Tendo em vista a compreensão da dramaturgia como uma
arte da escrita teatral, cujo objetivo consiste em dar as condições para se representar
a ação numa cena, bem como a ideia de carta que pode ser entendida tanto como uma
escrita direcionada a um destinatário específico, quanto pode ser lida como um mapa,
no sentido do espaço, bem como peça de um jogo, no caso do baralho, ou como um protocolo
de intenções, no que diz respeito a uma proposta política, a pretensão aqui é de
explorar as teatralidades contidas em Carta ao general Franco, de Fernando
Arrabal, considerando nesta os elementos da dramaturgia (tempo, espaço, cenário,
protagonistas, atores secundários, figurantes, personagens, conflito, drama, etc.)
contidas nesta obra escrita durante a guerra civil espanhola. Ainda neste sentido,
há também uma ideia de buscar na Carta outros significados da guerra, ou
seja, a tragédia do ponto de vista da memória e da fatalidade e, a comédia, na perspectiva
do homem como o acaso. Acrescento nessa pesquisa o fato de eu ter, recentemente,
adaptado a Carta ao general Franco para o teatro, inclusive, elegendo Guernica,
de Pablo Picasso, como o espaço cenográfico onde as ações se desenvolvem.
Apesar
de jogador e teórico do xadrez, romancista, roteirista e diretor de cinema, desenhista,
pintor, ensaísta e poeta, creio que o lugar privilegiado de Fernando Arrabal está
na dramaturgia. Com isso não quero afirmar que seja a dramaturgia um gênero que
ele melhor manuseie em detrimento de suas outras atividades tanto artísticas quanto
de homem na sociedade. O que ouso afirmar é que em todas as outras, até mesmo nas
cartas, Arrabal tem como elemento essencial a poética do drama, apesar de suas investidas
em campos que – para muitos – poderiam ser considerados pós-dramáticos, conforme
resumido por Sérgio de Carvalho, na apresentação do volume Teatro pós-dramático,
de Hans-Thies Lehmann,
O Teatro pós-dramático parte da hipótese
de que a partir dos anos 70 [1] ocorreu uma profunda ruptura do modo de pensar e fazer teatro. Algo que
já estava anunciado pelas vanguardas modernistas do começo do século XX – a valorização
da autonomia da cena e a recusa a qualquer tipo de textocentrismo – se desenvolve mais radicalmente, a ponto de
assumir um sentido modelar como contraponto da arte ao processo de totalização da
indústria cultural. (LEHMANN, 2007)
[2]
Tendo
lido muitas obras de Fernando Arrabal, montado algumas de suas peças, [3]
bem como participado com ele em alguns eventos, compartilhando palestras e debates,
resolvi eleger a Carta ao general Franco,
tema que lhe é muito caro devido ao aspecto autobiográfico de sua obra, para propiciar
uma reflexão sobre a possibilidade da presença da dramaturgia numa escrita que,
aparentemente, não tem nada a ver com o gênero.
Antes
de prosseguir naquilo que pretendo explorar certos elementos da dramaturgia em Carta
ao general Franco, me parece interessante fazer algumas observações. A primeira
delas diz respeito à escolha desta escrita de Fernando Arrabal que se dá através
de uma carta. Conforme disse anteriormente, a carta, vista como um conjunto de significações
e explicações referentes à sua condição de vocábulo, tanto pode ser entendida como
uma escrita direcionada a um destinatário específico, quanto pode ser lida como
um mapa, no sentido do território como espaço, como peça de um jogo, no caso do
baralho ou tarô e, ainda, como um protocolo de intenções, no que diz respeito à
uma proposta política, assim como diversas outras convenções que se estabelecem
como cartografias. Segundo, eu poderia ter escolhido outras obras deste autor, desde
o romance A virgem vermelha, A torre ferida por um raio ou O enterro
da sardinha e tantos outros escritos considerados não teatrais, mas preferi
a Carta, considerando que a ideia de carta,
não só no sentido de se impor como literatura rompendo com as fronteiras entre os
gêneros literários, também me deixa mais em
casa, devido à sua proximidade com a obra de Antonin Artaud que, de certa forma,
é repleta e rica de cartas. Digo em casa
porque as cartas de Artaud têm sido objeto de consultas constantes, considerando
que, desde minha graduação em filosofia, desenvolvi uma pesquisa que resultou na
monografia Heidegger e Artaud – o percurso da angústia, no mestrado em estudos
literários, Antonin Artaud: a linguagem na desintegração da palavra e, depois,
no doutorado, Fernando Arrabal: caminhos da crueldade, do absurdo e do pânico.
Depois,
vislumbrando a possibilidade de aproximar as cartas de Artaud, no sentido de uma
dramaturgia da crueldade com esta carta de Arrabal, no que diz respeito à dramaturgia
do terror, faz-se necessário entender que, em ambos os casos, o domínio do teatro, é preciso que se diga, não
é psicológico, mas plástico e físico, conforme acentua Djalma Thürler em sua
Carta a Artaud. [4] Levando adiante esta ideia de
aproximação das propostas destes homens de teatro, cumpre afirmar que assim como
em Artaud a crueldade não se resume em sangue, conforme ele mesmo afirma numa carta
a Jean Paulhan:
Il
ne s’agite dans cette Cruauté ni de sadisme ni de sang, du moins pas de façom exclusive.
Je
ne cultive pas systématiquement l’horreur. Ce mot de cruauté doit être pris dans
um sens large, et non dans les sens matériel et rapace que lui est prêté habituellment.
(…)
On
peut três bien imaginer une cruauté purê, sans déchirement charnel. Et philosophiquement
parlant d’ailleurs qu’est-ce que la cruauté? Du point de vue de l’esprit cruauté
signifie rigueur, application et décision implacable, détermination irréversible,
absolue. (ARTAUD,
1964) [5]
Também
em Arrabal o terror não significa um louvor ao brado franquista de Viva la muerte
que, por sua vez, declara um viva à esperança, inclusive, na obra em questão, o
missivista inicia dizendo ao general Franco que lhe escreve a carta com amor. Numa
das peças de Arrabal, depois do bombardeio e destruição de Guernica, o autor ressalta
uma árvore que, como o símbolo da esperança, não foi destruída. Coincidentemente,
a capa de Estéticas da crueldade, edição em que se insere o texto citado de Djalma
Thürler, tem o desenho de um terreno árido onde apenas sobrevive uma única árvore
com folhas verdes, como a possibilidade de se compreender o mundo onde resiste a
esperança.
Depois
deste preâmbulo e, voltando ao tema, em princípio, mesmo que sua dramaturgia não
tenha o compromisso de fidelidade às unidades de ação, tempo e espaço dos cânones
aristotélicos em sua Poética, na Carta ao general Franco, Fernando
Arrabal não abre mão do tempo e do espaço em sua narrativa, considerando que as
ações do general Francisco Franco Bahamonde estão colocadas num momento específico
da história do mundo, bem como tem a Espanha como o lugar onde se realiza algo que
está na ordem do dia como uma espécie de geopolítica em que as classes dominantes
orquestram para reorganizar seus domínios no campo ideológico. O mais interessante
é que a Carta ao general Franco, mesmo parecendo algo particular, pela referência
imediata à ditadura da Espanha, trata-se de uma carta a todos os ditadores do mundo,
a todos os totalitaristas, principalmente aos do mundo ocidental capitalista. E,
ainda, independente do sistema ou da ideologia que a obra põe em questão, também
está colocada em xeque e para uma reflexão a própria ideia de poder e a morte dos
Titãs, por eles mesmos, como se fora o esgotamento do próprio poder.
Para
ressaltar a questão do tempo e do espaço onde as ações se desenvolvem, nada melhor
do que ilustrar com um trecho da própria Carta:
Cuando
comenzó el ataque contra la República Española aún no tenía cuatro años: durante
toda mi vida consciente, Vd. siempre ha dirigido España.
¡Qué
país tan desierto, qué hombres tan solitarios, qué pesadilla tan larga! 35 años
sepultados entre bocinazos. El golpe de Estado militar (el alzamiento) comenzó el
18 de julio de 1936.
Pero
en Melilla, donde mi familia y yo vivíamos, se avanzó al día 17 en medio de la sorpresa
más absoluta. (ARRABAL,
2009, p. 28). [6]
Do
ponto de vista de uma dramaturgia que se realiza noutra forma de escrita que, não
necessariamente diz respeito às habituais regras do que se entende como uma escrita
para o teatro, podemos pensar o espaço como o sentido da cenografia, ou seja, na
técnica de desenvolver uma espécie de grafia ou escritura (documento de um ato)
de onde se realiza a cena (fenômeno). Tratando-se da Espanha, em especial, da Guerra
Civil, temos alguns elementos perturbadores, como os espaços públicos ou privados
que se confundem nos espaços delimitados pelo autoritarismo, bem como as condições
em que o povo se manifestava – tanto na conivência quanto na rebelião – dentro dos
lares, nas relações afetivas, nas ruas, cárceres, igrejas, escolas, tribunais, seções
eleitorais, etc. A Carta, tomada como uma espécie de discurso cênico deixa
bastante claro um momento político em que as feridas sociais são expostas.
Por
um lado, podemos dizer que, abordada como possibilidade de um texto teatral ou da
teatralidade da escrita, Carta ao general Franco trata-se de um rico manancial de
deixas e rubricas que servem como um prato
cheio para que o encenador realize um espetáculo, não nos termos entendidos pela
indústria cultural ou da “sociedade do espetáculo” criticada por Guy Debord, mas
– no melhor dos sentidos – diz respeito a um tipo de acordo silencioso, um ritual,
considerando que o espectador-leitor não se torna refém de um drama psicológico.
Equivale a dizer que, ao invés de espectador-leitor, cada participante é uma espécie
de coautor, corresponsável pela produção de cenas e sentidos.
Por
outro, a Carta é também recheada de cenas que são como territórios em que
o terror da guerra se manifesta, ora como o local de combate, ora como barricadas
ou casamatas, onde se estabelece um conflito entre o homem como uma entidade definida
socialmente e a necessidade de se afirmar como indivíduo. Convém ressaltar que tais
cenas não se reduzem a meras ilustrações, mas indicações e demarcações destas zonas
de conflitos. São quadros bem definidos dentro de uma trama bélica e política desenhada
de intenções e intensidades em que o autor, mesmo inserido numa contingência histórica,
expõe uma ação que se sustenta do próprio problema que cria, ou seja, uma ação que
se basta a si mesma.
…
siendo niño me llevaron a un acto oficial que V. Sª. presidia.
Al
llegar V. Sª., entre ovaciones, las autoridades le agasajaron.
Entonces una niña, preparada para ello, se
acercó a V. Sª. y le tendió un ramo de flores. Luego comenzó a recitar un poema
(mil veces ensayado)… Pero, de pronto, presa de emoción se puso a llorar. V. Sª.,
acariciándole la mejilla:
- No llores, yo soy un hombre como los demás.
¿Es
posible que hubiera en sus palabras algo más que el cinismo? (ARRABAL, 2009, p. 16) [7]
Em
busca de elementos históricos como possibilidade de alimentar seu discurso, recorre
aos acontecimentos que, além de próximos, ainda estão vivos na memória do povo.
Hace
siglos, en tiempos de la Inquisición, vivía en Ávila una niña de ocho años.
Un
día tomó a su hermanito por la mano y se escapó de su casa.
Recorrieron
campos y montañas.
Por
fin su padre consiguió dar con ella. Le preguntó:
- ¿Por qué te has escapado?
- Quería irme de España.
- Pero ¿por qué?
-
Para conquistar glória!
(ARRABAL,
2009) [8]
Mas
a ópera não se resume a uma mera citação histórica, considerando que o autor, quase
como um personagem ou uma espécie de raisonneur, também assume seu papel
no conflito, ou seja, se posiciona de forma crítica até mesmo para justificar a
citação histórica e, continuando a cena, acrescenta afirmando que
Lo
mismo que dijo esa niña – Santa Teresa – hubiera podido decir tantos que se fueron:
cientos de miles.
Y
también los Goyas, los Picassos, los Buñuel…
Lo
mismo hubiéramos podido decir los que en 1955 salimos de su España negra.
Para
conquistar gloria, en el sentido más fascinante de la palabra.
Esa
niña que se escapaba en busca de la apoteosis, más tarde iba a sufrir en su carne
y en su alma los golpes de la intolerancia de entonces: la Inquisición. (ARRABAL, 2009, p. 18) [9]
Ainda
no sentido da teatralidade da escrita, como o teatro no teatro ou a carta dentro
da carta, Arrabal transcreve uma carta recebida de um homem, também espanhol, que
ele não conhecia e que tinham em comum o fato de seus pais terem estado juntos (presos)
no Peñon del Hacho. A
carta deste homem dizia:
Entre
su caso y el mío hay diferencias.
Mi padre
fue fusilado sin ninguna forma de proceso, pero tuvieron la delicadeza de notificárselo
para se
pusiera en regla con dios.
Guardo
aquí su carta de despedida que nos llegó clandestinamente.
Mi madre
murió consumida meses después, perdió 30 kg. de peso.
Nuestro
pudor ha sido tal que nunca hemos hablado del padre.
Mi sentimiento
a su respecto es complejo: es como se yo lo hubiera matado y arrastro su cadáver
como un reo de la Guayana arrastraba su bola de hierro.
(ARRABAL, 2009, pp. 96-97) [10]
Num
outro momento, Arrabal reproduz outra carta, desta vez, a de um homem condenado
à morte por seus seguidores e que não tinha nenhuma ideia mais subversiva que uma simples filantropia. Nesta
carta que milagrosamente chegou às mãos de seus familiares, este homem escreve:
Querida Flora y queridos hijos:
Deseo que la presente los encuentre bien, yo por
ahora bien.
En se estos momentos se me lleva de la cárcel para
un fin trágico para mi y al propio tiempo para ti y para mis queridos hijos. Bien
sabéis todo lo bueno que he querido ser siempre para todos en general.
Deseo que terminéis la vida con más suerte que la
mía y que practiquéis los buenos sentimientos, no los importes el mal pago. Por
mi parte yo hasta el último momento me sostendré en mi sentimiento de justicia y
de equidad humanas.
Para mis hijos solo quiero que sean tan Buenos como
son, seguid bien y con valor, que no tomen ningún rencor a nadie ni venguen mi muerte.
Sed Buenos, hijos míos, para vuestra madre y para la sociedad procurar ser lo más
útiles posibles.
Vosotros viviréis tal vez una sociedad mejor y de
mejores sentimientos humanos, ayudad a perfeccionarla.
Cultivad y controlad siempre vuestra consciencia,
que siempre seréis dichosos, aunque tengáis mala suerte, haced consciencia que nadie
torcerá vuestro buen proceder.
Hijos míos, vuestro padre morirá dentro de unas horas.
Veo venir la muerte y creedme, estoy tranquilo.
Yo los quiero tanto a todos que me marcho dándoles
un beso que me sale del fondo de mi corazón.
Y a ti querida Flora, mi inseparable abrazo. Llevo
grabada tu imagen en mi corazón y nadie me la arrancará. Puedes tener por seguro
que cuando la mano dispare sobre mi
Estar é dando-te
el último beso. Puedes estar tranquila que tu Macario sabrá morir como vivió.
Para todos los mando el último beso desde mi último
suspiro.
Assinado:
Macario (ARRABAL, 2009, pp. 101-102)
[11]
Apesar
do título do ensaio ser Carta ao General Franco ou uma Dramaturgia do
Terror, não significa que a Carta de Fernando Arrabal tenha qualquer compromisso
ou queira criar uma espécie de drama de terror. Da mesma forma que em diversos momentos
Arrabal recusa a pecha de provocador que lhe foi imputada. Lembro de uma entrevista
que ele deu em São Paulo, logo depois de ter feito uma palestra em que participei
como mediador. A entrevistadora lhe perguntou:
-
Quais as provocações necessárias hoje, no mundo de hoje, no mundo que a gente vive
hoje, sem utopias?
Ele respondeu:
-
Você tem muita sorte, pois ao dizer isso me dá vontade de morder suas nádegas! Mas
não se preocupe que não o farei, porque você é muito inteligente. A provocação é
um ato cretino, é um ato repetitivo e, obviamente, a provocação é um acidente. Provocamos,
porém, contra nossa opinião. Não foi vontade minha que Franco tenha proibido absolutamente
todas as minhas obras de teatro. A crítica costuma dizer que minha obra é violenta,
agressiva e provocadora. Rechaço essas palavras. Se meu filme Viva la Muerte é considerado o mais violento da história
do cinema, fico surpreso que seja considerado assim porque, na minha visão, é uma
história de amor, a história de amor de uma criança, Fernando Arrabal, no momento
da chegada do franquismo. Tudo o que escrevi são episódios de minhas circunstâncias.
Não escrevi mais que isso, não pude ir mais além.
Também presenciei tantos outros momentos, em Vitória,
Salvador, Buenos Aires e entrevistas em geral, quando respondeu, de certa forma,
aborrecido por essa pergunta. O mesmo pode-se afirmar que a ideia do terror não
é da escrita de Arrabal, aqui considerada como uma dramaturgia do terror. Talvez,
essa seja a tônica do absurdo, escola do teatro do absurdo no qual ele sempre é
inserido. Não é o teatro que é absurdo. Absurdo é a realidade e o que o chamado
teatro do absurdo não é outra coisa senão colocar a realidade em cena. Então, absurdo
é o mundo que não deu conta de responder às questões humanas, principalmente, pensando
na Revolução Burguesa que tinha como mote a Liberté, Fraternité et Liberté,
pautas que nunca foram concretizadas.
Assim, no caso de Carta ao general Franco,
reafirmando-a como uma dramaturgia e, como uma narrativa que se dá durante a guerra
civil espanhola, trazendo em seu corpo praticamente todos os elementos necessários
para uma escrita teatral, ou seja, o tempo, o espaço, o cenário, os protagonistas,
os atores secundários, os figurantes, as personagens, o conflito, o drama, a trama,
etc., nada tem de terror por parte do autor. Mas este apenas coloca em cena a realidade
histórica.
Referendando
o que até então tenho afirmado, no final da Carta ao general Franco, no epílogo, intitulado Não celebrarei a morte
de Franco, Arrabal se recusa ao convite de alguns amigos de comemorar a morte
do ditador, não apenas por saber que sua morte não fora uma vitória do povo espanhol
e nem da liberdade, mas também porque durante quarenta anos lhe agrediu os ouvidos
escutar o lema reacionário de Viva la Muerte!
Enfim, Carta ao general Franco, é uma
carta de amor, uma declaração de vida, um gesto de esperança para que a memória
do passado seja uma possibilidade para que não cometamos os mesmos erros no presente
e que nosso futuro tenha como referência a esperança, a Árvore de Guernica.
NOTAS
1. Convém observar que a Carta
ao general Franco é datada de 18 de março de 1971.
2. LEHMANN, Hans-Thiers. Teatro pós-dramático. São
Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 7.
3.
Dirigi, com o Grupo Tarahumaras, os textos Fando e Lis, Cemitério de Automóveis
e Oração, em Vitória-ES, além de ter ministrado diversas oficinas de leitura dramática
em Tocantins, Acre, Rondônia, Amazonas, Paraná, Piaui, Maranhão, Bahia, Roraima,
Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Amapá e Alagoas. Atualmente, estou com Cartas de
Amor em cartaz, em Vitória, com o Grupo Tarahumaras.
4. THÜRLER, Djalma. Carta
a Artaud, in Estética da Crueldade. Rio de Janeiro: Atalantica, 2004, p. 110.
5. ARTAUD, Antonin. Le théâtre et son double. Paris: Gallimard, 1964, pp.
153-154. Carta a Jean Paulhan, datada de 13 de setembro de 1932. Essa crueldade não se trata nem de sadismo nem
de sangue, pelo menos de modo exclusivo. / Eu não cultivo sistematicamente o horror.
A palavra crueldade deve ser tomada num sentido amplo, e não no sentido material
e rapace como habitualmente lhe é emprestado. / (…) Pode-se muito bem imaginar uma
crueldade pura, sem dilaceramento carnal. E, aliás, filosoficamente falando, o que
é a crueldade? Do ponto de vista do espírito a crueldade significa rigor, aplicação
e decisão implacáveis, determinação irreversível, absoluta. Tradução de Wilson
Coêlho.
6.
Quando começou o ataque contra a República
Espanhola eu ainda não tinha quatro anos: durante toda a minha vida consciente,
V. Sª. sempre estava dirigindo a Espanha./ Que país tão deserto, que homens tão
solitários, que pesadelo tão longo! 35 anos sepultados entre buzinaços. O golpe
de Estado militar (a rebelião) começou no dia 18 de julho de 1936. / Mas em Melilla,
onde minha família e eu vivíamos, se avançou no dia 17 em meio da surpresa mais
absoluta. Tradução de Wilson Coêlho. ARRABAL, Fernando. Carta al general
Franco. Córdoba: Séneca Editorial, 2009.
7.
… quando eu ainda era uma criança me levaram
a um ato que V. Sª. presidia. / Ao chegar V. Sª., entre aplausos, as autoridades
o festejavam. Então, uma menina, preparada para isso, se aproximou de V. Sª. e lhe
estendeu um ramo de flores. Logo começou a recitar um poema (mil vezes ensaiado)…
Mas, de repente, tomada de emoção se pôs a chorar. V. Sª. lhe disse, acariciando-lhe
a bochecha: – Não chore, eu sou um homem como todos os outros. É possível que houvesse em suas palavras algo
mais que o cinismo? Tradução de Wilson Coêlho.
8.
Há séculos, nos tempos da Inquisição, vivia
em Ávila uma menina de oito anos. Um dia pegou seu irmãozinho pela mão e fugiu de
sua casa. / Percorreram campos e montanhas. / Por fim, seu pai conseguiu encontrá-la.
Perguntou-lhe: / – Por que estava fugindo?
/ – Queria ir embora da Espanha.
/ – Mas, por que? / – Para conquistar a glória! Tradução
de Wilson Coêlho.
9.
O mesmo que disse essa menina – Santa Teresa
– teriam dito tantos outros que se foram: centenas de milhares. /E também os Goyas,
os Picassos, os Buñuel… / O mesmo poderíamos ter dito os que em 1955 saímos de sua
Espanha negra. / Para conquistar a glória, no sentido mais fascinante da palavra./
Essa menina que escapava em busca da apoteose, mais tarde iria sofrer em sua carne
e em sua alma os golpes da intolerância de então: a Inquisição. Tradução de
Wilson Coêlho.
10.
Entre o seu caso e o meu há diferenças. /
Meu pai foi fuzilado sem nenhuma forma de processo, mas tiveram a delicadeza de
notificá-lo para se colocar em paz com deus. / Guardo aqui sua carta de despedida que nos chegou clandestinamente./
Minha mãe morreu consumida meses depois, perdeu 30 kg. de peso. / Nosso pudor tem
sido tanto que nunca falamos do pai. / Meu sentimento a seu respeito é complexo:
é como se eu o tivesse matado/ E arrasto seu cadáver/ como um réu da Guayama arrastava
sua bola de ferro. Tradução de Wilson Coêlho.
11.
Querida Flora e queridos filhos:/ Desejo que
a presente os encontre bem, eu, por agora, estou bem. / Nestes momentos me levam
do cárcere para um fim trágico para mim e, ao mesmo tempo, para ti e para meus queridos
filhos. Bem sabes o quanto tenho querido ser sempre bom para todos em geral. / Desejo
que terminem a vida com mais sorte que a minha e que pratiquem os bons sentimentos,
não importando a recompensa. Por minha parte, eu, até o último momento me sustentarei
em meu sentimento de justiça e de equidade humanas. / Para meus filhos só quero
que sejam tão bons como são, sigam bem e com valor, que não tenham nenhum rancor
a ninguém nem vinguem minha morte. Sejam bons, filhos meus, para vossa mãe e, para
a sociedade, procurem ser os mais úteis possíveis. / Vocês viverão, talvez, uma
sociedade melhor e de melhores sentimentos humanos, ajudem a aperfeiçoá-la. / Cultivem
e controlem sempre vossa consciência, que sempre sejam ditosos, ainda que tenham
má sorte, tenham consciência de que ninguém distorcerá vosso bom proceder. Filhos
meus, vosso pai morrerá dentro de umas horas. Vejo a morte chegar e, acreditem,
estou tranquilo. / Eu quero tanto a todos vocês que me vou dando-lhes um beijo que
me sai do fundo de meu coração. / E a ti, querida Flora, meu inseparável abraço.
Levo gravada sua imagem em meu coração e ninguém me a arrancará. Pode ter certeza
de que, quando apertarem o gatilho sobre mim, estarei lhe dando o último beijo.
Pode ficar tranquila que o seu Macario saberá morrer como viveu. / Para todos, mando
o último beijo desde meu último suspiro. / Assinado: Macario. Tradução de Wilson
Coêlho.
SUGESTÃO
DE VÍDEO
Fernando Arrabal con Fernando Castro Flórez en Marbella
Parte 1 https://www.youtube.com/watch?v=St46NarvjZQ
Fernando Arrabal con Fernando Castro Flórez en Marbella Parte 2 https://www.youtube.com/watch?v=eM3y-plReGg
*****
Agulha Revista de Cultura
UMA AGULHA NO MUNDO INTEIRO
Número 154 | Junho de 2020
Artista convidado: Fernando
Arrabal (Espanha, 1932)
editor geral | FLORIANO MARTINS
| floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO
SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO
MARTINS
revisão de textos & difusão
| FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2020
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