PERSONAGENS
Fidio e Lilbe, homem e mulher
Um ataúde negro para criança. Quatro velas. Um Cristo
de ferro. Uma cortina negra ao fundo. Esta peça tem um quadro único.
Escuridão. Choro de um recém-nascido. De repente, um
grito terrível de bebê, imediatamente seguido pelo silêncio.
Fidio — A partir de hoje seremos bons e puros.
Lilbe — O que há com você?
Fidio — Eu digo que a partir de hoje seremos bons e
puros como anjos.
Lilbe — Nós?
Fidio — Sim.
Lilbe — Nós não seremos capazes.
Fidio — Você está certa. (Pausa.) Vai ser muito difícil. (Pausa.)
Vamos tentar.
Lilbe — Como?
Fidio — Cumprindo a lei de Deus.
Lilbe — Eu esqueci.
Fidio — Eu também.
Lilbe — Então, como vamos fazer isso?
Fidio — Saber o que é bom e o que é ruim?
Lilbe — Sim.
Fidio — comprei a Bíblia.
Lilbe — Isso é suficiente?
Fidio — Sim, basta.
Lilbe — Seremos santos?
Fidio — Isso é demais. (Pausa.) Mas podemos tentar.
Lilbe — Será muito diferente.
Fidio — Sim, muito.
Lilbe — Dessa forma, não ficaremos entediados como agora.
Fidio — Além disso, será muito bonito.
Lilbe — Você tem certeza?
Fidio — Sim, sem dúvida.
Lilbe — Leia-me um pouco do livro.
Fidio — Da Bíblia?
Lilbe — Sim.
Fidio — (Lendo.)
No princípio, Deus criou o céu e a terra.
(Animado.) Que lindo!
Lilbe — Sim, é muito bonito.
Fidio — (Lendo.)
Deus disse: Faça-se luz. E a luz estava feita. Deus viu que a luz era
boa e a separou das trevas. Deus chamou a luz Dia, e as trevas, Noite. A noite veio
depois da manhã: este foi o primeiro dia.
Lilbe — Foi assim que tudo começou?
Fidio — Sim. Você vê como é simples e bonito.
Lilbe — Sim. Eles me explicaram de uma maneira muito
mais complicada.
Fidio — Sobre o cosmos?
Lilbe — (Sorri.)
Sim.
Fidio — (Sorri.)
Eu também.
Lilbe — (Sorri.)
E também sobre evolução.
Fidio — Que coisa!
Lilbe — Leia-me um pouco mais.
Fidio — (Lendo.)
Deus fez o homem do barro. Então, um espírito
de vida o inspirou no nariz e o homem se tornou um ser vivo. (Pausa.) Então o Senhor colocou o homem para dormir. Quando ele estava dormindo,
Ele removeu uma costela; o buraco que Ele fez cobria com carne. Com esta costela
que Ele havia tirado do homem, Deus fez a mulher.
Fidio
e Lilbe se beijam.
Lilbe — (Inquieta.)
E podemos ir dormir juntos como antes?
Fidio — Não.
Lilbe — Vou ter que dormir sozinha então?
Fidio — Sim.
Lilbe — Vou ficar com muito frio.
Fidio — Você vai se acostumar com isso.
Lilbe — E você? Você não vai ficar com frio?
Fidio — Sim, também.
Lilbe — Dessa forma, não discutiremos quando você levar
o lençol inteiro com você.
Fidio — Claro.
Lilbe — A bondade. Foi uma coisa tão difícil.
Fidio — Sim, muito difícil.
Lilbe — Posso mentir?
Fidio — Não.
Lilbe — Nem mesmo pequenas mentiras?
Fidio — Nem mesmo.
Lilbe — E roubar laranjas da mulher no posto?
Fidio — Nenhum dos dois.
Lilbe — Não podemos ir nos divertir, como antes, no
cemitério?
Fidio — Sim, por que não poderíamos?
Lilbe — E podemos espetar os mortos nos olhos, como
antes?
Fidio — Isto não.
Lilbe — E matar?
Fidio — Não.
Lilbe — Então vamos deixar as pessoas continuarem vivendo?
Fidio — Claro.
Lilbe — Pior para elas.
Fidio — Você não percebe o que é um ser bom?
Lilbe — Não. (Pausa.)
E você?
Fidio — Não muito bem. (Pausa.) Mas eu tenho o livro. Então eu vou saber.
Lilbe — Sempre com o livro.
Fidio — Sempre.
Lilbe — E o que vai acontecer a seguir?
Fidio — Nós iremos para o céu.
Lilbe — Os dois?
Fidio — Se ambos nos comportamos, sim.
Lilbe — E o que vamos fazer no céu?
Fidio — Vamos nos divertir.
Lilbe — Sempre?
Fidio — Sim, sempre.
Lilbe — (Incrédula.)
Não é possível.
Fidio — Sim, é possível.
Lilbe — Por que?
Fidio — Porque Deus é todo-poderoso. Deus faz coisas
impossíveis. Milagres.
Fidio — E também da maneira mais simples.
Lilbe — Eu faria o mesmo no seu caso.
Fidio — Veja o que a Bíblia diz: Jesus, o Filho de Deus, levou um cego para curá-lo.
Jesus colocou saliva sobre os olhos e perguntou: Você vê alguma coisa? O cego, olhando, disse: Eu vejo os homens,
também vejo as árvores como se estivessem andando. Imediatamente Jesus pôs as mãos sobre os olhos novamente, o cego viu com
clareza e foi curado e distinguiu perfeitamente de longe.
Lilbe — Que lindo!
Fidio — Ele disse que deveríamos ser bons.
Lilbe — Então seremos bons.
Fidio — E que devemos ser como crianças.
Lilbe — Como crianças?
Fidio — Sim, puros como crianças.
Lilbe — Que difícil.
Fidio — Vamos tentar.
Lilbe — Por que deu essa mania agora?
Fidio — Estou cansado.
Lilbe — Só por isso?
Fidio — Além do mais, o que estávamos fazendo até agora
era muito feio.
Lilbe — E o céu?
Fidio — É o lugar para onde iremos depois da morte.
Lilbe — Tão tarde?
Fidio — Sim.
Lilbe — Não podemos ir mais cedo?
Fidio — Não.
Lilbe — Bem, que graça.
Fidio — Sim, isso é o pior.
Lilbe — E o que vamos fazer no céu?
Fidio — Eu já te disse: divirta-se.
Lilbe — Eu queria ouvir mais uma vez. (Pausa.) Parece impossível.
Fidio — Seremos como anjos.
Lilbe — Como os bons ou os outros?
Fidio — Os outros não estão no céu. Os outros são demônios
e estão no inferno.
Lilbe — E o que eles estão fazendo lá?
Fidio — Sofrem muito, se queimam.
Lilbe — Bem, que mudança.
Fidio — É que esses anjos foram muito maus e se rebelaram
contra Deus.
Lilbe — Por que?
Fidio — Por orgulho. Eles queriam ser mais do que Deus.
Lilbe — Que exagero.
Fidio — Sim, muito.
Lilbe — Vamos nos contentar com muito menos. Ei, eu
quero começar a ser bom imediatamente.
Fidio — Agora comecemos.
Lilbe — Mesmo?
Fidio — Sim.
Lilbe — Ninguém perceberá.
Fidio — Sim, Deus descobrirá.
Lilbe — Isso é verdade?
Fidio — Sim, Deus vê tudo.
Lilbe — Até quando eu urino?
Fidio — Sim, até.
Lilbe — Eu vou ficar muito envergonhada a partir de
agora.
Fidio — Deus anota em letras douradas, em um livro muito
bonito, as coisas boas que você faz e em um livro muito ruim e com uma letra muito
feia os pecados.
Lilbe — Eu vou ficar bom. Quero que você sempre escreva
em letras douradas.
Fidio — Você não deve apenas ser boa para isso.
Lilbe — Por que mais?
Fidio — Por causa da felicidade.
Lilbe — Que felicidade?
Fidio — Para ser feliz.
Lilbe — Também posso ser feliz por ser boa?
Fidio — Sim, também.
Lilbe — Existe algo como a felicidade?
Fidio — Sim. (Pausa.)
É o que dizem.
Lilbe — (Triste.)
E o que fizemos antes?
Fidio — O que fizemos de errado?
Fidio — Teremos que confessar.
Lilbe — Tudo?
Fidio — Sim, tudo.
Lilbe — Também que você me despe para que seus amigos
durmam comigo?
Fidio — Sim, também.
Lilbe — (Triste.)
E também … que nós o matamos? (Aponta para
o ataúde.)
Fidio — Sim, também. (Pausa triste.) Não deveríamos tê-lo matado. (Pausa.) Nós somos maus. (Pausa.)
Temos que ser bons.
Lilbe — (Triste.)
Nós o matamos pelo mesmo…
Fidio — Pelo mesmo motivo?
Lilbe — Sim, nós o matamos por diversão.
Fidio — Sim.
Lilbe — E não nos divertimos por mais de um momento.
Fidio — Sim.
Lilbe — Com isso de sermos bons, não acontecerá o mesmo?
Fidio — Não, isso é mais completo.
Lilbe — Mais completo?
Fidio — E mais bonito.
Lilbe — E mais bonito?
Fidio — Sim, você sabe como nasceu o Filho de Deus?
(Pausa.) Isso aconteceu há muitos anos.
Ele nasceu em um portal muito pobre em Belém e, como não tinha dinheiro para aquecer,
uma pequena vaca e um burrito o aqueceram com a respiração que eles lhe deram. Além
disso, como a vaca estava muito feliz em servir a Deus, ela fazia mu, mu e o burro relinchava. E a mãe da criança,
que era a mãe de Deus, chorou e seu marido a consolou.
Lilbe — Gosto muito disso.
Fidio — Eu também.
Lilbe — E o que aconteceu com a criança?
Fidio — Ele não disse nada, embora fosse Deus. Então,
porque os homens eram maus, dificilmente o alimentavam.
Lilbe — Que gente.
Fidio — Mas um dia, em um reino muito distante, alguns
reis muito bons viram uma pequena estrela pendurada no céu que se movia. Eles a
seguiram.
Lilbe — Quem eram esses reis?
Fidio — Eles eram Melchior, Gaspar e Baltasar.
Lilbe — Os que tinham brinquedos e sapatos?
Fidio — Sim. (Pausa.)
E tanto seguiram a estrela que um dia chegaram ao portal de Belém. Então eles deram
ao Menino tudo o que tinham nos camelos: muitos brinquedos, doces e também chocolate.
(Pausa. Eles sorriem animadamente.) Ah!
Eu esqueci. Eles também lhe deram ouro, incenso e mirra.
Lilbe — Que coisas!
Fidio — Assim o menino ficou muito feliz e seus pais
também, e também a vaquinha e o burro.
Fidio — Então a Criança ajudou seu pai, que era carpinteiro,
a fazer cadeiras e mesas. Como ele era muito bom, sua mãe lhe deu muitos beijos.
Lilbe — Que criança diferente!
Fidio — Era Deus.
Lilbe — Que assim seja…
Fidio — O bom é que ele não fez milagres na época, para
comer melhor ou ter roupas caras.
Lilbe — E o que aconteceu?
Fidio — Então ele se tornou homem e eles o mataram:
crucificaram-no com pregos nos pés e nas mãos. Percebe?
Lilbe — (Contente.)
Que mal eles lhe causariam.
Fidio — Sim, muito.
Lilbe — Choraria muito.
Fidio — Não, nada. Ele se conteve. Além disso, para
mais escárnio, colocaram-no no meio de dois ladrões.
Lilbe — Dos maus ou dos simpáticos?
Fidio — Dos maus, dos piores, os dois piores que haviam
então.
Lilbe — Isso está realmente errado.
Fidio — Ah! Depois descobriram que um dos ladrões era
péssima gente. Um cara trapaceiro.
Lilbe — Trapaceiro?
Fidio — Sim, ele fez acreditar que era ruim e logo se
descobriu que era bom.
Lilbe — E o que aconteceu?
Fidio — Bem, Deus morreu na cruz.
Lilbe — Sim?
Fidio — Sim. Mas no terceiro dia ele ressuscitou.
Lilbe — (Contente.)
Ah!
Fidio — E com isso todos perceberam que o que ele dizia
era verdade.
Lilbe — (Entusiasmada.)
Quero ser boa.
Fidio — Eu também.
Lilbe — Imediatamente.
Fidio — Sim, imediatamente.
Lilbe — Quero ser como a criança que nasceu no portal…
Fidio — Eu também. (Fidio segura as mãos de Lilbe.)
Lilbe — (Inquieta.)
E em que gastaremos nosso tempo?
Fidio — Fazendo coisas boas.
Lilbe — O tempo todo?
Fidio — Bem, quase o tempo todo.
Lilbe — E o resto do tempo?
Fidio — Podemos ir ao zoológico.
Lilbe — Ver a coisa do macaco.
Fidio — Não. (Pausa.)
Para ver as galinhas e os pombos.
Lilbe — E o que mais podemos fazer?
Fidio — Tocamos ocarina.
Lilbe — Ocarina?
Fidio — Sim.
Lilbe — Bem. (Pausa.)
Isso não é ruim?
Fidio — (Reflete.)
Não. Acho que não.
Lilbe — E como podemos ser totalmente bons?
Fidio — Veja. Quando encontrarmos alguém que esteja
incomodado com algo que fazemos, bem, não faremos isso. Quando encontrarmos alguém
que gostaria que fizéssemos alguma coisa, então vamos e fazemos. Quando percebermos
que um pobre e velho paralítico não tem ninguém, então vamos visitá-lo.
Lilbe — Nós não o matamos?
Fidio — Não!
Lilbe — Coitado do velho!
Fidio — Mas você não vê que matar não é mais possível.
Lilbe — Ah! Continua.
Fidio — Quando encontrarmos uma mulher com muito peso,
então vamos ajudá-la. (Voz de juiz.) Quando
percebermos que algo injusto foi feito, então nós o desfazemos.
Lilbe — Também sobre as injustiças?
Fidio — Sim, também.
Lilbe — (Satisfeita.)
Que gente importante nós vamos ser.
Fidio — Sim, muito.
Lilbe. — (Inquieta.)
E como vamos saber que é uma injustiça?
Fidio — Vamos calculá-la a olho nu.
Silêncio.
Lilbe — Será chato.
Silêncio.
Fidio — Será como tudo.
Silêncio.
Lilbe — Vamos acabar ficando entediados também.
Silêncio.
Fidio — Vamos tentar.
Ao
longe, você pode ouvir preto e azul, de Louis Armstrong.
CORTINA
NOTA
Peça traduzida por Floriano Martins, por sugestão de
Amália Pereira.
SUGESTÃO DE
VÍDEO
Fernando Arrabal: Toros, rinocerontes y patafísica https://www.youtube.com/watch?v=-YhHrCGbHgg&t=441s
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Agulha Revista
de Cultura
UMA AGULHA
NO MUNDO INTEIRO
Número 154
| Junho de 2020
Artista convidado:
Fernando Arrabal (Espanha, 1932)
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