A
última vez que Artur do Cruzeiro Seixas apareceu em público foi nesta Feira do Livro
de Lisboa, por causa da edição do seu Diário não Diário, pelo Centro Português de Serigrafia, e para fazer com graça e espírito
a apresentação de mais um volume da coleção da E-primatur que reúne a obra de um
amigo, Mário Henrique Leiria. Encontrámo-nos em poucos metros quadrados, na Casa
do Artista, entre memórias e arrependimentos, com o último dos surrealistas.
FC | Tem 98 anos. Qual é a sua recordação
mais antiga?
CS | Nós saímos da Amadora quando eu tinha
cinco anos mas, estranhamente, a recordação mais antiga que tenho é de uma oliogravura,
que não prestava para nada, que estava pendurada bem alto no corredor, do Camões
lendo Os Lusíadas ao D. Sebastião.
FC | Como eram os seus pais?
CS | Eram pessoas excecionais, acho eu. Havia
um grande respeito de um pelo outro, coisa muito bonita. O meu pai era funcionário
do caminho de ferro e tinha um ordenado muito pequeno, mas era incapaz de ganhar
mais dinheiro fosse no que fosse, portanto era uma obra de arte vivermos do dinheiro
que ele ganhava. A mãe sabia francês, tocava piano e já a minha avó e o meu bisavô
eram pintores e desenhadores. Eram ambos brasileiros.
FC | Quem é que o influenciou mais, o seu
pai ou a sua mãe?
CS | A minha mãe era uma figura admirável,
o pai era mais apagado, em tudo o mais impressionante era viver com um princípio
de honestidade. Eu admiro imenso a honestidade e, por isso, estou fora deste mundo.
Hoje, infelizmente, há aldrabões de toda a espécie.
FC | Na vida pública?
CS | Infelizmente.
FC | Acompanha as notícias?
CS | São de grande repulsa e raiva porque,
realmente, essa gente não tem caráter nem vergonha e não sabe o que fazer ao dinheiro.
Ninguém se lembra de fazer uma coleção de obras de arte a sério.
FC | Temos agora a história do Joe Berardo…
CS | Não simpatizo com aldrabões e não quero
com isto dizer que ele seja um aldrabão. Eu visitei uma única vez o museu dele e
achei-o pobrezinho. Naturalmente, alguém teria de roubar muito mais para fazer um
museu a sério…
FC | Quando é que soube que era um artista?
CS | Minha querida amiga, foi quando estávamos
na Amadora. Aos cinco anos, a minha mãe disse-me que não tinha dinheiro para brinquedos,
mas deu-me papel, lápis e borracha. Depois, a minha mãe fazia uns buraquinhos nos
desenhos e com um fio pendurava-os pela casa, nos fechos das portas. Desde miúdo
que sei o que é uma exposição.
FC | Aos 14 foi para a António Arroio.
CS | Fui porque era a escola mais barata,
não por outra razão. Tenho a pior impressão dos professores. A única coisa para
a qual tenho habilidade é para desenhar e chumbei a desenho. Uma série de vezes.
FC | Mas foi lá que conheceu colegas depois
importantes na sua vida…
CS | Andava lá toda a gente que depois veio
a fazer nome na cultura, e desde logo o grande encontro foi com o Cesariny.
FC | Lembra-se de quando o viu pela primeira
vez?
CS | Lembro. Foi encantador porque era um
rapazinho muito bonito, o que facilita as coisas, e a nossa conversa foi logo sobre
cultura, não foi sobre futebol ou meninas, foi sobre aquilo que nos apaixonava.
FC | E percebeu logo que ele poderia vir
a ser uma pessoa especial?
CS | Logo nas primeiras conversas, nos primeiros
encontros. Percebi logo que o Mário tinha uma cultura muito vasta para um miúdo
daquela idade. Ele foi um segundo pai para mim, apesar de ser mais novo do que eu
uns dois ou três anos. Ele já tinha lido bastantes coisas que depois me recomendou
e que me deram diretrizes que doutro modo não teria.
FC | Conspiravam contra Salazar?
CS | Ah, era a nossa grande raiva. Noutro
dia apareceu o Otelo na televisão a dizer uma coisa engraçada: os portugueses precisavam
de um Salazar que fosse democrata, ou seja, um homem honesto e democrata ao mesmo
tempo, pois parece que as duas coisas juntas são difíceis de encontrar. Mas ainda
não houve coragem para dizer que o António Ferro merecia homenagem. O Almada Negreiros
foi beneficiadíssimo. Todas as encomendas que havia aos artistas eram feitas pelo
Estado e isso era uma coisa bem feita, que acabou com a revolução.
FC | Como era a vossa relação com a polícia
política?
CS | Era estar sempre na linha de equilíbrio
entre ir para a prisão e ser um tipo livre. Eu tenho ficha na PIDE.
FC | Porquê?
CS | Porque respirava e eles não queriam
sequer isso. O Salazar era um homem sério mas era tacanho, católico praticante e
metido em pequenos círculos, cada vez mais apertados, a moral e não sei o quê mais…
FC | E a moral do regime não era a vossa?
CS | De maneira nenhuma. Sonhávamos com um
mundo livre, pelo menos com este remendo de mundo livre que temos hoje.
FC | Qual foi a sua primeira grande paixão?
CS | Posso contar?! A primeira grande paixão
- eu não tenho segredos, sabe? – foi uma paixão homossexual por um jovenzinho muito
simples que era estofador e que vivia numa casa onde era tudo ao contrário do que
se passava na dos meus pais, onde era tudo ordem e respeito; na dele era zaragata
todas as noites em que a polícia tinha de intervir. Vivia com muita gente, e em
casa tinha uma sala muito grande dividida por colchas e atrás de cada uma delas,
uma cama, espantoso, não é? E ali vivia imensa gente, casais e tudo. O pai dele
era estivador no porto de Lisboa, um brutamontes que quando vinha do trabalho, bêbado,
batia nuns quantos, que batiam também, e a polícia vinha e levava-os a todos, batia-lhes
igualmente e mandava-os embora no dia seguinte. Aquela espécie de flor – desculpem-me
se sou excessivo – vivia no meio de toda aquela embrulhada. O nosso encontro foi
uma revelação e, por ter podido conhecer o outro lado da vida, estar-lhe-ei sempre
muito grato.
FC | Participou no grupo dos surrealistas
mas a certa altura foi-se embora…
CS | Lembrei-me de África, pois não havia
dinheiro para manter aos meus pais e a mim. Eu não tinha dinheiro para ir para Paris
como outros faziam, como o Cesariny. Até o António Maria Lisboa, que vivia com muitas
dificuldades, foi. Para mim era impossível. Lembrei-me de uma coisa que me apaixonava
que era a negritude, que era existir gente ainda em estado de opressão. E fui para
Angola, onde tinha pessoas da família colocadas em altos cargos. O governador era
primo de minha mãe. Estive uns poucos de meses hospedado no palácio do governo.
Gente da situação mas que nunca insistiu comigo para idas à missa, para estar presente
em coisas oficiais. Lembro-me de um hóspede muito rico, que dava dinheiro a Franco,
e de um dia ficar sentado ao pequeno-almoço ao lado dele. Aproveitei para perguntar
se ele tinha no seu palácio de Madrid uma grande coleção de pintura, ao que respondeu:
No soy un complicado sentimental. Para
ele, a pintura era uma complicação sentimental e mais nada.
FC | E o Cruzeiro Seixas é um complicado
sentimental?
CS | Eu acho que não.
FC | Quando é que entra a poesia na sua vida?
CS | Quando fiquei em África muito sozinho.
Tinha o Cesariny e aquele rapazinho que me acompanhou e de repente fiquei sozinho,
com aquele ideal de libertar aquela gente da escravidão e comecei a escrever poesia.
Durante o primeiro ano escrevi quase toda a minha poesia e depois parou, quando
comecei a conhecer gente.
FC | O que foi feito desses escritos?
CS | Andei toda a minha vida aos saltos.
São inúmeras as coisas que perdi. As minhas coisas, tal como os poemas, andaram
de mão em mão. Não sei como foram ter à Fundação Cupertino de Miranda [exposição
Ao Longo do Caminho, até 29 deste mês]
que editou três volumes e agora vai reeditar, além de um volume de inéditos.
FC | Só esteve em Angola?
CS | Estive também em Moçambique, Guiné,
Índia portuguesa, Timor e Macau. Fui funcionário de uma companhia de navios mercantes
que fazia a volta do colonialismo português. Uma viagem levava um ano.
FC | A bordo o que é que fazia?
CS | Serviço de escritório. Era formidável.
Às vezes, não podia sair nos portos. Em Hong Kong, por exemplo, saí pouco. Só uma
vez. Mas era lindo ver as chinesas nos riquexós, a mostrarem as pernas até aqui
[pela coxa], mas com os vestidos fechados até acima – era ali e não nas pernas que
estava a vergonha delas. Eram lindas, lindas, lindas.
FC | E África como era?
CS | Uma coisa horrível. A miséria e os portugueses
a enriquecerem. Logo na primeira viagem, da amurada do navio, quando este atracou,
vi uma fila de uns 20 pretos todos amarrados uns aos outros. Perguntei o que era
aquilo e responderam-me com ironia que eram voluntários
à corda. Eram obrigados a trabalhar a bordo e levados atados como animais.
FC | Tem ali uma espécie de régua…
CS | Roubei-a de um altar de uma igreja,
aquilo era para quando o padre ia de oito em oito dias ensinar a missa à pancada.
Apanhavam nas solas dos pés. Até velhos de 70 anos, como se fossem miúdos.
FC | Acabou por percorrer Angola de camião…
CS | Andei a levar carga aqui e ali. Nunca
se sabe o que vai acontecer porque eram caminhos de terra batida e se o carro avariasse
passavam dias sem aparecer ninguém. Houve gente que morreu à espera.
FC | Assistiu ao início dos movimentos de
independência?
CS | Eu fiz duas exposições lá, pró-movimentos
de independência. A primeira em 1953, 48 desenhos no Salão da Restauração. Fez alarido,
mas nessa a PIDE não se meteu.
CS | Sim, ameaçaram-me que não me deixavam
sair de Angola. Mas depois deixaram porque já estavam de cabeça perdida, pois ia
começar a guerra. Eu vim embora nessa ocasião. Tinha feito uma outra exposição,
francamente escandalosa, com o Alfredo Margarido, numa casa em ruínas. Nessa altura,
o Salazar era arrasado por todo o Mundo, de maneira que bastava dizer, em Lisboa
ou em qualquer parte, que se era um tipo perseguido que se era logo socorrido. O
Alfredo Margarido fez isso: pôs-se a correr por uma rua de Lisboa a dizer estou a ser perseguido pela PIDE, e meteu-se
na embaixada de França. Foi recebido com honras e acabou na Sorbonne.
FC | E o Cruzeiro Seixas o que fez?
CS | Eu vim depois e continuei a minha vida.
FC | Porque é que diz que a exposição foi
escandalosa?
CS | Houve controvérsia nos jornais. Essa
documentação, há quem esteja agora a juntá-la toda porque eu perdia-a.
FC | Nunca foi muito apegado às suas coisas,
pois não?
CS | Sabe, era obrigado a não ser. De repente
tinha de ir trabalhar para outro sítio e tinha de abandonar tudo.
FC | Li numa entrevista sua que afinal não
gosta de pintar…
CS | Eu não gosto é que me considerem um
artista. Faz-me lembrar quando era novo e havia aqueles senhores empertigados, que
tinham pera e usavam laço à la lavandière
e de quem se dizia: Aquele senhor é artista!…
Hoje já não usam laço à la lavandière,
mas continuam a achar indispensável terem ateliê e um ateliê, ao fim ao cabo, é
uma loja onde em vez de se venderem batatas e bacalhau se vende pintura. Para mim
era aquilo que eu não gostava de fazer; eu não gostava, nem gosto de vender, não
tenho prazer nenhum nisso. Eu gosto é de dar, de maneira que passei a vida a dar.
Eu não fui um pintor de óleo porque não tinha dinheiro para comprar uma tela, sequer.
Como passei a vida empregado, a minha obra foi toda feita nas gavetas dos empregos
e tem toda este tamanho [faz gesto com as mãos], que era o tamanho das gavetas dos
empregos. De vez em quando, o chefe vinha ver o que eu andava a fazer e eu fechava
a gaveta. Eu era um péssimo funcionário, evidentemente.
FC | Teve muitos empregos?…
CS | Demasiados para lembrar agora. Um dos
mais importantes, por ter sido o primeiro, foi ainda nos anos 40, durante a guerra,
numa coisa de abastecimento. Por causa do racionamento, havia vários postos que
tratavam do abastecimento de cada bairro. Eu fui colocado no Lumiar.
FC | Na década de 80 vai para o Algarve,
porquê?
CS | Isso é uma história complicada. O Cesariny
era uma pessoa muito social, que gostava muito de fazer vida em sociedade e tirar
vantagens disso. Não é realmente nada de fora do vulgar, isso é comum. E ele já
tinha feito tantas relações ao mais alto nível que não se comparava com o miserável
que eu era. Era a Vieira da Silva, que era um dos sonhos dele e aquilo tudo, e eu
comecei a afastar-me. Ou inventei eu tudo, e não estava de facto a ser a posto de
lado, mas de facto senti-me preterido. Nessa altura estava num emprego que a Natália
Correia me tinha arranjado, na secretaria da Cultura, e que detestava. Um dia apareceu
um homem espalhafatoso que se chamava Tomás Ribas, que ficou muito contente por
me ver ali. Perguntei-lhe onde ele estava: Estou
a dirigir a secção da cultura do Algarve. Morei em Faro, dois, três anos.
FC | Li numa entrevista sua: Tive muita gente que me amou, fui muito amado.
Tem saudades de alguma coisa ou de alguém hoje em dia?
CS | Eu acho que fui muito amado mas eu queria
mais, pois quando se é velho cai-se numa grande solidão. Hoje quase posso dizer
que estou arrependido do caminho que segui porque faz-me falta uma pessoa ao lado,
seja ela o que for, faz-me falta o papel do casal. O botão que não está apertado,
o lápis que não se sabe onde se deixou. As pequenas coisas do dia a dia. Não vejo
solução para este estado de coisas. Não estou a gostar nem a achar graça, mas agora
com esta idade…
FC | O Cesariny era contra o casamento. Também
é contra o casamento homossexual?
CS | Não ponha o caso como ser homossexual
ou não, ponha o caso como encontrar uma companhia. Encontrar uma companhia é uma
coisa muito bonita, alguém que nos compreenda e que esteja disposto a entrar no
mesmo jogo, guardando o seu jogo também. Mas isso é muito difícil e não se encontra
por aí. No meu caso resultou numa grande solidão. As coisas nunca são como nós queremos,
mas às vezes somos nós os culpados dos nossos próprios desastres. Somos nós que
abrimos o buraco onde vamos cair. Alguns desses relacionamentos pareciam ser para
durar séculos mas acabaram meses ou anos depois. São grandes fogachos que aparecem
e desaparecem. A vida não é nada simples.
FC | Alguma vez imaginou que pudesse chegar
aos 98 anos?
CS | Jamais. O médico tinha dito que eu morria
aos 20. Acontece uma coisa: o corpo está morto. Tenho dificuldade em me deslocar,
como viram, a única coisa que está ainda como se tivesse 15 anos é a cabeça. Curiosamente.
A cabeça funciona como a de um garoto, eu tenho de estar constantemente a repreender-me
a mim mesmo.
FC | Isso deve ser o cabo dos trabalhos…
CS | Agora já não faço nada. Eu não vejo
para desenhar. Isso é outra raiva que leva também a outra grande solidão. A grande
companhia é poder desenhar e pintar e hoje quero desenhar e sai uma porcaria. Ler
também não posso.
FC | Como passa os dias?
CS | Felizmente que ainda acontece um milagre:
tanto durmo de dia como de noite. De maneira que passo dias inteiros a dormir, que
é uma maneira de não pensar. Porque nem todos os dias vem gente, nem todos os dias
se arranja quem venha ler.
FC | Não sei se se preocupa com estas coisas,
mas como é que gostaria de ser lembrado?
CS | A minha vaidade não é desenhar bem ou
mal. Aquilo com que me envaideço é sair da vida tão pobre como quando comecei. É
uma coisa quase milagrosa. Hoje em dia toda a gente quer enriquecer.
FC | Essa atitude é surrealista…
CS | Ter demais é uma coisa estúpida.
FC | Imagine que pode encontrar o Cesariny
novamente…
CS | … quem me dera.
FC | O que lhe dizia sobre Portugal?
CS | Só essa ideia me comove, minha senhora.
O Mário representou muito para mim. É a figura mais importante da minha vida. Com
todas as suas loucuras, com todos os seus disparates, com todos os seus erros, que
eram muitos. A dada altura, por exemplo, o Mário foi a Paris, contactou com o André
Breton e teve a ousadia de discordar dele e isso numa altura em que nós podíamos
ter ingressado no surrealismo internacional, deixou-nos cingidos a Lisboa.
FC | O que lhe diria se o encontrasse agora?
CS | Não havia palavras. Dava-lhe um grande
abraço.
NOTA
Entrevista
originalmente publicada a 2 de setembro de 2019, na revista Domingo do jornal português Correio da Manhã, e gentilmente cedida por
Fernanda Cachão.
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Número 152 | Abril de 2020
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Seixas (Portugal, 1920)
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