Foi
decisão conjunta ou ali se encontraram casualmente? Considerando que ambos não integraram
o grupo em torno de André Breton, qual o sentido naquela participação em Phases?
IM | Não me lembro como o Mário Cesariny e o Artur
Cruzeiro Seixas entraram em contato com o Edouard Jaguer e a Anne Ethuin, sua mulher.
Anne Ethuin fazia
colagens magníficas e sempre que fazia exposições em Paris, não perdia ocasião para
ir vê-la e bater um papo com ela, seu marido e seus amigos.
Eu só servi de tradutora
para os textos publicados na revista Phases e apesar de ser amiga deles,
eles nunca me pediram para participar como artista na revista.
FM | Já nos anos
1980 fizeste uma escultura em terracota (Sem
título, 1984) tomando por base um desenho de Artur. De qual dos dois surgiu
a ideia? Chegaste a fazer outras esculturas a partir de desenhos dele?
IM | A ideia de fazer esculturas baseadas nos desenhos
do Artur foi só minha. Para mim, como escultora, um desenho só monstra uma face,
faltavam as dimensões das outras faces para melhor as compreender. Dá-se a volta
em torno de uma escultura.
Como gostava muito
dos desenhos do Artur, fiz um certo número de esculturas baseadas nos seus desenhos.
Ele colaborou mesmo com uma delas acrescentando, sobre uma cabeça, uma bandeja com
uma garrafa e um copo.
FM | Em minha correspondência
com Artur ele me conta que havia deixado contigo 40 cadernos de um diário – ao qual
ele se referia como não-diário – que pretendias selecionar e publicar. O
que houve com esses 40 cadernos?
IM | Esses diários tinham sido vistos por uns rapazes
que tinham roubado e posto os diários na maior desordem. Eu tive que revê-los, livro
por livro, o que me deu muito trabalho. A Fundação Cupertino de Miranda quis comprá-los
por 50.000 €. Como eu sabia que o Artur estava em apuros de dinheiro, pedi a Fundação
que esse dinheiro fosse consagrado ao bem-estar do Artur.
FM | Também coube
a ti a organização da obra poética de Artur, cujos dois primeiros volumes eu tenho
aqui comigo. O terceiro volume eu conheci apenas através de um arquivo em pdf que
a editora me enviou, de modo que desconheço se chegou a ser publicado. Quantos mais
inéditos há ainda por publicar?
IM | Vou dar uma demonstração da sua indiferença pela
opinião dos outros! Artur tinha, num canto da sua casa, uma pilha de folhas soltas
de um metro de altura. Eram os poemas dele, que acumulava no dia-a-dia. Um dia perguntei-lhe
porque não os publicava pois eu achava-os muito bons: resposta dele - até agora
nenhum editor me fez uma proposta nesse sentido. Só tinha publicado um livro a pedido
de uma galeria e que tinha passado completamente desapercebido. Propus-lhe pôr um
pouco de ordem naquele monte de poemas, levei um ano, mas 3 volumes foram publicados
pela Editora Quasi e também passaram quase desapercebidos porque foram mal distribuídos.
FM | As exposições
que Artur realizou na África (1953, 1955) tinham como patronos Aimé Césaire e Lautréamont
e sempre que me ponho a pensar em possíveis referências de afinidades poéticas de
nosso querido, estes dois são os nomes que saltam de seus versos. Estás de acordo
comigo, ou acaso encontras outros poetas que lhe tenham marcado a criação?
IM | Ignoro muita coisa do que se passou em África,
exceto o que ele me contou, mas nunca me falou de influencias poéticas. Ele tinha
um amigo em Luanda, Alfredo Margarido, que conheci mais tarde em Paris, que era
um homem muito letrado e inteligente, foi talvez através dele que ele conheceu esses
poetas de língua francesa.
É difícil encontrar
na poesia do Artur influências de quem quer que seja, pelo menos eu não descobri,
ou então muito de leve. Por outro lado, Artur não lê francês. Maldoror, publicado
no século XIX, é uma descoberta de Breton e na época, não havia tradução dos autores
citados para o português.
FM | Chegaste a realizar
algum cadáver delicioso com Artur? Como era sua relação com o outro em criações
coletivas?
IM | Fizemos de brincadeira vários cadavres-exquis
com várias pessoas e um em escultura feito por mim, Artur e Benjamim Marques. Cada
um fez um desenho e eu os integrei numa escultura. Que eu saiba, deve ser o único
cadavre-exquis feito desta maneira, e até mesmo não sei se pode ser considerado
como tal.
FM | Temos visto
mais recentemente a publicação de alguns livros e catálogos de exposições que cuidam
da parcela plástica da obra de Artur. Ele, no entanto, me escreve reiteradamente
dizendo que se trata apenas de um mundo possível, considerando tanto a sua volúpia
criativa quanto uma insatisfação que lhe caracteriza. No segundo volume de sua Obra
poética te referes aos 470 desenhos doados por ele à Biblioteca Nacional. Qual
o destino desses desenhos? E peço ainda que me faças uma espécie de balanço acerca
do tratamento que crítica, mundo editorial e diversas instituições têm dado à sua
obra? Cruzeiro Seixas tem sido bem tratado em seu país?
IM | Esses desenhos que foram entregues à Biblioteca
Nacional, segundo o Artur me contou, estão guardados numa gaveta ao abandono e muitos
teriam sido roubados. Como Artur é por vezes pessimista, não sei ao certo se é assim
o que se passou. É preciso dizer que estou longe de Portugal há 60 anos e há muitas
coisas que ignoro. Artur levou um certo tempo a ser conhecido, mas agora é louvado
por todos os críticos, tem quadros em vários museus e a Fundação Cupertino de Miranda
comprou-lhe centenas de desenhos e quadros e fez várias exposições dele. Pode-se
dizer que é célebre em Portugal. Ora como é possível que o melhor desenhador a pena
surrealista do século XX seja completamente desconhecido no mundo inteiro? Mistérios
de Portugal…
Ouvi dizer que para festejar o seu centenário,
haverá uma grande exposição da sua obra, creio que sera na UNESCO, em Paris. Enfim!
FM | Esquecemos algo?
IM | Ele ofereceu-me, quando desfez a casa dele, a
sua mesa de trabalho coberta de desenhos lindíssimos, que ele fazia distraidamente
quando falava ao telefone. Agora é a minha mesa de trabalho, traduzi a pensar nele,
cercas de 100 poemas em francês, que provavelmente nunca serão publicados. É a minha
maneira de homenagear o amigo inesquecível e o poeta tão desconhecido até agora.
Felizmente os 3 volumes que preparei e que foram agora editados pela Porto Editora
e espero que desta vez sejam enfim à la portée de tous.
[Crosne, 29 de maio de 2020]
[AMAR A TERRA]
Amar a terra
é abraçá-la com milhões e milhões
de braços
romper da escuridão
como uma coisa que cai
verticalmente
no meio de nós
…………….
Depois fica tudo escrito
A barnco e a negro
Nas paredes da casa branca e negra
Escoando-se por entre os dedos
Quase tudo compreensível
- pronto para ser odiado
(1955)
[AIMER LA TERRE]
Aimer la terre
c’est l’enlacer avec des millions et des millions
de bras
jaillir de l’obscurité
comme une chose qui tombe
verticalement
au milieu de nous
……..
Finalement tout est écrit
en blanc et noir
sur les murs de la maison
blanche et noire
qui s’écroule entre les doigts
presque tout est compréhensible
prêt à être abhorré
(Traduction d’Isabel
Meyrelles)
*****
Agulha Revista de Cultura
UMA AGULHA NO MUNDO
INTEIRO
Número 152 | Abril de 2020
Artista convidado: Cruzeiro Seixas
(Portugal, 1920)
editor geral | FLORIANO MARTINS |
floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES
| mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão |
FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2020
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