sábado, 27 de junho de 2020

THEREZA CHRISTINA ROCQUE DA MOTTA | O mercado editorial e a pandemia


Em 2000, fundei uma editora, depois de 20 anos da minha primeira experiência editorial, em 1980, quando lancei um primeiro livro de poemas. Nesse momento, eu entrava, sem saber, num mundo que pertence a um grupo muito seleto de pessoas (e ao qual muitos querem pertencer) e que é o sonho de muita gente, mesmo que nunca seja realizado.
Já analiso e observo a entrada no mundo editorial há 40 anos, da publicação de um primeiro livro, da abertura de uma livraria, da fundação de uma editora, da preparação de um livro em todas as suas fases, da impressão, divulgação, distribuição, venda e controle de consignações. A vida de um livro (nome de duas edições que fiz sobre o assunto, em 2010 e 2018) é longa e extensa, e fazemos livros para a vida inteira, como escrevi em uma de minhas crônicas.
A atividade editorial é cansativa, se formos avaliar por suas dificuldades e entraves. Mas a necessidade ou a vontade de publicar um livro supera todas elas, porque, olimpicamente, os editores superam essas dificuldades, galgando-as, uma a uma, enfrentando todo tipo de desafio, desde a produção do próprio livro, até a negociação com a livraria para poder vendê-lo. As livrarias não são boas nem más; são parceiros na alegria, mas não na tristeza. Eles querem andar junto com o seu sucesso, mas não dividem fracassos. O mercado editorial é um campo que só admite vitórias.
Já vínhamos mal das pernas desde que, em 2005, nos avisaram como o mercado livreiro estava literalmente encolhendo, vendendo e produzindo cada vez menos. Essa palestra na Primavera dos Livros no Jockey Club naquele ano, trouxe dois economistas para nos explicar o que estava acontecendo conosco. Estávamos cada vez menores. E disseram: Se a Volkswagen estivesse perdendo tanto dinheiro assim, já estaria batendo na porta do Palácio do Planalto para conseguir uma solução. E por que a solução não veio? Porque vender livros não é a mesma coisa que vender carros. Há um poder muito maior no mercado automobilístico do que no editorial. Estranho, mas é verdade. O carro confere um status que livro nenhum consegue dar.
Estamos sendo absolutamente materialistas. A luta para se publicar livros no Brasil (digo luta, porque é uma luta mesmo) é tamanha, que lidamos com todos os senões que um livro pode ter, até não vender por falta de divulgação, ou de distribuição suficiente. Os editores precisam, além de saber fazer livros, saber vendê-los, como se vende banana. Temos que fazer exercícios mercadológicos para que o livro editado chegue onde tem que chegar, sejam bibliotecas ou escolas, ou sejam comprados por um programa governamental. Essa foi uma das experiências mais transcendentais que tive e das mais dificultosas, porque a burocracia come pelas beiradas.
Mas o objetivo, uma vez que se consiga superar os obstáculos, é alcançado. E assim vivem as editoras, fazendo de tudo um pouco para que os seus livros circulem por todo o território nacional e além. E é aí que começaram os novos problemas por causa da pandemia. As livrarias fecharam, os lançamentos deixaram de acontecer desde março de 2020. E o mercado editorial, que já estava chafurdando na lama há mais de dez anos, teve que fazer seu salto olímpico.
Especialistas não se cansam de analisar o que está acontecendo com a produção e a venda de livros no Brasil e na América Latina, porque com a pandemia não é (só) mais o Brasil que vai mal (antes, até as grandes livrarias nos EUA começaram a fechar por falta de vendas, depois que a Amazon entrou no circuito), porém, diante da pandemia, graças ao coronavírus, o que estava em estado terminal, passou a viver em estado mortal. A saída passou ser o livro digital.
Aquilo que já vinha se configurando há alguns anos desde que os ebooks passaram a existir, foi empurrado garganta abaixo daqueles que não aceitavam ler livros numa telinha. Agora só os livros digitais podem circular mais rápida e eficazmente do que os impressos, além da produção ser muito mais barata. Não é mais preciso imprimir milhões de livros para poder vender. Agora se vende primeiro e se imprime depois, já era a fórmula da impressão digital. Porém, até este ano, ninguém pensava em abrir mão do livro impresso. E quem trabalha com produção e impressão de livros sabe como a banda toca.
O livro digital surgiu como uma resposta natural do meio cibernético em que vivemos. Então há anos somos convidados a transformar nossos livros impressos em ebooks. Porém o trabalho braçal que isso dá tornava a digitalização quase impossível. Tínhamos que parar tudo o que estávamos fazendo para passar a converter nossos arquivos de impressão em epubs. Até aí, não há nenhum mal, porém, ao nos vermos impedidos de vender os livros impressos, o livro virtual ganhou um lugar inigualável. Só ele consegue circular sem contaminar ninguém. E os editores passaram a fazer lançamentos virtuais de seus livros físicos (porque os leitores ainda não deixaram de querer os exemplares impressos).
Nunca pensamos que fôssemos viver uma crise dessas. Já existia uma crise no mercado editorial, como mostram as tabelas de faturamento em declínio entre 2008 e 2018. Os olhos estavam todos voltados para essa crise financeira no mercado editorial. E, com o Covid-19, passamos a viver uma situação inédita: editoras, livreiros, distribuidores e todos os que fazem parte da cadeia do livro (designers, tradutores, revisores, preparadores de texto), um exército de pessoas se viu sem trabalho ou precisando fazer concessões para não deixar de trabalhar. Uma vendedora entrou em contato comigo querendo vender os meus livros, porque qualquer dinheiro conta. É uma crise sem precedentes. As editoras continuam se sustentando com as parcas receitas reduzidas com que já viviam, só que mais magras com a queda nas vendas.
Como se não bastasse a crise das livrarias. O que aconteceu com a Cultura e a Saraiva é inominável. Resultado da má administração e de golpe contra o mercado livreiro. A dívida conjunta dessas duas livrarias somava R$ 1 milhão de reais há dois anos. A Cultura me devia R$ 600,00, e começou a pagar em seis vezes e ainda não quitou. Isso foi um resto de crédito que havia, mas graças à minha boa sorte, a Saraiva não me devia nada, pois eu a demitira há 10 anos, deixando de fazer negócios com ela. Já era mal pagadora há muito tempo, muito antes da Cultura fazer o mesmo, cortando-a da minha lista de clientes.
Assim, em que pé ficamos? Temos livros para fazer, mas não temos dinheiro para produzi-los, pois não temos mais as receitas dos lançamentos que mantinham a roda girando. Com a queda das vendas das livrarias, pois fechadas vendem muito menos do que online (embora a Livraria da Travessa continue comprando meus livros para atender as encomendas), estamos à beira de um ataque de nervos. O último lançamento que fiz em 12 de março foi pago em abril, isso porque me recusei a receber em 60 dias sem prévio aviso. Até então todos os pagamentos eram feitos em 30 dias, que, por causa da pandemia, passaram a ser de 60 na Travessa.
Depois dos primeiros dois meses do início da pandemia, começaram a ressurgir os autores com livros para publicar que desengavetaram durante a quarentena. É um contrassenso, mas é sintomático. Ninguém parou de escrever, ninguém parou de querer publicar, nem nós paramos de fazer livros, porém a circulação desses livros está num funil. Daí termos que inventar lives, vendas online, ebooks, promoções na loja virtual, descontos, porque o mercado livreiro não morreu. Pode ter sido jogado na lona várias vezes, pode sobreviver à míngua, pode passar fome, mas continua ativo, prolífico, revigorado.
As grandes editoras estão enfrentando a crise vendendo clássicos. O paladar para a leitura mudou. Todos querem entender o mundo, o racismo, a peste. As mulheres estão se saindo bem nesses noves fora. Mas a criatividade literária se perpetua. Os poetas continuam escrevendo, tenho livros para publicar o resto do ano. Eu mesma estou comemorando 40 anos de poesia. Mas é fato que temos que reaprender a vender livros num meio virtual, em que as pessoas só se encontram agora à distância. Vai demorar até todos se convencerem que a pandemia passou e de que é seguro ir a shoppings e livrarias. Por enquanto, eu não saio.
Outra saída tem sido a autopublicação, e a Amazon faz um grande serviço em relação a isso, mas simplesmente não é a mesma coisa. Todo autor tem que ter uma editora. E precisa dela. A autopublicação (que eu fiz nos primeiros tempos) não preenche um requisito máximo do selo editorial. Uma editora é e continuará a ser a casa dos autores. É preciso ter um editor pensando o livro. Quem faz autopublicação é editor também, não só autor. Aconteceu comigo. Depois de me editar, passei a editar os outros. Quem é só autor, não é editor de si mesmo.
As pessoas adoram estatísticas e os números mostram que as vendas de livros estão em queda e por isso não vale a pena publicar. Mas é o oposto que acontece. Caos em japonês une dois ideogramas: crise e oportunidade. Toda crise traz uma oportunidade. Basta procurar por ela. Eu encontrei essa explicação quando ainda estava na Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie em 1980, e fundei um grupo de poetas e editava um jornal universitário, o Análise. Tudo começou ali. Mas há 40 anos ninguém poderia prever o que iria acontecer agora, nem eu imaginava que aquilo que comecei como atividade secundária se tornaria a principal.
Aprendi a fazer livros antes de me tornar advogada. E ser editora era a minha vocação mais do que ser jurista. Quando compreendi isso há 20 anos, eu não tive dúvida em largar o que já não me satisfazia. Um jornalista me perguntou, há alguns anos, se eu penso em desistir. Eu respondi: todos os dias. Mas não se desiste de um sonho. Se desistirmos, não era sonho, era ilusão.
Por mais que o mercado editorial esteja cambaleando, ele tem tudo para voltar ainda mais forte com outros instrumentos e ferramentas. Isso está sendo inventado enquanto escrevo estas linhas. Os editores são as pessoas mais renitentes que eu conheço. Fico pasma com o fôlego que eles têm. E dizem o mesmo de mim. Mesmo com crise, com vírus, com queda nas vendas, com mudança de todos os paradigmas, o livro continuará a ser, impresso ou virtual, o melhor modo de conseguir entender o mundo.


*****

Agulha Revista de Cultura
UMA AGULHA NO MUNDO INTEIRO
Número 153 | Maio de 2020
Artista convidado: Teresa Sá Couto (Portugal)
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2020


Nenhum comentário:

Postar um comentário